Capitulo 6 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador
Os vultos se aproximam do outro lado do canteiro central, por trás dos destroços dos carros
queimando e dos bosques das redondezas. São de todos os tipos e tamanhos, os rostos da cor de
argamassa, os olhos brilhando como bolas de gude à luz do fogo. Alguns estão queimados. Alguns
estão destroçados. Alguns estão tão bem-vestidos e arrumados que parece que acabaram de chegar
da igreja. A maioria tem o lábio erguido e os dentes incisivos expostos, a expressão da fome
insaciável.
— Que merda. — Brian olha para o irmão. — O que vai fazer? Em que está pensando?
— Volta para a porra do carro, Brian.
— Merda! Merda! — Brian corre para a porta lateral, abre e se instala ao lado de Penny, que
olha tudo com uma expressão de espanto. Brian bate a porta e abaixa o pino. — Tranca tudo, Nick.
— Eu vou ajudá-lo — Nick pega a arma de caçar patos e abre a porta, mas para
abruptamente quando ouve o som estranho da voz fria, metálica e ríspida de Philip vinda do
compartimento traseiro.
— Deixa comigo. Faz o que ele disse, Nick. Tranca tudo e fica abaixado.
— Mas são muitos! — Nick já está com a Marlin em posição e colocando a perna direita
para fora do carro, a bota tocando o asfalto.
— Fica no carro, Nick.
Philip está tirando duas machadinhas. Há alguns dias, ele as encontrou no jardim de uma
mansão de Wiltshire Estates — dois instrumentos idênticos e afiadíssimos de aço — e por um
momento ele se perguntou por que um homem gordo e rico como aquele (que provavelmente
pagava alguém para cortar a lenha) iria querer duas machadinhas como aquelas.
No banco da frente, Nick puxa a perna para dentro do utilitário, bate a porta e abaixa o
trinco. Ele observa tudo com os olhos em chamas e a arma aninhada nas mãos.
— Que merda é essa? O que você está fazendo, Philly?
O compartimento da mala é fechado.
O silêncio se abate sobre o interior do carro.
Brian olha para a menininha.
— Acho que você devia se abaixar, mocinha. — Penny não fala nada. Só desliza pelo banco
e se coloca em posição fetal. Tem alguma coisa na expressão dela, alguma coisa naqueles suaves
olhos arregalados que faz o coração dele apertar. Ele lhe dá um tapinha no ombro. — A gente vai
sair dessa.
Brian se vira e olha sobre o banco de trás, por cima da mala e pelo vidro traseiro.
Philip está com uma machadinha em cada mão e se encaminha calmamente para a horda de
zumbis.
— Meu Deus — murmura Brian, baixinho.
— O que ele está fazendo, Brian? — A voz de Nick é alta e seca, os dedos tocam o ferrolho
da Marlin.
Brian não consegue formular uma resposta, está totalmente envolvido pelo que vê do lado de
fora da janela.
Não é bonito. Não é gracioso, legal, heroico, másculo ou sequer bem executado. Mas a
sensação é boa.
— Deixa comigo — sopra Philip baixinho para si mesmo, ao partir para cima do zumbi mais
próximo, um grandalhão com roupa de fazendeiro.
A machadinha corta o lobo do gordão, do tamanho de uma lima, e manda um jato de fluido
cor-de-rosa pelo ar daquela noite. O zumbi cai. Mas Philip não para por aí. Antes que o segundo o
alcance, ele se põe a trabalhar no imenso corpo flácido caído no chão, manejando o aço frio de cada
mão em cima daquela carne morta.
— Minha é a vingança e eu retribuirei, disse o Senhor. — Sangue e tecidos jorram. A cada
golpe espocam faíscas no asfalto. — Deixa comigo, deixa comigo, deixa comigo — sussurra Philip
para ninguém em especial, liberando toda a raiva e a mágoa acumuladas numa enxurrada de golpes
brutais. — Deixa comigo, deixa comigo, deixa comigo, deixa comigo, deixa comigo...
A essa altura, outros se aproximaram — um jovem raquítico com um fluido preto escorrendo
pelos lábios, uma mulher gorda de rosto morto e inchado, um cara com o terno ensanguentado — e
Philip se livra do corpo estraçalhado no chão e parte para cima dos outros. Ele berra a cada golpe...
DEIXA COMIGO!... a cada crânio partido... DEIXA COMIGO!... ao cortar uma carótida... DEIXA
COMIGO!... permitindo que a raiva guie o aço frio pelas cartilagens, pelos ossos e pelas cavidades
nasais... TOME ISSO!... o sangue e a massa encefálica jorram diante de seus olhos conforme se
lembra da boca espumante e das garras do cão raivoso vindo em sua direção, quando criança, e
Deus levando a mulher, Sarah, e os monstros matando o melhor amigo, Bobby Marsh... DEIXA
COMIGO!... DEIXA COMIGO!... DEIXA COMIGO!
Dentro do Suburban, Brian desvia os olhos da cena que se desenrola do outro lado do vidro
traseiro, tosse e sente o bolo no estômago subir diante dos sons nauseantes que penetram pelo
interior hermético do Suburban. Ele tem de controlar a ânsia de vômito. Brian se abaixa e de um
jeito carinhoso põe as mãos sobre os ouvidos de Penny, um gesto que, lamentavelmente, está se
tornando rotina.
No banco da frente, Nick não consegue tirar os olhos da carnificina que acontece lá atrás.
No rosto dele, Brian pode ver um misto de repulsa e admiração — o tipo de respeito que diz “graças
a Deus que ele está do nosso lado” —, mas isso só serve para aumentar ainda mais o nó no
estômago de Brian. Ele não vai vomitar, droga. Tem que ser forte por Penny.
Brian desce para o assoalho do carro e abraça forte a garota, que está fraca e encharcada. O
cérebro de Brian nada em confusão.
O irmão é tudo para ele. O irmão é a chave de tudo. Mas alguma coisa está acontecendo com
Philip, algo horrível, e isso está começando a incomodar Brian. Quais são as regras? Essas
aberrações ambulantes merecem tudo o que Philip está fazendo com elas... mas quais são as regras
de combate?
Brian tenta expulsar esse pensamento da cabeça quando percebe que o barulho de mortes
parou. Então, ouve os passos pesados das botas de uma pessoa do lado de fora da porta do
motorista, que se abre com um clique.
Philip Blake entra no Suburban, largando as machadinhas ensanguentadas no chão, na frente
de Nick.
— Mais virão — declara, ainda frenético, o rosto coberto de suor. — O tiro os acordou.
Nick olha pelo vidro traseiro e vê o batalhão de corpos à luz do fogaréu no barranco. Sua
voz sai monótona, uma combinação de nojo e respeito: — Impressionante, cara. Impressionante
mesmo.
— A gente tem que sair daqui — comenta Philip, limpando uma gota de suor do nariz,
recuperando o fôlego e olhando pelo espelho retrovisor, procurando por Penny na sombra do banco
traseiro, como se nem estivesse ouvindo Nick.
É a vez de Brian falar.
— Qual é o plano, Philip?
— A gente tem que encontrar um lugar seguro para passar a noite.
Nick olha para Philip.
— O que você quer dizer com isso? Um lugar fora do Suburban?
— Aqui no escuro, é muito perigoso.
— É, mas...
— A gente desatola ele pela manhã.
— Tá, mas e os...
— Pega tudo o que precisar para passar a noite — ordena Philip, pegando a Ruger.
Nick segura o braço de Philip.
— Espera! Você está querendo dizer que vamos sair do carro e deixar todas as nossas coisas
aqui?
— É só por esta noite, vamos — diz Philip, abrindo a porta e saindo.
Brian suspira e olha para Nick.
— Cala a boca e me ajuda com as mochilas.
Eles acampam naquela noite uns 400 metros a oeste do caminhão-tanque virado, dentro de
um ônibus escolar abandonado, parado no acostamento, bem iluminado pela luz fria de uma
lâmpada de vapor de sódio.
O ônibus ainda está bem quente e seco e fica alto o suficiente acima do asfalto para lhes dar
uma boa visão dos dois lados da rodovia. Tem duas portas, uma na frente e uma na traseira, que
facilitam a fuga. E os bancos são unidos, compridos o bastante para que todos possam se esticar e
descansar um pouco. As chaves continuam na ignição e a bateria ainda funciona.
O cheiro no interior do ônibus é como o de uma marmita cheia de comida mofada, os
fantasmas de crianças suadas e indisciplinadas, com luvas molhadas e suor, pairam naquele ar
bolorento.
Eles comem carne enlatada, sardinhas e umas torradas caras que provavelmente serviam
para enfeitar as bandejas de alguma festa no clube de golfe. Usam lanternas tomando cuidado para
não apontá-las pela janela e acabam espalhando os sacos de dormir nos bancos de trás para tirar um
cochilo, ou pelo menos algo que chegue perto disso.
Eles se revezam de vigia na cabine, segurando uma das Marlins e utilizando os enormes
espelhos laterais para ter uma visão completa da traseira do ônibus. Nick é o primeiro a ficar de
sentinela e tenta, sem sucesso, por quase uma hora captar alguma estação no rádio portátil. O
mundo acabou, mas pelo menos aquela parte da Interestadual 20 está quieta. As margens da floresta
continuam tranquilas.
Quando chega a vez de Brian ficar de sentinela — até agora, ele só conseguiu cochilar por
alguns poucos minutos num banco barulhento da traseira do ônibus —, ele alegremente assume o
lugar na cabine cheia de alavancas, com odorizador de pinheiro e a fotografia laminada do filhinho
do motorista, que há muito já se foi. Não que Brian esteja muito animado com a perspectiva de ser a
única pessoa acordada, ou, para todos os efeitos, ter de usar a espingarda de caçar patos. Mesmo
assim, ele precisa de um tempo para raciocinar.
Em algum momento antes do sol nascer, Brian ouve a respiração de Penny — quase
imperceptível por sobre o leve assobio do vento, que passa entre as janelas — ficando errática e
ofegante. A menina dormia a algumas poltronas da cabine, perto do pai.
Agora, a menininha se levanta com um leve susto.
— Ah... Eu peguei... Quer dizer... — A voz dela mal passa de um sussurro. — Acho que
peguei.
— Ssshhh... — pede Brian, saindo da cadeira, seguindo pelo corredor até onde está a menina
e sussurrando: — Está tudo bem, bonitinha... O Tio Brian está aqui.
— Hm...
— Está tudo bem... Ssshhh... Não vamos acordar o papai.
Brian olha para Philip, todo enrolado num cobertor, o rosto se retorcendo com algum sonho
difícil. Ele tomou meia caneca de conhaque antes de deitar e apagar.
— Eu estou bem — murmura Penny com voz de ratinho, olhando para o pinguim de pelúcia
nas mãos pequenas e o abraçando como se fosse um talismã. O bichinho está todo sujo e puído, e
Brian fica com o coração partido.
— Você teve um pesadelo?
Penny faz que sim.
Brian olha para ela e pensa um pouco.
— Eu tenho uma ideia — sussurra ele. — Por que você não vem até a cabine e me faz um
pouco de companhia?
A menina assente.
Ele a ajuda a se levantar e, enrolando um cobertor em volta dela e pegando-a pela mão,
silenciosamente a conduz até a cabine. Abaixa um pequeno assento retrátil ao lado da poltrona do
motorista e diz: — Aí está. — Brian dá tapinhas no estofamento gasto. — Você vai ser o copiloto.
Penny se ajeita no banco, com o cobertor bem enrolado em volta dela e do pinguim.
— Está vendo isso aqui? — Brian aponta para um monitor de vídeo pequeno e todo sujo
acima do painel, mais ou menos do tamanho de um livro de bolso, onde uma imagem em preto e
branco toda granulada mostra como está a estrada atrás deles. O vento faz as árvores farfalharem, e
as lâmpadas de sódio iluminam as capotas dos carros despedaçados. — É uma câmera de segurança,
por garantia, entendeu?
A garota assente.
— Aqui a gente está seguro, garota — afirma Brian, da maneira mais convincente possível.
No início do turno, ele descobriu como girar a chave sem dar partida, acendendo o painel como se
fosse uma velha máquina de fliperama sendo ligada. — Está tudo sob controle.
A menina assente.
— Você quer me contar agora? — pergunta Brian baixinho, segundos mais tarde.
Penny parece confusa.
— Contar o quê?
— Sobre o pesadelo. Às vezes ajuda... contar para alguém, sabe... Faz o pesadelo
desaparecer... puf!
Penny dá de ombros levemente.
— Eu sonhei que tinha ficado doente.
— Doente... como as pessoas lá fora?
— É.
Brian respira profunda e longamente, cheio de angústia.
— Escuta só, garota. Seja qual for a doença que esse pessoal pegou, você não vai pegar.
Entendido? O seu pai não vai permitir que isso aconteça, nem em um milhão de anos. E eu não vou
permitir que isso aconteça.
Ela faz que sim com a cabeça.
— Você é muito importante para o seu pai. E é muito importante para mim também. —
Brian sente um aperto inesperado no peito, a compreensão das próprias palavras, e sente os olhos
queimarem. Pela primeira vez desde que saíram da casa dos pais, há mais de dez dias, ele percebe o
que sente por aquela menina.
— Tive uma ideia — diz ele, depois de controlar a emoção. — Você sabe o que é uma
senha?
Penny o encara.
— É como um código secreto?
— Isso mesmo. — Brian lambe o dedo e então tira uma mancha de poeira da bochecha dela.
— Nós dois vamos ter uma senha secreta.
— OK.
— E é uma senha muito especial, tá legal? De agora em diante, sempre que eu disser essa
palavra secreta, eu quero que você faça uma coisa para mim. Será que você consegue? Será que
você consegue... digamos... sempre se lembrar de fazer isso quando eu disser a palavra secreta?
— Claro. Eu acho.
— Sempre que eu disser a senha, quero que você tape os olhos.
— Tapar os olhos?
— É. E também os ouvidos. Até que eu diga que já pode olhar, tudo bem? E tem mais uma
coisinha.
— Tá.
— Sempre que eu falar a senha, quero que você se lembre de uma coisa.
— O que é?
— Eu quero que você se lembre de que vai chegar um dia em que não vai ter mais que
fechar os olhos. Vai chegar um dia em que tudo vai melhorar e que toda essa gente doente não vai
mais existir. Entendeu?
Ela faz que sim.
— Entendi.
— Então, qual vai ser a palavra?
— Você quer que eu escolha?
— Sim, senhora. A senha é sua. É você quem deve escolher.
A menininha franze o nariz enquanto pensa numa palavra adequada. Vê-la refletindo tanto
— e tão intensamente que parece que está calculando o teorema de Pitágoras — volta a apertar o
coração de Brian.
Finalmente, a garota olha para Brian e, pela primeira vez desde a erupção da praga, um raio
de esperança aparece em seus enormes olhos.
— Já sei.
Ela sussurra a palavra para o bichinho de pelúcia e então volta a olhar para cima.
— E o pinguim aprovou.
— Que ótimo. Então, deixa de fazer suspense.
— Longe — diz ela. — O código secreto vai ser longe.
O alvorecer cinzento chega em etapas. Primeiro, uma calma sinistra se instala na rodovia,
com o vento parando de soprar as árvores e então um luminoso alvorecer amarelo sobre a borda da
floresta acorda a todos e os coloca em ação.
O sentimento de urgência é quase imediato. Eles se sentem nus e expostos fora do veículo,
de modo que todos se concentram no que têm a fazer: empacotar tudo, voltar ao Suburban e tirar
aquela coisa do atoleiro.
Eles percorrem os 400 metros de volta até o utilitário em 15 minutos, carregando os
cobertores e o excesso de comida nas mochilas. Encontram um único zumbi no trajeto, uma
adolescente perdida, e Philip dá cabo dela rapidamente, enfiando a machadinha em seu crânio,
enquanto Brian murmura a senha para Penny.
Quando chegam até o Suburban, trabalham em silêncio, sempre atentos às sombras na
floresta vizinha. Primeiro, tentam jogar mais peso à traseira do carro, com Nick e Philip no
compartimento traseiro e Brian tentando acelerar no banco do motorista e empurrando com a perna
do lado de fora. Não dá certo. Aí eles procuram nas redondezas alguma coisa para fazer tração
debaixo das rodas. Precisam de uma hora inteira, mas acabam descobrindo duas paletas quebradas
jogadas numa vala de escoamento, levam-nas até o carro e as inserem debaixo das rodas.
Também não funciona.
De alguma maneira, a lama debaixo do utilitário está tão saturada de umidade, dejetos, óleo
e sabe lá Deus mais o quê que ela simplesmente só faz o veículo afundar ainda mais, com o
Suburban se inclinando cada vez mais na direção da ribanceira. Mas eles se recusam a desistir.
Movidos por uma ansiedade implacável a respeito de alguns ruídos inexplicáveis que vêm do
pinheiral próximo — galhos se partindo, batidas graves e surdas à distância —, assim como o temor
constante e velado de perderem todos os suprimentos e posses que estão dentro do Suburban, que
segue afundando, ninguém está disposto a encarar o fato de que a situação fica mais desesperadora
a cada instante.
No meio da tarde, depois de trabalharem várias horas, só pararem para o almoço, e então
trabalharem por mais duas horas, tudo o que conseguiram foi fazer com que o utilitário deslizasse
mais 2 metros pela enlameada ribanceira, enquanto Penny fica dentro do veículo, às vezes
brincando com o pinguim e às vezes grudando o rosto irritado na janela.
Nesse ponto, Philip se ergue no meio do atoleiro e olha para o horizonte que se estende a
oeste.
O céu carregado começou a escurecer e virar noite, e a perspectiva de ela cair em breve faz
com que os instintos de Philip se agucem. Coberto de lama e empapado de suor, ele tira a bandana e
enxuga o pescoço.
Ele está prestes a falar alguma coisa quando mais uma barulheira vinda das árvores desvia
sua atenção para o sul. Há muitas horas que os estalos e os ruídos de galhos partindo — talvez
passos, talvez não — se aproximam.
Nick e Brian, ambos enxugando as mãos com retalhos de pano, vão se juntar a Philip.
Nenhum deles diz nada por um momento. As expressões de todos refletem a dura realidade e
quando mais um estalo vem do lado das árvores, tão sonoro quanto um tiro, Nick decide falar: —
Acho que está tudo mais do que claro, né?
— A noite vai cair em breve — diz Philip, e enfia o lenço no bolso.
— O que você acha, Philly?
— Que está na hora de acionar o Plano B.
Brian engole em seco, olhando para o irmão.
— Eu não sabia havia um Plano B.
Philip olha longamente para o irmão e, por um momento, sente um misto esquisito de raiva,
pena, impaciência e afeição. Então Philip olha para o Suburban velho e enferrujado e sente uma
pontada de melancolia, como se estivesse prestes a dizer adeus a um velho amigo.
— Agora tem.
Eles tiram a gasolina do Suburban e passam para os tanques de plástico que trouxeram de
Wiltishire. Depois, têm sorte suficiente de encontrar um Buick LeSabre grande, último modelo, com
as chaves ainda na ignição, abandonado no acostamento da estrada, a cerca de 200 metros dali. Eles
ligam o Buick e o levam até onde está o utilitário atolado. Enchem o Buick de gasolina e transferem
o máximo de suprimentos que conseguem espremer no imenso porta-malas do carro.
Então partem com o sol se pondo, todos olhando para o utilitário atolado, que fica a
distância, como um navio naufragando no esquecimento.
As indicações da chegada do Apocalipse surgem dos dois lados da estrada com uma
frequência assustadora. À medida que se aproximam da cidade, serpenteando com crescente
dificuldade entre os destroços abandonados — a floresta diminuindo e dando espaço a um número
cada vez maior de condomínios residenciais, shoppings e edifícios de escritórios —, os sinais da
maldição estão por toda parte. Eles passam por um Wal-Mart escuro e deserto, com as vidraças
quebradas e um mar de roupas e mercadorias espalhadas pelo estacionamento. Percebem a crescente
falta de energia elétrica, com comunidades inteiras no escuro e silenciosas como túmulos. Passam
por shoppings totalmente saqueados e advertências bíblicas rabiscadas nas chaminés. Veem até um
avião monomotor emaranhado numa imensa torre de eletricidade, ainda soltando fumaça.
Em algum lugar entre Lithonia e Panthersville, a traseira do Buick começou a tremer
freneticamente e Philip se dá conta de que o carro está com dois pneus furados. Talvez já estivessem
furados quando o pegaram — quem é que vai saber? Mas não há tempo para parar e consertar, nem
para discutir o assunto.
A noite volta a coagi-los e, quanto mais se aproximam dos arredores de Atlanta, mais as ruas
estão apinhadas com carcaças dos destroços de carros abandonados. Ninguém fala em voz alta, mas
estão todos começando a imaginar se não chegariam mais rápido a pé. Mesmo as avenidas próximas
como Hillandale e Fairington estão totalmente bloqueadas por carros vazios, espalhados como
peças de dominó no meio da rua. Nesse ritmo, vão demorar uma semana para entrar na cidade.
E é por isso que, nesse ponto, Philip toma a decisão de comando de deixar o Buick ali
mesmo, empacotar tudo o que for humanamente possível carregar, e seguir a pé. Ninguém fica
extasiado com a ideia, mesmo assim eles vão em frente. A alternativa de procurar no escuro, no
meio daquele engarrafamento congelado, dois pneus novos ou um veículo adequado para substituir
o Buick não parece viável no momento.
Eles rapidamente tiram o que é imprescindível da mala do Buick e enchem as mochilas de
suprimentos, cobertores, comida, armas e água. Estão ficando craques em se comunicar por
sussurros, gestos e meneios de cabeça — e totalmente atentos ao barulho distante dos mortos, sons
que se erguem e diminuem na escuridão além da estrada, misturando-se às árvores e vindo de trás
dos edifícios. Philip tem as costas mais fortes, por isso fica com a mochila mais pesada. Nick e
Brian também carregam mochilas mais do que abarrotadas. Até Penny aceita carregar uma pequena
mochila com roupa de cama.
Philip pega a pistola Ruger, duas machadinhas — cada uma enfiada de um lado do cinto —
e uma ferramenta que também se parece com um machado para ir cortando os arbustos, que ele põe
junto à coluna, entre a mochila e a manchada camisa de cambraia. Brian e Nick carregam, cada um,
uma Marlin 55, além de uma picareta amarrada na lateral das respectivas mochilas.
E assim eles começam a caminhar para o oeste e, dessa vez, ninguém olha para trás.
Quatrocentos metros adiante, eles chegam a uma travessa obstruída por um trailer Airstream
todo quebrado. A cabine está enroscada num poste da companhia telefônica. Todas as luzes da rua
se apagaram e, na mais completa escuridão, pode-se ouvir o barulho de alguma coisa se debatendo
no interior do trailer destruído.
Isso faz todo mundo parar de repente no acostamento debaixo do viaduto.
— Meu Deus, pode ser alguém... — Brian se interrompe, quando vê o irmão levantar a mão.
— Sssshhhhh!
— Mas e se....
— Quieto! — Philip estica a cabeça para ouvir. Sua expressão é totalmente fria e imóvel. —
Por aqui. Vamos!
Philip conduz o grupo por um barranco pedregoso no lado norte do cruzamento, todos
descendo o morro com agilidade e cuidado para não escorregar no cascalho molhado. Brian está no
fim da fila, perguntando-se o que aconteceu com as normas de conduta, perguntando-se se
acabaram de abandonar um ser humano à própria sorte.
Mas seus pensamentos são interrompidos pelo mergulho na escuridão ainda maior do
campo.
Eles seguem por uma rua asfaltada de mão dupla chamada Miller Road, para o norte, no
meio da escuridão. Por cerca de 1,5 quilômetro, eles não encontram mais do que uma área
esparsamente ocupada por parques industriais e fundições, com placas tão enigmáticas como
desenhos nas cavernas: Barloworld Máquinas, Atlas Ferramentas e Pintura, Hughes Materiais de
Construção, Simcast Eletrônica, Aços Peachtree. O ritmo arrastado dos passos no asfalto se mistura
à respiração, cada vez mais ofegante. O silêncio começa a irritá-los. Penny está ficando cansada.
Eles ouvem um farfalhar na floresta, imediatamente à direita.
Finalmente, Philip ergue a mão e aponta para uma fábrica baixa e comprida, que se estende
por vários metros.
— Esse lugar serve — diz ele, num leve murmúrio.
— Serve para quê? — pergunta Nick, resfolegante e parando ao lado de Nick.
— Para passar a noite — diz Philip, sem nenhuma emoção na voz.
Ele lidera o grupo para além de uma placa baixa e não iluminada que diz CORPORAÇÃO
GEORGIA PACIFIC.
Philip entra pela janela do escritório. Ele fez todo mundo se abaixar nas sombras do lado de
fora da porta principal, enquanto passava pelos corredores vazios e entulhados até o galpão que fica
no centro do edifício.
O lugar é escuro como um túmulo. Philip ouve o próprio coração bater conforme caminha
com as duas machadinhas nas laterais do corpo. Ele tenta acender um interruptor, sem sucesso. Mal
percebe o aroma pungente de celulose que permeia a atmosfera — o cheiro pegajoso de seiva — e
quando chega até as portas de segurança, ele as abre devagar com a ponta do pé.
O galpão tem mais ou menos o tamanho de um hangar de avião, com gruas gigantescas
penduradas acima, várias fileiras de refletores apagados e um cheiro de papel sufocante como o de
talco. Um feixe de luar passa por entre as enormes claraboias. O chão é dividido em duas fileiras
com imensos rolos de papel, tão grandes como troncos de sequoia, e tão brancos que parecem
brilhar na escuridão.
Algo se move a certa distância.
Philip prende as machadinhas dos dois lados do cinto e então pega o coldre da Ruger. Ele
saca a arma, prepara-se para atirar e levanta o cano na direção de um vulto escuro que sai
cambaleante de detrás de uma pilha de estrados. O vagabundo da fábrica se move pelas sombras na
direção de Philip, lentamente, esfomeado, a frente do macacão jeans coberto de sangue e vômito
seco, o rosto indolente cheio de dentes brilhando à luz do luar que passa pela claraboia.
Um tiro abate o moribundo; o som ecoa como se fosse um tambor de latão naquele depósito
cavernoso.
Philip faz uma varredura do resto do galpão e encontra mais dois zumbis: um homem mais
velho e gordo — o antigo vigia, pelo que dava para perceber do uniforme rasgado e um sujeito mais
novo; cada um saiu arrastando a droga do esqueleto de detrás das prateleiras de armazenamento.
Philip não sentiu nada ao explodir a cabeça dos dois, à queima-roupa.
No caminho de volta até a entrada, ele encontra um quarto zumbi nas sombras, preso entre
dois imensos rolos de papel. A metade inferior do antigo operador de empilhadeira está comprimida
entre dois cilindros que refletem um branco ofuscante, totalmente irreconhecível de tão esmagada,
todos os fluidos do homem formando uma poça seca no chão de cimento abaixo dele. A parte de
cima da criatura se contorce e estremece, os olhos leitosos ainda estupidamente abertos.
— O que houve, amigo? — pergunta Philip, enquanto se aproxima com a arma na cintura.
— Mais um dia, mais dinheiro no bolso, né?
O zumbi mordisca inutilmente o ar entre o rosto dele e o de Philip.
— Perdeu a hora do almoço?
Chomp.
— Então coma isso.
O tiro da .22 ecoa na hora em que a bala atravessa o osso orbital do operador da
empilhadeira, deixando o olho leitoso todo preto e mandando uma parte do hemisfério parietal pelos
ares. O jato — uma mistura de sangue, tecidos e fluido cerebrospinal — esguicha sobre os rolos de
papel imaculadamente brancos, enquanto a metade superior daquela coisa murcha como macarrão.
Philip fica admirando a obra de arte — a tinta escarlate sobre a área de alvura celestial —
por algum tempo, antes de voltar para os outros.