O Mar Dothraki – disse Sor Jorah Mormont ao puxar as rédeas do cavalo e parar ao lado dela no topo da
colina.
A seus pés, a planície estendia-se imensa e vazia, uma vasta extensão plana que atingia e
ultrapassava o horizonte distante. Foi um mar, pensou Dany. Para lá do lugar onde estavam não
havia colinas nem montanhas, nem árvores, cidades ou estradas, apenas a mata sem fim, cujas
folhas altas ondulavam como ondas quando o vento soprava.
– É tão verde – ela admirou.
– Aqui e agora – concordou Sor Jorah. – Tem de vê-lo quando floresce, flores vermelhas
escuras de horizonte a horizonte, como um mar de sangue. E quando chega a estação seca, o
mundo fica da cor de bronze velho. E isto é apenas a hranna, menina. Há ali cem tipos de plantas,
amarelas como limão-siciliano e escuras como índigo, azuis e cor de laranja, e as que são como
arco-íris. E dizem que nas Terras das Sombras, para lá de Asshai, há oceanos de erva-fantasma,
mais alta que um homem a cavalo e com caules tão claros como vidro leitoso. Mata todas as
outras plantas e brilha no escuro com os espíritos dos condenados. Os dothrakis dizem que um dia
a erva-fantasma cobrirá o mundo inteiro, e então toda a vida terminará.
Essa ideia fez Dany se arrepiar.
– Não quero falar disso agora – ela retrucou. – Isto aqui é tão lindo que não quero pensar na
morte de tudo.
– Como desejar, khaleesi – Sor Jorah disse respeitosamente.
Dany ouviu o som de vozes e virou-se para olhar para trás. Ela e Mormont tinham se
distanciado do resto da comitiva, e agora os outros subiam a colina. Os movimentos da criada Irri
e dos jovens arqueiros de seu khas eram fluidos como centauros, mas Viserys ainda lutava com os
estribos curtos e a sela plana. O irmão era infeliz ali. Nunca deveria ter vindo. Magíster Illyrio
insistira com ele para que esperasse em Pentos, oferecera-lhe a hospitalidade de sua mansão, mas
Viserys nem quisera ouvir falar do assunto. Queria ficar com Drogo até que a dívida fosse paga,
até ter a coroa que lhe fora prometida. “E se ele tentar me enganar, aprenderá, para sua desgraça, o
que significa acordar o dragão”, ele garantira, pousando a mão na espada emprestada. Illyrio
pestanejara ao ouvir aquilo e lhe desejara boa sorte.
Dany percebeu que naquele momento não desejava ouvir nenhuma das queixas do irmão. O dia
estava bastante perfeito. O céu era de um azul profundo, e muito acima deles um falcão caçador
voava em círculos. O mar de plantas oscilava e suspirava a cada sopro do vento, o ar batia-lhe
morno no rosto, e Dany sentia-se em paz. Não deixaria que Viserys estragasse tudo.
– Espere aqui – disse Dany a Sor Jorah. – Diga a todos para ficar. Diga que eu estou ordenando.
O cavaleiro sorriu. Sor Jorah não era um homem bonito. Tinha pescoço e ombros de touro e
grossos pelos negros cobriam-lhe os braços e o pescoço de uma forma tão densa que nada restava
para a cabeça. Mas seus sorrisos davam conforto a Dany.
– Está aprendendo a falar como uma rainha, Daenerys.
– Uma rainha, não – ela respondeu. – Uma khaleesi – fez girar o cavalo e galopou sozinha
encosta abaixo.
A descida era íngreme e rochosa, mas Dany cavalgou destemidamente, e o júbilo e o perigo
daquilo eram uma canção em seu coração. Por toda sua vida, Viserys lhe dissera que era uma
princesa, mas só quando montou sua prata é que Daenerys Targaryen se sentira como uma.
A princípio não fora fácil. O khalasar levantara o acampamento na manhã seguinte ao
casamento, dirigindo-se para leste em direção a Vaes Dothrak, e no terceiro dia Dany pensou que
ia morrer. Feridas provocadas pela sela abriram-se em seu traseiro, hediondas e sangrentas. As
coxas ficaram em carne viva, as rédeas fizeram nascer bolhas nas mãos, e os músculos das pernas
e das costas estavam de tal forma doloridos que quase não era capaz de se sentar. Quando caía o
crepúsculo, as criadas tinham de ajudá-la a desmontar.
Nem mesmo as noites traziam alívio. Khal Drogo ignorava-a enquanto viajavam, tal como a
ignorara durante o casamento, e passava o começo da noite bebendo com seus guerreiros e
companheiros de sangue, competindo com seus melhores cavalos, vendo mulheres dançar e
homens morrer. Dany não tinha lugar naquelas partes de sua vida. Era abandonada para jantar
sozinha ou com Sor Jorah e o irmão, para depois chorar até adormecer. Mas todas as noites, em
algum momento antes da alvorada, Drogo vinha à sua tenda e a acordava na escuridão para montála
tão implacavelmente como montava seu garanhão. Possuía-a sempre por trás, à moda dothraki,
e Dany sentia-se grata por isso; dessa maneira, o senhor seu marido não podia ver as lágrimas que
lhe molhavam o rosto, e podia usar a almofada para abafar seus gritos de dor. Quando acabava, ele
fechava os olhos e começava a ressonar baixinho, e Dany se deitava ao seu lado, com o corpo
dolorido e machucado, com dores demais para dormir.
Os dias seguiram-se a outros, e as noites seguiram-se a outras, até Dany compreender que não
conseguia suportar aquilo nem mais um momento. Uma noite decidiu que preferia se matar em
vez de continuar…
Mas, quando conseguiu adormecer nessa noite, voltou a sonhar o sonho do dragão. Daquela vez
Viserys não estava nele. Só ela e o dragão. Suas escamas eram negras como a noite, mas luzidias
de sangue. Dany sentiu que aquele sangue era dela. Os olhos do animal eram lagoas de magma
derretido, e, quando abriu a boca, a chama surgiu, rugindo, num jato quente. Dany podia ouvi-lo
cantar para ela. Abriu os braços ao fogo, acolheu-o, para que ele a engolisse inteira e a lavasse,
temperasse e polisse até ficar limpa. Podia sentir sua carne secar, enegrecer e descamar-se, sentia
o sangue ferver e transformar-se em vapor, mas não havia nenhuma dor. Sentia-se forte, nova e
feroz.
E no dia seguinte, estranhamente, pareceu-lhe que não doía tanto. Foi como se os deuses a
tivessem escutado e tivessem se apiedado. Até as criadas repararam na mudança.
– Khaleesi – disse Jhiqui –, que houve? Está doente?
– Estava – ela respondeu, em pé junto aos ovos de dragão que Illyrio lhe oferecera quando se
casara. Tocou um deles, o maior dos três, fazendo correr a mão sobre a casca. Negro e escarlate,
pensou, como o dragão no meu sonho. A pedra parecia estranhamente quente sob seus dedos… ou
estaria ainda sonhando? Retirou a mão, nervosamente.
Daquele momento em diante, cada dia foi mais fácil que o anterior. As pernas ficaram mais
fortes; as bolhas arrebentaram e as mãos ganharam calos; as moles coxas enrijeceram, flexíveis
como o couro.
O khal ordenara à criada Irri que ensinasse Dany montar à moda dothraki, mas sua verdadeira
professora era a potranca. A égua parecia conhecer-lhe os estados de alma, como se partilhassem
uma mente única. A cada dia que passava, Dany sentia-se mais segura sobre a sela. Os dothrakis
eram um povo duro e sem sentimentalismos, e não tinham o costume de dar nome aos animais;
portanto, Dany pensava no animal apenas como a prata. Nunca amara tanto coisa alguma.
À medida que a viagem foi deixando de ser uma provação, Dany começou a reparar nas belezas
da terra que a rodeava. Cavalgava à frente do khalasar com Drogo e seus companheiros de sangue,
e assim encontrava todas as regiões frescas e intactas. Atrás deles, a grande horda podia rasgar a
terra e enlamear os rios e levantar nuvens de pó que dificultavam a respiração, mas os campos à
sua frente estavam sempre viçosos e verdejantes.
Atravessaram as colinas onduladas de Norvos, deixando para trás fazendas de campos amurados
e pequenas aldeias onde o povo observava ansioso, de cima de muros brancos de estuque.
Atravessaram pelo vau três largos rios plácidos e um quarto que era rápido, estreito e traiçoeiro,
acamparam ao lado de uma grande catarata azul e rodearam as ruínas tombadas de uma vasta
cidade morta, onde se dizia que os fantasmas gemiam por entre enegrecidas colunas de mármore.
Correram por estradas valirianas com mil anos de idade, retas como uma flecha dothraki. Ao
longo de meia lua, atravessaram a Floresta de Qohor, onde as folhas formavam uma abóbada
dourada muito acima deles e os troncos das árvores eram tão largos como portões de uma cidade.
Havia grandes alces naqueles bosques, tigres malhados e lêmures de pelo prateado e enormes
olhos púrpuros, mas todos fugiram antes que o khalasar se aproximasse e Dany não chegou a
vislumbrá-los.
A essa altura, sua agonia era uma lembrança que se desvanecia. Ainda sentia-se dolorida depois
de um longo dia de viagem, mas, de algum modo, agora a dor incorporava certa doçura, e ela subia
de boa vontade para a sela todas as manhãs, ansiosa por saber que maravilhas a esperavam nas
terras que se estendiam à frente. Começou a encontrar prazer até mesmo nas noites, e embora
ainda gritasse quando Drogo a possuía, nem sempre era de dor.
Na base da colina, as plantas ergueram-se à sua volta, altas e flexíveis. Trotando, Dany penetrou
na planície, deixando-se perder na grama, abençoadamente só. No khalasar nunca estava só. Khal
Drogo só vinha encontrá-la depois de o sol se pôr, mas as criadas a alimentavam, a banhavam e
dormiam junto à porta de sua tenda; os companheiros de sangue de Drogo e os homens de seu khas
nunca estavam muito distantes, e o irmão era uma sombra indesejada, dia e noite. Dany conseguia
ouvi-lo no topo da colina, com a voz esganiçada de raiva enquanto gritava a Sor Jorah. Ela
avançou, submergindo-se mais profundamente no Mar Dothraki.
O verde a engoliu. O ar estava enriquecido com os odores da terra e das plantas, misturados
com o cheiro do cavalo, do suor de Dany e do óleo em seus cabelos. Cheiros dothrakis. Pareciam
pertencer àquele lugar. Dany respirou tudo aquilo, rindo. Teve uma súbita vontade de sentir o chão
debaixo dos pés, de fechar os dedos sobre aquele espesso solo negro. Desmontando, deixou a prata
pastando enquanto descalçava as botas de cano alto.
Viserys chegou junto dela tão subitamente como uma tempestade de verão, com o cavalo se
empinando quando puxou as rédeas com demasiada força.
– Como se atreve? – ele gritou com ela. – Dar ordens a mim? A mim? – saltou do cavalo,
tropeçando ao pisar no chão. Seu rosto estava corado quando se pôs em pé. Agarrou-a e a sacudiu.
– Esqueceu-se de quem é? Olhe para você. Olhe para você!
Dany não precisava se olhar. Estava descalça, com os cabelos oleados, usando couros dothrakis
de montar e um vestido pintado que lhe fora dado como presente de noivado. Parecia pertencer
àquele lugar. Viserys estava sujo e manchado, vestido com suas sedas citadinas e cota de malha.
Ele ainda gritava.
– Você não dá ordens ao dragão. Entende isto? Eu sou o Senhor dos Sete Reinos, não receberei
ordens de uma puta qualquer de chefe de horda, está ouvindo? – introduziu a mão sob o vestido
dela, enterrando dolorosamente os dedos no seio. – Está ouvindo?
Dany o afastou com um forte empurrão.
Viserys a fitou, com os olhos lilás incrédulos. Ela nunca o desafiara. Nunca lutara. A raiva
distorceu-lhe as feições. Ela sabia que ele agora a machucaria, e muito.
Crac.
O chicote fez um som de trovão. A ponta enrolou-se no pescoço de Viserys e o atirou para trás.
Ele se estatelou na grama, atordoado e estrangulado. Os cavaleiros dothrakis gritavam enquanto
ele lutava por se libertar. O dono do chicote, o jovem Jhogo, arriscou uma pergunta. Dany não
compreendeu suas palavras, mas então Irri chegou, com Sor Jorah e o resto de seu khas.
– Jhogo pergunta se deve matá-lo, khaleesi – disse Irri.
– Não – Dany respondeu. – Não.
Jhogo compreendeu aquilo. Um dos outros ladrou um comentário, e os dothrakis riram. Irri
disse a Viserys: – Quaro pensa que deve cortar uma orelha para lhe ensinar respeito.
O irmão estava de joelhos, com os dedos enterrados sob os anéis de couro, gritando
incoerentemente, lutando por ar. O chicote enrolava-se apertado na traqueia.
– Diga-lhes que não o quero ferido – disse Dany.
Irri repetiu suas palavras em dothraki. Jhogo deu um puxão no chicote, sacudindo Viserys como
uma marionete na ponta de uma corda. Ele se estatelou de novo, livre do abraço de couro, com
uma fina linha de sangue sob o queixo, no local onde o chicote cortara profundamente a pele.
– Eu o preveni do que aconteceria, senhora – disse Sor Jorah Mormont. – Disselhe para ficar na
colina, conforme havia ordenado.
– Eu sei que sim – respondeu Dany, observando Viserys, que jazia no chão, inspirando
ruidosamente, corado e soluçando. Era uma coisa digna de pena. Sempre fora. Por que nunca antes
tinha compreendido? Havia um lugar oco dentro dela, o lugar onde estivera seu medo.
– Tome o cavalo dele – ordenou Dany a Sor Jorah. Viserys a olhou de boca aberta. Não
conseguia acreditar no que ouvia; e Dany tampouco conseguia acreditar muito bem no que dizia.
No entanto, as palavras vieram. – Que meu irmão caminhe atrás de nós até o khalasar – entre os
dothrakis, o homem que não monta a cavalo não é homem nenhum, o mais vil dos seres vis, sem
honra nem orgulho. – Que todos o vejam tal como é.
– Não! – Viserys gritou. Virou-se para Sor Jorah, suplicando na língua comum, com palavras
que os cavaleiros não compreenderiam. – Bata-lhe, Mormont. Machuque-a. É seu rei que está
ordenando. Mate esses cães dothrakis e dê-lhe uma lição.
Os olhos do cavaleiro exilado saltaram de Dany para o irmão; ela de pés nus, com terra entre os
dedos dos pés e óleo nos cabelos, ele com suas sedas e seu aço. Dany conseguiu ver a decisão no
rosto do homem.
– Ele andará, khaleesi – Sor Jorah decidiu. Agarrou as rédeas do cavalo do irmão, enquanto
Dany montava sua prata.
Viserys o olhou de boca aberta e sentou-se na terra. Manteve-se em silêncio, mas recusou-se a
andar, e seus olhos estavam cheios de veneno ao vê-los se afastar. Em pouco tempo estava perdido
por entre as plantas altas. Quando deixaram de vê-lo, Dany ficou com receio.
– Ele conseguirá descobrir o caminho de volta? – perguntou a Sor Jorah enquanto caminhavam.
– Mesmo um homem tão cego como seu irmão deve ser capaz de seguir nosso rastro –
respondeu o cavaleiro.
– Ele é orgulhoso. Pode se sentir muito envergonhado para regressar.
Jorah soltou uma gargalhada.
– Para onde mais pode ir? Se não conseguir encontrar o khalasar, certamente o khalasar o
encontrará. É difícil morrer afogado no Mar Dothraki, menina.
Dany compreendeu a verdade daquelas palavras. O khalasar era como uma cidade em marcha,
mas não marchava às cegas. Batedores patrulhavam o terreno bem à frente da coluna principal,
alerta a qualquer sinal de caça ou inimigos, enquanto os outros guardavam os flancos. Não
deixavam passar nada, especialmente ali, naquela terra, naquele lugar que lhes dera origem.
Aquelas planícies eram uma parte deles… e agora também dela.
– Eu bati nele – disse Dany, com espanto na voz. Agora que o confronto terminara, parecia um
estranho sonho que tivera. – Sor Jorah, pense… ele estará tão zangado quando regressar… –
estremeceu. – Acordei o dragão, não acordei?
Sor Jorah resfolegou.
– É capaz de acordar os mortos, pequena? Seu irmão Rhaegar foi o último dragão e morreu no
Tridente. Viserys é menos que a sombra de uma serpente.
Aquelas palavras bruscas sobressaltaram-na. Era como se tudo aquilo em que sempre acreditara
fosse subitamente posto em causa.
– O senhor… lhe prestava vassalagem…
– É verdade, pequena – disse Sor Jorah. – E se seu irmão é a sombra de uma serpente, em que é
que isso transforma os seus servos? – a voz dele soava amarga.
– Ele ainda é o verdadeiro rei. Ele é…
Jorah puxou as rédeas do cavalo e olhou para ela.
– Agora a verdade. Gostaria de ver Viserys sentado num trono?
Dany refletiu sobre a ideia.
– Não seria um rei lá muito bom, não é?
– Já houve piores… mas não muitos – o cavaleiro esporeou o cavalo e retomou a viagem.
Dany seguiu logo atrás dele.
– Mas, mesmo assim – disse –, o povo o espera. Magíster Illyrio diz que o povo borda
estandartes do dragão e reza para que Viserys regresse através do mar estreito para libertá-lo.
– O povo reza por chuva, filhos saudáveis e um verão que nunca termine – disselhe Sor Jorah. –
Não lhe interessa se os grandes senhores lutam suas guerras de tronos, desde que seja deixado em
paz – encolheu os ombros. – E nunca é.
Dany seguiu em silêncio durante algum tempo, ordenando as palavras do companheiro como se
fossem um quebra-cabeça. Pensar que o povo podia se importar tão pouco se seu soberano era um
rei verdadeiro ou um usurpador ia contra tudo que Viserys lhe dissera. Mas quanto mais refletia
sobre as palavras de Jorah, mais lhe soavam verdadeiras.
– E por quem reza o senhor, Sor Jorah? – perguntou.
– Pela pátria – disse ele, a voz carregada de saudade.
– Eu também rezo pela pátria – disse ela, acreditando no que dizia.
Sor Jorah soltou uma gargalhada.
– Então olhe em volta, khaleesi.
Mas não foram as planícies que Dany viu então. Foi Porto Real e a grande Fortaleza Vermelha
que Aegon, o Conquistador, tinha construído. Foi Pedra do Dragão, onde nascera. No olho de sua
mente, esses lugares ardiam com mil luzes, um fogo em brasa em cada janela. No olho de sua
mente, todas as portas eram vermelhas.
– Meu irmão nunca recuperará os Sete Reinos – ela disse, compreendendo que já sabia disso
havia muito. Soubera-o por toda a vida. Nunca se permitira dizer as palavras, nem mesmo num
sussurro, mas dizia-as agora para que Jorah Mormont e todo mundo as ouvisse.
Sor Jorah lançou-lhe um olhar avaliador.
– Pensa que não?
– Ele não lideraria um exército mesmo se o senhor meu marido lhe oferecesse – Dany
respondeu. – Não tem nem uma moeda, e o único cavaleiro que o segue o insulta dizendo que é
menos que uma serpente. Os dothrakis zombam de sua fraqueza. Ele nunca nos levará para casa.
– Criança sensata – o cavaleiro sorriu.
– Não sou criança nenhuma – disselhe com ferocidade.
Apertou com os calcanhares os flancos de sua montaria, pondo a prata a galope. Correu cada
vez mais depressa, deixando Jorah, Irri e os outros muito para trás, com o vento quente nos
cabelos e o sol que se punha vermelho no rosto. Quando alcançou o khalasar, o crepúsculo já
chegara.
Os escravos tinham erguido sua tenda junto à margem de uma lagoa alimentada por uma
nascente. Ouviam-se vozes grosseiras vindas do palácio de folhas trançadas, na colina. Logo se
ouviriam gargalhadas, quando os homens de seu khas contassem o episódio que acontecera na
base da colina. Quando Viserys chegasse, coxeando, todos os homens, mulheres e crianças do
acampamento o reconheceriam como um caminhante. Não havia segredos no khalasar.
Dany entregou a prata aos escravos para que dela tratassem e foi para sua tenda. Sob a seda
fazia frio, e estava escuro. Ao deixar cair a porta de pano atrás das costas, Dany viu um dedo de
poeirenta luz vermelha estender-se para tocar os ovos de dragão do outro lado da tenda. Por um
instante, mil gotículas de chama escarlate nadaram perante seus olhos. Pestanejou, e elas
desapareceram.
Pedra, disse a si mesma. São apenas pedra, até Illyrio lhe dissera, os dragões estão todos
mortos. Pousou a palma da mão no ovo negro, com os dedos suavemente abertos pela curva da
casca. A pedra estava morna. Quase quente.
– O sol – sussurrou Dany. – O sol os aqueceu durante a viagem.
Ordenou às criadas que lhe preparassem um banho. Doreah fez uma fogueira fora da tenda,
enquanto Irri e Jhiqui foram buscar a grande banheira de cobre – outro presente de noivado –,
montadas em cavalos de carga, e trouxeram água da lagoa. Quando o banho começou a fumegar,
Irri a ajudou a entrar e, em seguida, também entrou.
– Já viu alguma vez um dragão? – perguntou, enquanto Irri lhe esfregava as costas e Jhiqui lhe
lavava abundantemente os cabelos com água para tirar a areia. Ouvira dizer que os primeiros
dragões tinham vindo do leste, das Terras das Sombras para lá de Asshai e das ilhas do Mar de
Jade. Talvez alguns ainda vivessem ali, em reinos estranhos e selvagens.
– Dragões já não há, khaleesi – disse Irri.
– Estão mortos – concordou Jhiqui. – Há muitos, muitos anos.
Viserys dissera-lhe que não fazia mais de século e meio que os últimos dragões Targaryen
tinham morrido, durante o reinado de Aegon III, conhecido como Desgraça dos Dragões. E, para
ela, não parecia tanto tempo assim.
– Em toda a parte? – perguntou, desapontada. – Mesmo no Leste? – a magia morrera no Oeste
quando a Perdição caíra sobre Valíria e as Terras do Longo Verão, e nem o aço forjado com
feitiços, nem os cantores de tempestade, nem os dragões conseguiram afastá-la, mas Dany sempre
ouvira dizer que o Leste era diferente. Diziam que manticoras1 percorriam as ilhas do Mar de Jade,
que basiliscos infestavam as selvas de Yi Ti, que encantadores, feiticeiros e aeromantes
praticavam abertamente suas artes em Asshai, ao passo que magos negros e de sangue elaboravam
terríveis feitiçarias na escuridão da noite. Por que não haveria de ter também dragões?
– Dragão, não – disse Irri. – Bravos homens os matam, porque dragões são terríveis, animais
malvados. É sabido.
– É sabido – concordou Jhiqui.
– Um mercador de Qarth disseme certa vez que os dragões vinham da Lua – disse a loura
Doreah enquanto aquecia uma toalha perto da fogueira.
Jhiqui e Irri eram da mesma idade de Dany, jovens dothrakis tomadas como escravas quando
Drogo destruiu o khalasar do pai delas. Doreah era mais velha, com quase vinte anos. Magíster
Illyrio a encontrara num palácio dos prazeres em Lys.
Molhados cabelos prateados caíram-lhe diante dos olhos quando Dany virou a cabeça, curiosa.
– Da Lua?
– Ele me disse que a Lua era um ovo, khaleesi – respondeu a jovem lysena. – Antes havia duas
luas no céu, mas uma delas se aproximou demais do Sol e rachou com o calor. Mil milhares de
dragões jorraram de dentro dela e beberam o fogo do Sol. É por isso que os dragões exalam
chamas. Um dia essa Lua também beijará o Sol, e então rachará e os dragões regressarão.
As duas jovens dothrakis riram.
– É uma tola escrava de cabelos de palha – disse Irri. – Lua não é ovo. Lua é deus, mulher
esposa do Sol. Todos sabem.
– Todos sabem – Jhiqui concordou.
A pele de Dany estava corada e cor-de-rosa quando saiu da banheira. Jhiqui a deitou para olear
seu corpo e limpar os poros. Depois disso, Irri aspergiu-a com flor-de-especiaria e canela.
Enquanto Doreah lhe escovava os cabelos até brilharem como seda fiada, Dany refletiu sobre a
Lua, os ovos e os dragões.
O jantar foi uma simples refeição de frutas, queijo e pão frito, com um cântaro de vinho com
mel para acompanhar.
– Doreah, fique e coma comigo – ordenou Dany quando mandou embora as outras criadas. A
lysena tinha cabelos da cor de mel e olhos que eram como o céu do verão.
Ela abaixou os olhos quando ficaram sozinhas.
– Honra-me, khaleesi – disse, mas não era honra alguma, apenas serviço. Ficaram sentadas,
juntas, até muito depois de a Lua nascer, conversando.
Naquela noite, quando Khal Drogo chegou, Dany o esperava. Ele parou à porta da tenda e a
olhou, surpreso. Ela se levantou devagar, abriu suas sedas de dormir e as deixou cair ao chão.
– Esta noite, devemos ir lá para fora, meu senhor – disselhe, pois os dothrakis acreditavam que
todas as coisas importantes na vida de um homem devem ser feitas a céu aberto.
Khal Drogo a seguiu para a luz do luar, com os sinos nos cabelos a tilintar baixinho. A alguns
metros da tenda havia uma cama com um macio colchão de ervas, e foi para lá que Dany o puxou.
Quando ele tentou virá-la, ela pôs-lhe a mão no peito.
– Não. Esta noite quero olhá-lo no rosto.
Não há privacidade no coração do khalasar. Dany sentiu olhos sobre ela enquanto o despia,
ouviu vozes baixas enquanto fazia as coisas que Doreah lhe dissera para fazer. Não tinha
importância. Não era a khaleesi? Os dele eram os únicos olhos que importavam, e quando o
montou viu algo neles que nunca vira antes. Cavalgou-o com tanto vigor como já cavalgara a sua
prata, e quando chegou o momento do prazer, Khal Drogo gritou seu nome.
Estavam no lado mais distante do Mar Dothraki quando Jhiqui afagou com os dedos o suave
inchaço na barriga de Dany e disse: – Khaleesi, está à espera de um bebê.
– Eu sei – Dany respondeu.
Isso aconteceu no décimo quarto dia do seu nome.