Capitulo 4 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador
No dia seguinte, no sol claro de outono, Penny brinca no quintal sob o olhar atento de Brian.
Ela passa a manhã inteira brincando, enquanto os outros fazem um levantamento e uma avaliação
dos mantimentos. À tarde, Philip e Nick pregam mais tábuas nas janelas do porão e tentam, sem
sucesso, alimentar o martelo pneumático em corrente contínua, enquanto Bobby, Brian e Penny
jogam cartas na sala de estar.
A proximidade dos mortos-vivos é um fator que sempre tem de ser levado em consideração,
nadando como um tubarão por baixo de cada decisão e cada atividade deles. Mas, no momento,
apenas ocasionalmente um andarilho errante bate na cerca de proteção e se afasta logo depois. Em
sua maioria, as atividades atrás dos 2 metros de cerca da Green Briar Lane passaram despercebidas
pela horda.
Naquela noite, com as cortinas abaixadas, todos assistiram a um filme de Jim Carrey na sala
de estar e quase se sentiram normais de novo. Estavam começando a se acostumar ao lugar. O
baque surdo ocasional do lado de fora mal chamava a atenção. Brian tinha praticamente se
esquecido do menino desaparecido e, depois de Penny ir para a cama, os homens começaram a fazer
o planejamento de longo prazo.
Eles discutem as consequências de ficarem na casa colonial, enquanto houver mantimentos.
Contam com provisões suficientes para várias semanas. Nick considera se devem mandar um
batedor, para ver como está a situação nas estradas para Atlanta, mas Philip está irredutível quanto a
continuar ali.
— Quem estiver lá fora que lide com isso sozinho — aconselha.
Nick continua monitorando o rádio, a TV e a internet... e, como as funções corporais de um
paciente terminal, a mídia também parece apresentar falência, um órgão de cada vez. A essa altura,
a maioria das estações de rádio ou está tocando músicas pré-gravadas, ou informações de
emergência totalmente inúteis. As redes de televisão — as poucas da TV a cabo que continuam
funcionando — se restringem a anúncios automáticos da defesa civil, 24 horas por dia, ou reprises
inexplicáveis e sem sentido dos comerciais da madrugada.
No terceiro dia, Nick percebe que a maioria das estações de rádio só transmite chiados, a
maioria das TVs a cabo está fora do ar e a conexão de Wi-Fi da casa se perdeu. As conexões
discadas não funcionam e os telefonemas frequentes que ele tem feito para os números de
emergência — que, até então, reproduziam gravações — agora respondem com o tradicional
“foda-se” da companhia telefônica: O número que você ligou não está disponível no momento. Por
favor, tente novamente mais tarde.
No final daquela manhã, o tempo fica encoberto.
Durante a tarde, uma névoa fria e lúgubre baixa na comunidade e todo mundo se encolhe
dentro da casa, tentando ignorar o fato de que há uma linha tênue entre estar protegido e ser um
prisioneiro. Com exceção de Nick, a maioria já está cansada de falar sobre Atlanta. A cidade agora
parece ainda mais longe, como se, quanto mais falassem sobre os 30 quilômetros que separam
Wiltshire da cidade, mais intransponíveis eles parecessem.
Naquela noite, depois que todo mundo foi dormir, Philip monta a guarda solitária na sala de
estar, ao lado de uma Penny sonolenta.
A névoa havia se transformado num espetáculo de raios e trovões.
Philip mete o dedo entre duas persianas e olha para a escuridão do lado de fora. Pelo buraco,
ele pode ver, acima da barricada, as sinuosas ruas laterais e as imensas sombras dos carvalhos, com
os galhos se curvando ao vento.
Raios iluminam os céus.
A 200 metros dali, mais ou menos uma dúzia de vultos humanoides se materializam na luz
cintilante, movimentando-se sem destino pela chuva.
Do ângulo de visão de Philip, é difícil dizer com exatidão, mas parece que as coisas estão se
movendo — daquele jeito pesado e retardado, como se fossem vítimas de um derrame — na direção
da casa. Será que conseguem sentir o cheiro de carne fresca? Será que o barulho da atividade
humana os atrai? Ou será que ficam apenas se movimentando a esmo, como peixinhos dourados
num aquário?
Nesse momento, pela primeira vez desde que chegaram a Wiltshire Estates, Philip Blake
começa a se perguntar se os dias naquele ninho de tapetes de parede a parede e de sofás ultramacios
estariam contados.
O quarto dia começa frio e carregado de nuvens. O céu de chumbo parece achatar a grama
molhada e as casas abandonadas. Apesar de ninguém tocar no assunto, o novo dia traz uma espécie
de marco: é o início da segunda semana da praga.
Agora, Philip está tomando café na sala de estar, olhando pelas persianas para as barricadas
temporárias. Na pálida luz da manhã, ele pode perceber o canto nordeste da cerca balançando e
tremendo.
— Filho de uma fruta — sussurra, baixinho.
— Qual é o problema? — A voz de Brian tira Philip do estupor.
— Estão vindo mais desses caras.
— Merda. Quantos?
— Não dá pra saber.
— E o que você pretende fazer?
— Bobby!
O grandão aparece na sala de estar descalço e de calças de pijama, comendo banana. Philip
se vira para o robusto amigo e diz: — Se veste aí.
Bobby engole um pedaço enorme da banana.
— O que está acontecendo?
Philip ignora a pergunta e se vira para Brian.
— Mantenha Penny na sala de TV.
— Pode deixar — responde Brian, e sai apressado.
Philip parte na direção das escadas, gritando: — Pega o martelo pneumático e o máximo de
extensões que puder. E as machadinhas também!
FFFFFFFAMP! O número cinco é abatido como uma enorme boneca de pano vestindo
calças esfarrapadas, os olhos mortos e leitosos rolando para trás enquanto ele desliza do outro lado
da cerca, o corpo pútrido desabando no estacionamento. Philip dá um passo para trás, ofegante pelo
esforço, o suor molhando a jaqueta e as calças jeans.
Os números um a quatro — três homens e uma mulher — foram abatidos com a facilidade
com que se atira num peixe dentro de um barril. Philip se aproximou de todos de fininho com o
martelo pneumático, enquanto batiam ou subiam pelo ponto fraco no canto da cerca. Até então, tudo
o que Philip tinha que fazer era ficar na viga mais baixa, que dava um bom ângulo das cabeças
deles. Ele os abateu rapidamente, um após o outro: FFFFAAMP! FFFFAAMP! FFFFAAMP!
FFFFAAMP!
O número cinco foi mais evasivo. Desviou da linha de tiro no último momento, se arrastou
um pouco para o lado e esticou o pescoço na direção de Philip, com o maxilar aberto. Philip teve
que desperdiçar dois pregos — que ricochetearam na calçada —, antes de finalmente acertar um no
córtex cerebral do idiota de terno.
Agora, Philip recupera o fôlego, com os joelhos dobrados de exaustão, o martelo
pneumático ainda na mão e ligado na tomada da casa, graças a 8 metros de extensão. Ele volta a se
empertigar e a apurar o ouvido. O estacionamento à frente agora está silencioso. A cerca parece
quieta.
Olhando por cima do ombro, Philip vê Bobby Marsh no pátio dos fundos, a uns 100 metros
de distância. O grandalhão está sentado sobre a enorme bunda, tentando recuperar o fôlego,
recostado numa casa de cachorro abandonada. A casinha tem um teto simples de telha e o nome
LADIE BOY acima da porta.
Esses ricos idiotas e seus cachorrinhos de merda, pensa Philip, tristemente, ainda um pouco
maluco e totalmente elétrico. Provavelmente comia melhor que a maioria das crianças.
Na cerca de trás, a uns vinte metros de Bobby, os resquícios de uma mulher morta
continuam presos às estacas, com uma machadinha enterrada no crânio, exatamente onde Bobby
Marsh deu cabo dela.
Philip acena para Bobby e lhe manda um olhar rigoroso e inquisitivo: Tudo bem?
Em resposta, Bobby põe o polegar para cima.
E aí... quase que sem aviso... as coisas começam a acontecer com muita rapidez.
O primeiro indício de que alguma coisa com certeza não ia bem acontece uma fração de
segundo depois de Bobby fazer o sinal de positivo para o amigo, líder e mentor. Empapado de suor,
o coração ainda aos pulos com o peso da enorme figura, recostado na casa do cachorro, Bobby
consegue fazer o sinal de positivo ser acompanhado por um sorriso... sem prestar a menor atenção
ao som abafado que vem de dentro da casa do cachorro.
Há muitos anos Bobby Marsh tenta, secretamente, agradar Philip Blake, e a perspectiva de
dar a Philip um sinal de positivo depois de um trabalho duro e bem feito enche-lhe de uma espécie
de satisfação sinistra.
Filho único, após concluir o Ensino Médio com muita dificuldade, Bobby se agarrou a
Philip nos anos antes de Sarah Blake morrer e, depois disso — quando Philip se afastou dos amigos
de bebida —, Bobby tentou desesperadamente retomar a amizade. Bobby ligava demais para Philip;
falava demais quando estavam juntos; e geralmente fazia papel de bobo tentando acompanhar o
ritmo do vigoroso macho alfa do grupo. Mas agora, de um jeito muito estranho, Bobby sente que
essa epidemia bizarra permitiu — entre outras coisas — que ele voltasse a se conectar com Philip.
E tudo isso é a razão pela qual, provavelmente, Bobby não ouve, a princípio, o ruído que
vem de dentro da casa do cachorro.
Quando percebe o baque surdo — como se um coração gigantesco estivesse batendo naquela
casinha minúscula —, o sorriso de Bobby congela no rosto e o polegar que estava apontando para
cima cai ao lado. E na hora em que a percepção de que tem alguma coisa dentro da casa do cachorro
— alguma coisa se movendo — consegue passar pelas sinapses do cérebro de Bobby com clareza
suficiente para ele se mexer, já é tarde demais.
Alguma coisa pequena e rasteira dispara pela portinha arqueada da casa do cachorro.
Philip já cruzou metade do pátio, correndo a toda velocidade, quando fica claro que o que
acabou de sair a toda da casa do cachorro é um minúsculo ser humano — ou pelo menos um
fac-símile azulado, apodrecido e contorcido de um minúsculo ser humano — com cocô de cachorro
e folhas presas nos cabelos louros, sujos e foscos e correntes enroladas na cintura e nas pernas.
— PU-TA MERRRDA! — grita Bobby e pula, recuando do cadáver de 12 anos, enquanto a
coisa que um dia foi um garoto investe contra a perna gigantesca do homem.
Bobby pula de lado, libertando a perna bem em cima da hora, justamente quando o rostinho
retorcido — como uma abóbora murcha com buracos vazios no lugar dos olhos — engole grama
exatamente onde a perna estivera frações de segundo atrás.
Philip, a essa altura, está a 15 metros de distância, correndo na direção da casa do cachorro a
toda velocidade, erguendo o martelo pneumático como se fosse uma forquilha apontada para o
monstro em miniatura. Bobby rasteja como um caranguejo pelo gramado úmido, o cofrinho
aparecendo pateticamente acima das calças, a respiração sôfrega e aguda como a de uma menina.
O inimigo em miniatura se move com a energia deselegante de uma tarântula, correndo pelo
gramado atrás de Bobby. O gordão tenta se levantar e correr, mas a perna fica presa e ele volta a
perder o equilíbrio, dessa vez caindo para trás.
Philip está a 7 metros de distância, quando Bobby começa a ganir num tom mais alto. A
criança zumbi prendeu a mão em formato de garra no tornozelo de Bobby e, antes que ele consiga
soltar a perna, o menino enfia a boca de dentes putrefatos nas pernas do grandão.
— MERDA! — ecoa Philip, se aproximando com o martelo.
Trinta metros atrás dele, a extensão se solta da tomada.
Philip bate com a ponta do martelo atrás do crânio da coisa, enquanto o monstrengo se
atraca com o corpo trêmulo de Bobby.
O gatilho do martelo solta um estalo... mas nada acontece. O zumbi se entranha ainda mais
na coxa flácida de Bobby, como se fosse uma piranha, rompendo a artéria femoral e engolindo um
dos escrotos dele. Os gritos de Bobby decaem para um uivo ensurdecedor, conforme Philip
instintivamente joga a arma para longe e se joga em cima da fera. Ele arranca a coisa de cima do
amigo, como se estivesse retirando uma sanguessuga gigantesca e a atira (com uma cambalhota)
para o outro lado do gramado, antes que ela tenha a chance de dar mais uma dentada.
A criança morta faz uma pirueta e rola na grama, a 7 metros dali.
Nick e Brian saem correndo da casa, Brian agarrando o fio da extensão e Nick urrando pelo
gramado com um machado na mão. Philip agarra Bobby e tenta fazê-lo parar de gritar e de se
contorcer, porque o esforço extra só está aumentando a velocidade da hemorragia, com a ferida
aberta jorrando rios de sangue no mesmo ritmo dos batimentos acelerados de Bobby. Philip mete a
mão na perna do amigo, estancando levemente o sangue, que escorre entre os dedos oleosos de
Philip, conforme outras figuras se movem em seu campo de visão. A coisa morta voltou a rastejar
pela grama úmida na direção de Philip e Bobby, mas Nick não hesita, correndo a toda velocidade e
levantando o machado com os olhos arregalados de raiva e de pânico. O machado risca o ar, com a
ponta enferrujada acertando a parte de trás da cabeça da criança zumbi, e se enterrando 7
centímetros na cavidade do cérebro. O monstro murcha imediatamente. Philip grita com Nick, algo
sobre um cinto, um CINTO e então Nick começa a se mexer, tirando o próprio cinto. Philip não tem
qualquer treinamento formal em primeiros socorros, mas ele sabe o suficiente para tentar parar um
sangramento com uma espécie de torniquete. Ele enrola o cinto de Nick em volta da perna do amigo
trêmulo e Bobby está tentando falar novamente, mas parece um homem que sente frio extremo, os
lábios se movem, tremem em silêncio. Enquanto tudo isso está acontecendo, Brian está a 30 metros
de distância, ligando a extensão de volta na tomada, porque essa é a única coisa que ele consegue
pensar em fazer. O martelo pneumático está na grama, 5 metros atrás de Philip. E, a essa altura,
Philip está gritando para Nick pegar UNS CURATIVOS, ÁLCOOL, O QUE TIVER!!! Nick sai
correndo, ainda carregando o machado, quando Brian se aproxima, encarando o troço morto de
bruços no gramado, o crânio esmagado. Brian passa bem longe. Pega o martelo pneumático — para
qualquer eventualidade — e vasculha o morro atrás da cerca traseira, enquanto Philip segura Bobby
nos braços como se fosse um bebê gigante. Bobby está chorando, respirando rapidamente — uma
respiração superficial e irregular. Philip tenta confortar o amigo, murmurando frases de coragem e
garantindo que tudo vai dar certo... mas está mais do que claro, conforme Brian se aproxima com
cuidado, que as coisas com certeza não vão dar certo.
Segundos mais tarde, Nick volta com um bolo de algodão limpo nas mãos, mais uma garrafa
plástica com álcool num dos bolsos traseiros e um rolo de esparadrapo no outro. Mas alguma coisa
mudou. A emergência se transformou em algo mais lúgubre: uma vigília da morte.
— Nós temos que levar ele para dentro — afirma Philip, agora empapado com o sangue do
amigo. Mas Philip nem faz esforço para levantá-lo. Bobby Marsh está morrendo e isso é claro para
todos ali.
E principalmente para o próprio Bobby Marsh, agora em estado de choque, olhando para o
céu de chumbo e lutando para falar.
Brian está de pé ali perto, com o martelo pneumático ao lado do corpo, olhando para Bobby.
Nick deixa os curativos caírem e solta um suspiro angustiado. Está com cara de que vai desatar a
chorar, mas, em vez disso, ele simplesmente se ajoelha do outro lado de Bobby e segura a cabeça
dele.
— E-eu... n-n-nn... — Bobby Marsh tenta desesperadamente fazer com que Philip ouça
alguma coisa.
— Ssshhh... — diz Philip e acaricia o ombro dele.
Philip não consegue pensar corretamente. Ele se vira, pega um rolo de gaze e começa a fazer
um curativo.
— N-n-não! — grita Bobby, empurrando os curativos.
— Porra, Bobby!
— NN-Não!
Philip para, engole em seco e encara os olhos marejados de lágrimas do amigo moribundo.
— Vai dar tudo certo — declara Philip, mudando o tom de voz.
— N-ão v-ai... — fala Bobby com dificuldade. Em algum lugar do céu, um corvo grasna.
Bobby já sabe o que vai acontecer. Eles viram um homem numa vala em Covington se transformar
em menos de dez minutos. — P-para de dizer isso, Philly.
— Bobby...
— Acabou — diz finalmente, numa voz muito fraca, e os olhos rolam para trás da cabeça
por um minuto. Então ele vê o martelo pneumático na mão de Brian. Com os dedos inchados e
ensanguentados, Bobby tenta pegar a arma.
Brian deixa o martelo cair, assustado.
— Puta merda, a gente tem que levar ele lá para dentro! — A voz de Philip está carregada de
desesperança, enquanto Bobby Marsh tenta às cegas alcançar o martelo. Ele consegue envolver o
cabo com a mão gorda, e tenta apontá-lo para a têmpora.
— Deus do céu! — exclama Nick.
— Afasta essa coisa dele! — Philip gesticula para Brian se afastar do amigo.
As lágrimas de Bobby descem pela lateral da enorme cabeça, limpando o sangue.
— P-por favor, Philly — murmura Bobby. — Apenas faça...
Philip se levanta.
— Nick! Vem cá!
Philip se vira e dá alguns passos na direção da casa.
Nick também se põe de pé e vai até onde está Philip. Os dois ficam a 5 metros de Bobby,
num ponto onde não dá para ouvi-los, de costas para ele, as vozes baixas e tensas.
— A gente tem que cortar ele — diz Philip, rapidamente.
— A gente tem que o quê?
— Amputar a perna dele.
— O quê?!?
— Antes de a doença se alastrar.
— Mas como é que você...?
— A gente não sabe com que velocidade ela se alastra, mas temos que tentar. A gente deve a
ele no mínimo isso.
— Mas...
— Eu vou precisar que você pegue a serra lá no galpão e também traga a...
Uma voz ecoa atrás deles, interrompendo as instruções tensas de Philip.
— Gente...
É Brian, e pelo som lúgubre da voz anasalada, é bem provável que a notícia seja ruim.
Philip e Nick se viram para ele.
Bobby Marsh está duro como pedra.
Os olhos de Brian ficam cheios d’água e ele se ajoelha ao lado do gordo.
— É tarde demais.
Philip e Nick vão até onde Bobby está deitado, de olhos fechados. O peito grande e flácido
não se mexe. A boca está seca.
— Ai, não... Meu Deus, não — grita Nick, olhando fixo para o amigo morto.
Por muito tempo, Philip não fala nada. Ninguém fala.
O imenso cadáver fica quieto, ali na grama molhada, por minutos que parecem uma
eternidade... até que alguma coisa se move nas extremidades do homem, nos tendões daquelas
pernas portentosas e nas pontas dos dedos inchados.
No começo, o fenômeno parece com típicos espasmos nervosos residuais que agentes
funerários testemunham de vez em quando, os resquícios do sistema nervoso central do cadáver.
Mas enquanto Nick e Brian acompanham tudo boquiabertos e de olhos arregalados levantando-se
devagar e então recuando lentamente, Philip chega mais perto e se ajoelha, com uma expressão
séria e determinada.
Os olhos de Bobby Marsh se abrem.
As pupilas ficaram brancas como pus.
Philip pega o martelo pneumático e o encosta na testa do grandão, acima da sobrancelha
esquerda.
FFFFFFAMP!
Horas mais tarde. Dentro de casa. É noite. Penny está dormindo. Nick está na cozinha,
afogando as mágoas no uísque... Brian não está em parte alguma... O corpo frio de Bobby está no
quintal, envolto em lona, junto aos outros cadáveres... e Philip agora está de pé, em frente à janela
da sala de estar, olhando pelas persianas o número crescente de vultos escuros na rua, que
perambulam como sonâmbulos, de um lado para o outro, atrás da barricada. Agora são mais. Talvez
uns trinta. Talvez até quarenta.
As luzes da rua penetram os buracos da cerca e as sombras ambulantes interrompem os
feixes de luz em intervalos regulares, fazendo-os piscarem e deixando Philip maluco. Ele ouve a
voz silenciosa na cabeça — a mesma voz que ouviu pela primeira vez depois que Sarah morreu:
Incendeia esse lugar. Incendeia o mundo inteiro, porra.
Por um instante, mais cedo naquele dia, depois que Bobby morreu, a voz queria mutilar o
corpo do menino de 12 anos. A voz queria esquartejá-lo. Mas Philip a havia abafado e agora lutava
contra ela de novo. O pavio está aceso, irmão, e o tempo está passando...
Philip olha para longe da janela e coça os olhos cansados.
— Não tem nada de errado em botar tudo para fora — diz uma voz diferente, vinda da
escuridão.
Philip se vira e vê a silhueta do irmão do outro lado da sala, no arco de entrada para a
cozinha.
Virando-se para a janela, Philip não responde. Brian vai até ele. Nas mãos trêmulas, segura
um frasco de xarope contra tosse. Na escuridão, as lágrimas brilham nos olhos febris. E ele fica ali,
parado, por um momento.
Então fala, numa voz baixa e suave, tomando o cuidado de não acordar Penny no sofá ao
lado deles.
— Não é nenhuma vergonha botar tudo para fora.
— Botar o quê para fora?
— Olha — diz Brian —, eu sei que você está sofrendo. — Ele funga e limpa a boca na
manga da camisa. A voz está rouca e embargada. — Tudo o que eu queria dizer é que eu realmente
sinto muito pelo Bobby. Eu sei que vocês dois eram...
— É o fim.
— Philip, vamos lá...
— É o fim deste lugar. Acabou.
Brian olha para ele.
— O que você quer dizer com isso?
— Que nós vamos dar o fora daqui.
— Mas eu pensei que...
— Dá só uma olhada. — Philip aponta para um número crescente de sombras na Green
Briar Lane. — Nós estamos atraindo eles como lixo atrai moscas.
— É, mas a barricada continua...
— Quanto mais tempo a gente ficar aqui, Brian, mais vai parecer uma prisão. — Philip olha
pela janela. — A gente tem que ir em frente.
— Quando?
— Logo.
— Amanhã?
— A gente começa a empacotar tudo de manhã e colocar o máximo de mantimentos que
puder no Suburban.
Brian olha para o irmão.
— Você está bem?
— Estou. — Philip continua com o olhar fixo. — Vai dormir.
No café, Philip decide contar à filha que Bobby teve que voltar para casa “para cuidar dos
pais” e a explicação parece satisfazer a garotinha.
Mais tarde, Nick e Philip cavam um túmulo nos fundos da casa, num lugar onde a terra do
jardim é mais fofa, enquanto Brian mantém Penny ocupada dentro de casa. Brian acha que
deveriam contar a Penny alguma coisa sobre o que aconteceu, mas Philip manda o irmão não se
meter e ficar de bico calado.
Agora, em frente à treliça de rosas no quintal, Philip e Nick erguem o enorme corpo
envolvido em lona e o baixam para dentro do túmulo escavado na terra.
Demora um bom tempo até reencherem a cova, cada um jogando uma pá depois da outra do
belo solo negro da Geórgia no amigo. Enquanto trabalham, os gemidos desafinados dos
mortos-vivos chegam trazidos pelo vento.
É mais um dia nublado e feio, com o barulho da horda de zumbis cruzando os céus e o alto
das casas. Isso deixa Philip maluco, conforme ele sua nos jeans ao despejar terra no túmulo. O
cheiro gorduroso e fétido de carne podre está mais forte do que nunca. Faz o estômago de Philip se
embrulhar, enquanto ele despeja as últimas pás de terra na cova.
Agora, Philip e Nick fazem uma pausa, um de cada lado da pilha de terra, apoiando-se nas
pás, o suor esfriando na nuca. Os dois passam muito tempo sem dizer uma palavra, cada um perdido
nos próprios pensamentos. Finalmente, Nick levanta a cabeça e, muito lentamente e muito cansado,
fala com grande deferência: — Você quer dizer alguma coisa?
Philip olha para o amigo do outro lado do túmulo. Os gemidos vêm de todas as direções
como zumbidos de gafanhotos, tão alto que Philip mal consegue pensar direito.
Nessa hora, por uma estranha razão, Philip se lembra da noite em que os três amigos ficaram
bêbados e invadiram a sala de projeção do Starliter Drive-In, na Waverly Road. Mexendo os dedos
gordos na frente do projetor, Bobby fez sombras aparecerem na tela. Philip riu com tanta força
naquela noite que achou até que fosse vomitar, vendo as silhuetas de coelhos e patos se sobrepondo
às imagens de Chuck Norris dando pontapés nos nazistas.
— Tinha gente que achava que o Bobby era um sujeito simplório — declarou Philip de
cabeça baixa —, mas elas não conheciam o cara. Ele era leal e engraçado e um amigo excelente... e
morreu como homem.
Nick olha para baixo, os ombros tremendo um pouco, a voz falhando; as palavras são quase
inaudíveis acima da barulheira à volta deles: — Deus Todo-Poderoso, que o Senhor, na Sua
misericórdia, transforme a escuridão da morte no nascer de uma nova vida e a dor da despedida na
alegria do paraíso.
Philip sente lágrimas se acumularem e aperta os dentes com tanta força que o maxilar estala.
— Por nosso Salvador, Jesus Cristo — continua Nick, com a voz trêmula —, que morreu,
ressuscitou e vive para sempre. Amém.
— Amém — Philip ainda consegue dizer numa voz baixa e embargada, que é quase estranha
a ele.
A barulheira inclemente dos mortos-vivos diminui e depois volta com muito mais força.
— CALEM A PORRA DA BOCA! — grita Philip para os zumbis, as vozes agora vindo de
todas as direções. — SEUS MORTOS-VIVOS DE MERDA! — Philip se afasta do túmulo, girando
devagar sobre os calcanhares: — EU VOU ACERTAR O CÉREBRO DE TODOS VOCÊS, SEUS
CANIBAIS FILHOS DA PUTA!!! VOU ARRANCAR TODAS AS CABEÇAS DE CADA UM DE
VOCÊS E CAGAR EM CIMA DOS SEUS PESCOÇOS PODRES!!!
Ao ouvir isso, Nick começa a soluçar e Philip fica sem forças e cai de joelhos.
E enquanto Nick chora, Philip apenas olha fixo para a terra fresca, como se houvesse alguma
resposta logo ali.
Se ainda restava alguma dúvida sobre quem era o líder do grupo — não que algum dia ela
tenha existido —, agora estava mais do que claro que Philip era o início e o fim de tudo.
Eles passaram o resto do dia arrumando as malas, Philip monossilábico ordenando, a voz
baixa e grave de tanto estresse.
— Pega a caixa de ferramentas — grunhe. — E pilhas para as lanternas — murmura. — E
aquela caixa de cartuchos — resmunga. — E mais cobertores.
Nick acha que talvez eles devessem levar dois carros.
Apesar de a maioria dos veículos abandonados na comunidade estar pronta para partir —
muitos deles modelos de luxo mais recentes e vários com a chave na ignição —, Brian teme dividir
o grupo em dois. Ou talvez agora ele esteja apenas mais agarrado ao irmão. Talvez Brian queira
ficar mais próximo do centro de gravidade.
Eles decidem ficar com o Chevrolet Suburban. O carro é um verdadeiro tanque de guerra.
Que é exatamente do que vão precisar para chegar até Atlanta.
Com o resfriado que não passa agora se instalando nos pulmões e causando um chiado que
pode ser ou não o primeiro estágio de pneumonia, Brian Blake se concentra na tarefa à frente. Ele
carrega três coolers grandes com a comida que tem as datas de validade mais longas: carnes
defumadas para o almoço, queijos duros, embalagens fechadas de suco, iogurte, refrigerantes e
maionese. Enche uma caixa de papelão com pão, carne seca e café instantâneo e também água
mineral, barrinhas de proteína e vitaminas, pratos de papel e utensílios de plástico. Decide colocar
também uma série de facas de carne: de serra, de desossar e cutelos, para eventuais contatos
imediatos com os quais eles possam se defrontar.
Brian enche mais uma caixa com papel higiênico, sabão, toalhas e retalhos. Dá uma busca
nos armários de remédios e pega comprimidos para gripe, analgésicos e soníferos e, ao fazer isso,
tem uma ideia: uma coisa que deveria fazer antes de irem embora.
No porão, Brian encontra uma lata pela metade de tinta vermelha e um pincel macio de 5
centímetros de cerdas de cavalo. Encontra um quadrado de compensado de 1 x 1 metro e, rápida
mais cuidadosamente, escreve uma mensagem: cinco palavras simples em letras maiúsculas,
grandes o suficiente para serem vistas por qualquer carro que passe por ali. E prega dois pedaços de
pau na parte de baixo da placa.
Depois, ele a leva para cima e mostra para o irmão.
— Acho que a gente devia pregar isso do lado de fora do portão — diz para Philip.
O irmão simplesmente dá de ombros e diz que Brian pode fazer o que bem entender.
Eles esperam escurecer para sair. Pontualmente às 19 horas — com o sol frio e metálico se
pondo atrás dos telhados —, eles enchem rapidamente o Suburban. Trabalhando rápido e nas
sombras, enquanto os monstros acossam a barricada, eles formam uma espécie de linha de
montagem, passando rapidamente as malas e os contêineres da porta lateral da casa até o capô
aberto da minivan.
Carregam os machados originais junto a uma série de novas pás e picaretas, machadinhas,
serras e facas do galpão de ferramentas dos fundos da casa. Trazem cordas, cabos, mais casacos,
botas para a neve e pederneiras de magnésio. Eles também carregam um tubo de sucção e vários
tanques de plástico com gasolina adicional, o máximo que couber no porta-malas.
Agora o tanque do Suburban está cheio — mais cedo, naquele dia, Philip conseguiu puxar
quase 60 litros de gasolina de um sedã abandonado, na garagem de uma casa vizinha — pois eles
não têm a menor pista sobre a situação dos postos de gasolina da região.
Nos últimos quatro dias, Philip descobriu uma série de armas esportivas nas residências
vizinhas. Os ricos adoram a estação dos patos por ali. Adoram caçar as cabecinhas verdes de dentro
do luxo das tendas aquecidas, com rifles de longo alcance e cães de caça puros-sangues.
O pai de Philip costumava fazer isso do jeito mais difícil, com nada a não ser botas
impermeáveis, a luz da lua e a má intenção.
Agora, Philip pode se dar o luxo de escolher três armas para colocar num estojo de vinil no
porta-malas — uma espingarda Winchester .22 e dois rifles Marlin, modelo 55, particularmente
úteis, apelidados de “armas para caçar patos”. Rápidas, precisas e poderosas, são desenhadas para
matar aves migratórias que voam em altas altitudes... ou, nesse caso, cabeças a cem metros de
distância.
São quase 20 horas quando eles terminam de abastecer o Suburban e acomodam Penny no
centro do banco de trás. Toda enroscada num casaco, com o pinguim de pelúcia ao lado, ela parece
estranhamente calma, com o rostinho pálido lânguido e recolhido, como se estivesse indo ao
pediatra.
As portas se abrem e se fecham. Philip se põe ao volante. Nick fica no banco do passageiro e
Brian se senta ao lado de Penny. A placa está no chão, entre os joelhos de Brian.
É dada a partida. O ronco do motor ecoa na escuridão, fazendo os mortos-vivos se
remexerem do outro lado da barricada.
— Vai ser tudo muito rápido, gente — diz Philip entre os dentes, engatando com força a
marcha a ré. — Segura aí.
Philip mete o pé no pedal até o fim e a tração nas quatro rodas entra em ação.
A inércia joga todo mundo para a frente, enquanto o Suburban avança para trás.
Pelo espelho retrovisor, o ponto fraco da barricada improvisada vai ficando cada vez mais
perto até que... BANG! O veículo passa explodindo pelas tábuas de madeira e entra na luz fraca da
Green Briar Lane.
Imediatamente, a parte traseira esquerda do carro bate num morto-vivo, exatamente quando
Philip freia e põe a marcha em Drive. Atrás deles, o zumbi voa 6 metros no ar, fazendo uma pirueta
murcha em meio a uma nuvem de sangue um pedaço do braço desfigurado se solta e é catapultado
na direção oposta.
O Suburban explode na direção da rua principal, esmagando outros três zumbis e fazendo-os
voar para a estratosfera. A cada choque, os baques surdos que irradiam pelo chassi — assim como a
gosma amarela que fica presa no para-brisa — fazem Penny estremecer e fechar os olhos.
No fim da rua, Philip gira o volante com força e canta os pneus na esquina, então acelera
para o norte, em direção à entrada.
Minutos mais tarde, Philip dá outra ordem: — Tudo bem. Vai rápido. E é rápido MESMO!
Ele freia com toda a força, jogando todo mundo para a frente nos bancos do carro. Acabaram
de chegar ao grande portão de entrada, iluminado pela luz de um poste, do outro lado do caminho
de cascalho e dos arbustos que o ladeiam.
— É só um segundo — diz Brian, agarrando a placa e abrindo a porta. — Deixa ligado.
— Anda logo.
Brian sai rápido do carro, carregando a placa de 1 x 1 metro.
No ar frio da noite, ele corre sobre o cascalho da entrada, os ouvidos hiperalertas e sensíveis
ao barulho distante dos grunhidos: estão vindo naquela direção.
Brian escolhe um lugar logo à direita do portão de entrada, um lugar onde a parede de tijolos
não é tapada pelos arbustos, e ergue a placa ao lado do muro.
Enfia as pontas de madeira na terra fofa para estabilizá-la e então corre de volta para o carro,
satisfeito por ter feito sua parte para a humanidade, ou o que quer que tenha sobrado dela.
Conforme se afastam dali, todos eles — inclusive Penny — olham pelo espelho retrovisor
para a pequena placa que vai ficando a distância: TODOS ESTÃO MORTOS
NÃO ENTRE