Capitulo 1 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


Um pensamento passa pela cabeça de Brian Blake enquanto ele se encolhe na escuridão
bolorenta, o terror sufocando o peito e a dor latejante nos joelhos: se ele tivesse um segundo par de
mãos, poderia pelo menos cobrir os próprios ouvidos e talvez bloquear o som das cabeças humanas
sendo partidas. Infelizmente, as únicas mãos que Brian possui estão ocupadas no momento,
cobrindo os ouvidos de uma menininha ao seu lado no armário.
Ela tem 7 anos e está tremendo nos braços dele, se encolhendo a cada vez que ouve os sons
intermitentes de PÉIM-GAHHH-TUM do lado de fora. Então vem o silêncio, interrompido apenas
pelo som grudento de botas sobre o chão de cerâmica ensanguentado e uma enxurrada de sussurros
raivosos no vestíbulo.
Brian tosse de novo. Não tem como evitar. Ele luta contra esse maldito resfriado há alguns
dias, uma dor incessante nas juntas e nas maçãs do rosto da qual não consegue se livrar. Com ele,
acontece sempre no outono, quando os dias na Geórgia começam a ficar mais úmidos e sombrios. A
umidade penetra os ossos, consome a energia dele e dificulta a respiração. E agora Brian ainda sente
uma rajada de calafrios toda vez que tosse.
Curvando-se com mais uma saraivada de tosses ritmadas típicas dos asmáticos, ele mantém
as mãos sobre as orelhas de Penny. Brian sabe que os sons que emana estão chamando todo tipo de
atenção do lado de fora do armário, a casa está na mais completa confusão, mas não tem nada que
ele possa fazer. Ele vê pequenos feixes de luz a cada tosse, como se fossem filigranas de fogos de
artifício cruzando as pupilas cegas.
O armário — que tem pouco mais de um metro de largura e talvez um metro de
profundidade — é tão escuro quanto um tinteiro e fede a naftalina, cocô de rato e madeira antiga.
Invólucros de plástico, cobrindo ternos e casacos, estão pendurados na escuridão, roçando o rosto
de Brian. O irmão mais novo dele, Philip, disse que não tinha problema tossir no armário. Aliás,
Brian poderia muito bem tossir a plenos pulmões, e acabar atraindo os monstros, mas o fato é que
ele não podia passar aquela maldita gripe para a filhinha de Philip. Porque, se isso acontecesse,
Philip quebraria a cabeça do irmão.
O surto de tosse passa.
Momentos mais tarde, mais uma série de passos irregulares interrompe o silêncio do lado de
fora do armário: é mais um morto entrando na zona de guerra. Brian aperta as orelhas de Penny com
mais força e a menina estremece diante de mais uma performance de “Cabeça partida” em ré menor.
Se lhe pedissem para descrever que merda estava acontecendo fora do armário, Brian Blake
provavelmente voltaria ao tempo de dono de uma loja de discos falida e diria que o som dos crânios
sendo rachados parecia uma sinfonia de percussão que poderia estar tocando no inferno — como
um trecho meio louco de uma composição de Edgard Varèse ou um solo de bateria de John Bonham
drogado —, com rimas e refrões repetitivos: a respiração ofegante dos seres humanos... os passos
arrastados de mais um cadáver em movimento... o silvo agudo de um machado... o som grave do
metal penetrando a carne...
...e, por fim, o grand finale, o splash de um peso molhado desfalecendo no piso de madeira
grudento.
Uma nova interrupção faz um calafrio percorrer a espinha de Brian. O silêncio volta a tomar
conta do ambiente. Com os olhos acostumados à escuridão, Brian vê o primeiro brilho do sangue
arterial espesso passando por debaixo da porta. Parece óleo de carro. Suavemente, ele afasta a
sobrinha da poça que vai se formando, puxando-a para junto das botas e dos guarda-chuvas
encostados na parede.
A bainha do pequeno vestido jeans de Penny toca o sangue. Imediatamente ela puxa o tecido
e esfrega a mancha com força, como se a simples absorção do sangue pudesse, de alguma maneira,
infectá-la.
Mais um surto de tosse faz Brian se curvar. Ele o segura. Engole em seco como se a garganta
inflamada estivesse cheia de cacos de vidro e abraça completamente a menininha. Ele não sabe o
que fazer, nem o que dizer. Quer ajudar a sobrinha. Quer sussurrar alguma coisa que passe
segurança para ela, mas não consegue pensar em nada que possa inspirar confiança.
O pai dela é quem saberia o que dizer. Philip saberia. Ele sempre sabe o que falar. Philip
Blake é o tipo do cara que diz as coisas que os outros gostariam de ter dito. Fala o que precisa ser
falado e faz o que precisa ser feito. Como agora. Ele está lá fora com Bobby e Nick, fazendo o que
tem que ser feito... enquanto Brian está escondido na escuridão como um coelho assustado,
desejando saber o que falar para a sobrinha.
Considerando o fato de que Brian é o mais velho dos dois irmãos, é esquisito que ele sempre
tenha sido o mais medroso. Mal chegando a 1,70 m de botas, Brian Blake é um sujeito franzino que
mais parece um espantalho e que mal consegue encher o jeans preto justo nas pernas e a camiseta
rasgada do Weezer que usa. Um débil cavanhaque, braceletes de macramê e um topete de cabelos
pretos à la Ichabod Crane terminam de compor a imagem de um cão sem dono de 35 anos que
parece preso numa síndrome de Peter Pan, e que agora está de joelhos na escuridão que fede a
naftalina.
Brian engole um pigarro e olha para Penny, que está de olhos arregalados e o semblante
mudo e aterrorizado, como um fantasma na escuridão do armário. Ela sempre foi uma menina muito
quieta, com o rostinho de uma boneca de porcelana chinesa, o que dava ao semblante um aspecto
quase etéreo. Mas, desde a morte da mãe, ela ficou ainda mais introvertida, mais estoica e distante,
a ponto de parecer quase translúcida, com mechas de cabelo muito preto tapando seus imensos
olhos.
Nos últimos três dias, ela mal disse uma palavra. É claro que foram três dias absolutamente
extraordinários — e o trauma afeta as crianças de maneira diferente dos adultos —, mas Brian está
preocupado. Penny pode estar entrando em estado de choque.
— Vai ficar tudo bem, garota — cochicha Brian, pontuando a frase com outra tossidinha.
Ela fala alguma coisa sem olhar para ele. Murmura enquanto encara o chão, uma lágrima
escorrendo pelo rostinho sujo.
— O que foi, Pen? — pergunta Brian, aninhando-a nos braços e limpando a lágrima.
Ela volta a falar alguma coisa, depois repete mais uma vez e outra, mas não exatamente para
Brian. Ela fala como se fosse um mantra, uma reza, ou um cântico.
— Nunca vai ficar bem. Nunca-nunca-nunca-nunca-nunca.
— Shhh.
Ele levanta a cabeça dela, apertando-a delicadamente contra as dobras da camiseta. Brian
sente o calor úmido do rosto da sobrinha nas costelas. Volta a lhe tapar as orelhas, quando ouve o
PÉIM de mais uma machadada do lado de fora do armário, arrebentando a membrana de uma
cabeça, atingindo um crânio duro, atravessando as camadas de dura-máter e indo parar na gelatina
cinzenta e polpuda do lóbulo occipital.
O som é igual ao de um taco de beisebol acertando uma bola molhada — e o jato de sangue
é como um pano de chão batendo no assoalho — seguido por um baque surdo, molhado e
tenebroso. Estranhamente, para Brian essa é a pior parte: aquele barulho oco e úmido de um corpo
caindo em cima do piso caro. Os azulejos foram feitos especialmente para a casa, com motivos
astecas e detalhes elaborados. Uma bela casa... pelo menos, um dia foi.
Mais uma vez, o barulho termina.
De novo, segue-se um silêncio assustador. Brian abafa uma tosse, segurando-a como se
fossem fogos de artifício prontos para explodir, para poder ouvir melhor a mínima diferença de
respiração do lado de fora do armário e os passos pegajosos andando por cima daquele horror. Mas,
dessa vez, o lugar está completamente silencioso.
Brian sente a menina se agarrar ao seu lado — a pobre Penny se preparando para mais uma
saraivada de machadadas —, mas o silêncio se prolonga.
A alguns centímetros dali, o ruído de um trinco se abrindo e da maçaneta da porta girando
faz arrepios percorrerem o corpo de Brian. A porta é aberta.
— Está tudo bem. Estamos bem. — A voz de barítono, rascante e regada a uísque, parte de
um homem que se debruça para olhar os fundos do armário. Os olhos piscam na escuridão e o suor
faz seu rosto brilhar. Vermelho pela matança de zumbis, Philip Blake segura o machado liso e
lustroso nas mãos calejadas de trabalhador.
— Tem certeza? — murmura Brian.
Ignorando o irmão, Philip olha para a filha.
— Está tudo bem, queridinha. O papai está bem.
— Tem certeza? — repete Brian, tossindo.
Philip olha para o irmão.
— Você poderia fazer o favor de tapar a boca?
Brian funga.
— Tem certeza que acabou?
— Querida... — Philip Blake se dirige delicadamente à filha, o leve sotaque sulista
denunciando o embate feroz e violento que só agora começa a sumir dos olhos. — Eu preciso que
você fique aí mais um minutinho, está bem? Até o papai dizer que está tudo bem e que você pode
sair. Entendeu?
Com um leve aceno, a menina pálida gesticula que entendeu.
— Vamos lá, amigo — diz Philip, tirando o irmão mais velho da sombra. — Vou precisar da
sua ajuda no serviço de limpeza.
Brian se levanta com dificuldade, abrindo passagem entre os cabides com sobretudos
pendurados.
Ele sai de dentro do armário e pisca os olhos ao se confrontar com a luz forte do vestíbulo.
Fixa o olhar, tosse e depois volta a fixar o olhar. Por um breve momento, parece que a magnífica
entrada da casa colonial de dois andares e amplamente iluminada por candelabros de cobre está
sendo redecorada por uma equipe de trabalhadores com paralisia cerebral. Grandes faixas cor de
berinjela mancham o papel de parede verde-água. Borrões de Rorschach pretos e grenás adornam o
piso e os rodapés. Então ele distingue as formas no chão.
Seis corpos estão espalhados em postas de sangue. Mal dá para perceber o sexo e a idade
com todas as carnes molhadas, as peles manchadas e esmaecidas e os crânios disformes. O maior de
todos está no meio de um poço de vômito, ao pé da grande escada circular. Outro, talvez o da dona
da casa, ou o de uma recepcionista oferecendo torta de pêssego e toda a hospitalidade do Sul, se
encontra agora estirado sobre o assoalho de parquete, desordenadamente contorcido, com um fio de
matéria cinzenta escorrendo do crânio partido.
Brian Blake sente o estômago subir e a garganta se dilatar involuntariamente.
— Muito bem, senhores. Temos muito trabalho pela frente — diz Philip aos dois amigos,
Nick e Bobby, e também ao irmão, mas Brian mal consegue ouvir por cima das batidas frenéticas
do coração.
Ele vê os outros restos mortais — nos últimos dois dias, Philip começou a chamar aqueles
que destruíam de “presuntos duplamente cozidos” — espalhados pelas tábuas escuras e bem
enceradas da entrada da sala. Talvez fossem os adolescentes que antes moravam ali, talvez fossem
visitantes que de repente sofreram com a inospitalidade sulista e ganharam uma mordida que os
infectou. O fato é que os corpos estão no meio de longos esguichos de sangue. Um deles, ou delas,
com a cabeça partida virada para baixo como uma sopeira derramada, continua a bombear o líquido
escarlate sobre o chão com a força de um hidrante quebrado. Outros dois ainda estão com as
lâminas das machadinhas presas no crânio, enfiadas até o cabo, como se fossem bandeiras de
exploradores triunfantemente fincadas em montanhas inatingíveis.
A mão de Brian voa até a boca, como se pudesse impedir o bolo que está subindo pelo
esôfago. Ele sente o alto do crânio latejar, como se uma mariposa estivesse batendo asas no alto do
cérebro. Olha para cima.
O sangue está pingando do candelabro lá em cima e um pingo cai bem no nariz de Brian.
— Nick, por que você não pega um daqueles sacos que a gente viu lá na...
Brian cai de joelhos no chão, se inclina para a frente e vomita tudo em cima do parquete. O
jato quente de bile cáqui se esparrama pelos azulejos e se mistura com os restos dos mortos caídos.
As lágrimas queimam os olhos de Brian, enquanto ele despeja quatro dias de perturbação da
alma naquele chão.
Philip expira com um sopro tenso, o jato de adrenalina ainda correndo pelo corpo. Por um
instante, ele faz um esforço para ir até o lado do irmão, mas tudo o que consegue fazer é ficar ali
parado, colocar no chão o machado ensanguentado e revirar os olhos. É um milagre que Philip não
tenha aberto um buraco ao redor dos olhos de tanto que já os revirou na vida por causa do irmão. E
o que mais ele deveria fazer? Aquele idiota é da família, e família é sempre família... especialmente
em momentos bizarros como esse.
Evidentemente, a semelhança existe, e sobre isso, não há nada que Philip possa fazer. Alto,
esguio, vigoroso, com os músculos retesados de um carregador, Philip Blake tem os mesmos traços
morenos do irmão, os mesmos olhos castanho-escuros e o mesmo cabelo cor de carvão da mãe, de
origem mexicana. O nome de solteira de Mama Rose era Garcia e as feições dela dominaram a
linhagem, mais do que as do pai dos garotos, um enorme e ignorante alcoólatra, descendente de
irlandeses chamado Ed Blake. Mas Philip, que era três anos mais novo que Brian, herdara todos os
músculos.
Ele está agora ali: 1,85 m de altura, calças jeans desbotadas, botas de trabalho e camisa de
cambraia, bigode de Fu Manchu e tatuagens de motoqueiro criminoso. E está prestes a levar sua
figura imponente até o irmão, que está passando mal, e talvez dizer umas palavras duras, quando se
contém. Ele ouve uma coisa de que não gosta vinda do outro lado do vestíbulo.
Bobby Marsh, velho amigo de Philip, dos tempos do Ensino Médio, está ao lado da base da
escada, limpando a lâmina do machado nas calças jeans de tamanho extragrande. Um sujeito
robusto de 32 anos que abandonou a faculdade no terceiro ano, com os cabelos castanhos oleosos
puxados para trás em um rabo de cavalo, Bobby Marsh não é exatamente obeso, mas com certeza
está acima do peso, e com certeza é o tipo de cara que os colegas da Burke County High chamariam
de balofo. Ele agora solta um risinho nervoso, agudo, que faz a barriga tremer, enquanto vê Brian
vomitar. A risada é oca e sem graça — uma espécie de tique nervoso que Bobby não consegue
controlar.
Essa risada ansiosa começou há três dias, quando um dos primeiros mortos-vivos
perambulou para fora da área de serviço de um posto de gasolina nas proximidades do aeroporto de
Augusta. Vestido com um macacão ensanguentado, o troglodita grudento saiu do esconderijo com
um rolo de papel higiênico preso no calcanhar e tentou transformar o gordo pescoço de Bobby na
próxima refeição, até que Philip entrou em ação e golpeou aquele troço com um pé de cabra.
A descoberta daquele dia, de que um bom golpe na cabeça dá perfeitamente conta do recado,
despertou mais risadas nervosas em Bobby — nitidamente um mecanismo de defesa —, além de
muita conversa nervosa sobre ser “alguma coisa que está na água, cara, como uma peste negra”.
Mas Philip não queria saber a razão de toda aquela merda naquela hora, e com certeza também não
queria ouvir essas razões agora.
— Ei! — grita Philip, dirigindo-se ao balofo. — Você acha isso engraçado?
As risadas de Bobby cessam.
Do outro lado da sala, ao lado de uma janela que dá para um vasto quintal escuro, no
momento coberto pela noite, uma quarta pessoa assiste a tudo com desconforto. Nick Parsons, outro
amigo de longa data de Philip, é um sujeito magro, compacto, de 30 e poucos anos, com roupa de
mauricinho e o cabelo raspado de fuzileiro naval, como um eterno esportista de colégio. O religioso
do grupo, foi Nick quem mais demorou a se acostumar com a ideia de destruir coisas que um dia
foram seres humanos. Agora, com os tênis e as calças cáqui manchados de sangue e os olhos
queimando com o trauma, ele vê Philip se aproximar de Bobby.
— Desculpa, cara — murmura Bobby.
— A minha filha está lá dentro — diz Philip, quase encostando o nariz no de Marsh. A
reação química da raiva, da dor e do pânico pode incendiar Philip Blake quase que
instantaneamente.
Bobby olha para o chão manchado de sangue.
— Desculpa, desculpa.
— Vá pegar os sacos, Bobby.
A dois metros dali, Brian Blake, ainda de quatro no chão, termina de expelir o que sobrou no
estômago e continua a arrotar em seco.
Philip vai até o irmão mais velho e se ajoelha ao lado dele.
— Põe tudo para fora.
— Eu... é... — resmunga Brian, fungando, tentando terminar a frase.
Suavemente, Philip põe a mão grande e calejada sobre os ombros caídos do irmão.
— Está tudo bem, irmão... É só colocar tudo para fora.
— Me... desculpe.
— Está tudo bem.
Brian consegue se controlar e enxuga a boca com as costas da mão.
— Você acha que pegou todo mundo?
— Acho que sim.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Você já olhou em todos os cantos? Como o porão e coisa e tal?
— Sim, senhor. Já olhei. Todos os quartos... até o sótão. O último saiu do esconderijo
quando ouviu essa sua maldita tosse, que é suficientemente alta para acordar até quem já morreu.
Uma adolescente. Quis almoçar o queixo do Bobby.
Brian engole em seco, crua e dolorosamente.
— Todas essas pessoas... moravam aqui?
Philip solta um suspiro.
— Agora não moram mais.
Brian consegue dar uma geral na sala e então volta os olhos para o irmão. Está com o rosto
todo molhado de lágrimas.
— Mas parecia que eles formavam... uma família.
Philip faz que sim e não diz nada. A vontade é de simplesmente dar de ombros — e daí,
porra —, mas ele só continua a fazer que sim com a cabeça. Ele não está pensando na família de
zumbis que acabou de despachar, ou nas implicações daquela carnificina de embrulhar o estômago à
qual se dedicou nos últimos três dias, matando pessoas que até há pouco eram mães que
acompanhavam as partidas de futebol dos filhos, carteiros e funcionários de postos de gasolina.
Ontem, Brian entabulou uma discussão intelectual idiota sobre a diferença entre moral e ética numa
situação como essa: do ponto de vista moral, nunca se deve matar uma pessoa, nunca, mas,
eticamente, que é algo um pouco diferente, deve-se adotar o princípio de matar somente em
legítima defesa. Mas Philip não acha que o que estão fazendo é matar. Não dá para matar o que já
está morto. Eles estão é esmagando, como se fosse um inseto, e seguindo em frente, sem parar para
pensar tanto.
O fato é que, no momento, Philip nem sequer está pensando no próximo movimento que o
pequeno grupo excêntrico de extermínio vai fazer — uma decisão que vai acabar sendo tomada
exclusivamente por ele (que virou o líder de fato da tropa, portanto é bom se conformar com isso).
No momento, Philip Blake está concentrado num único objetivo: como o pesadelo começou há
menos de 72 horas e as pessoas não paravam de se transformar, por motivos que ninguém ainda
descobriu, tudo em que Philip conseguiu pensar foi proteger Penny. Por isso saíra correndo da
cidade natal, Waynesboro, havia dois dias.
Sendo uma pequena comunidade de agricultores na parte mais ao leste do centro da Geórgia,
a cidade foi para o espaço rapidamente quando as pessoas começaram a morrer e voltar. Mas foi a
segurança de Penny que acabou convencendo Philip a fugir. Foi por causa de Penny que ele
convocou a ajuda dos dois amigos de colégio; e foi por causa dela que partiu na direção de Atlanta,
onde, pelo que dizia o noticiário, estavam surgindo centros de refugiados. Tudo por causa de Penny.
Ela é tudo o que restou para Philip. É a única coisa que faz a vida dele valer a pena, a única
salvação para sua alma ferida.
Muito antes de estourar aquela epidemia inexplicável, o vazio no coração de Philip o fisgava
às 3 horas da manhã nas noites mal-dormidas. A hora exata em que perdera a esposa — difícil
acreditar que já fazia quatro anos — numa estrada ao sul da cidade de Athens, na Geórgia, que a
chuva deixara escorregadia. Sarah tinha ido visitar uma amiga na Universidade da Geórgia, bebeu
um pouco e perdeu a direção numa estrada sinuosa que passava por Wilkes County.
Desde o momento em que identificou o corpo, Philip soube que nunca mais voltaria a ser a
mesma pessoa. Não hesitou em fazer a coisa certa — arranjar dois empregos para manter Penny
alimentada, vestida e bem-cuidada —, porém nunca mais seria o mesmo. Talvez essa fosse a razão
de tudo aquilo estar acontecendo. Uma brincadeirinha de Deus. Quando os gafanhotos chegam e o
rio fica vermelho de sangue, o cara que tem mais a perder passa a ser o líder do grupo.
— Não importa quem eles eram — diz Philip, finalmente, para o irmão —, nem o que eles
eram.
— É... Eu acho que você tem razão. — Àquela altura, Brian já conseguira se sentar reto, de
pernas cruzadas, no chão, respirando profundamente e com dificuldade. Ele olha para Bobby e
Nick, do outro lado da sala, desenrolando grandes cobertas de lona e abrindo sacos de lixo. Eles
começam a rolar os corpos, ainda úmidos e pingando, para cima da lona.
— A única coisa que importa é limparmos este lugar agora — comenta Philip. — A gente
pode passar esta noite aqui e, se conseguirmos um pouco de gasolina de manhã, dá para chegar a
Atlanta amanhã.
— Só que isso não faz nenhum sentido — murmura Brian, olhando de um cadáver para
outro.
— Do que você está falando?
— Olhe só para eles.
— O quê? — Philip olha por cima do ombro, para os restos asquerosos da matriarca sendo
enrolada na lona. — O que tem eles?
— É só uma família.
— E daí?
Brian tosse na manga da camisa e depois limpa a boca.
— O que estou querendo dizer é... nós temos a mãe, o pai, quatro filhos adolescentes... e é
isso.
— É isso, e daí?
Brian olha para Philip.
— Então, como é que uma merda dessas acontece? Todos eles... se transformaram juntos?
Será que um deles foi mordido e trouxe a doença para dentro?
Philip pensa no assunto por alguns instantes — afinal, ele também está tentando entender
exatamente o que está acontecendo, como essa loucura toda funciona —, mas no fim ele acaba se
cansando de tanto pensar.
— Vamos lá. Levanta a bunda daí e vem ajudar — diz ele, simplesmente.
Eles levam aproximadamente uma hora para limpar tudo. Durante todo o processo, Penny
fica no armário. Philip leva para ela um bichinho de pelúcia do quarto de uma das crianças e diz que
não vai demorar muito até ela poder sair. Brian enxuga o sangue, tossindo de vez em quando,
enquanto os outros três arrastam os corpos cobertos pelas lonas — dois grandes e quatro pequenos
—, passando pelas portas de correr dos fundos e pelo grande deque de cedro.
É fim de setembro e o céu da noite está claro e frio como um oceano negro, com um
turbilhão de estrelas brilhando, provocando-os com piscadas alegres e impassíveis. A respiração dos
três homens pode ser vista na escuridão, enquanto arrastam os embrulhos sobre as tábuas cobertas
de orvalho. Carregam machados nos cintos. Philip tem uma arma enfiada na parte de trás. É uma
velha Ruger .22 que ele comprou num brechó há muitos anos, mas ninguém quer acordar os mortos
com um tiro a essa altura do campeonato. É possível ouvir o barulho característico dos mortos-vivos
trazido pelo vento — gemidos abafados, passos arrastados —, chegando de algum lugar da
escuridão dos jardins vizinhos.
O início de outono está incomumente frio e nessa noite o termômetro deve baixar ainda
mais, até cerca de cinco graus, talvez até menos. Ou, pelo menos, foi isso o que anunciou a estação
de rádio AM local antes de o sinal desaparecer numa saraivada de chiados. Até esse ponto da
viagem, Philip e equipe vinham monitorando o rádio, a TV e a internet pelo BlackBerry de Brian.
No meio de todo aquele caos, os noticiários vinham assegurando às pessoas que tudo estava
muito bem — que o maravilhoso e confiável governo estava no comando da situação — e esse
pequeno transtorno seria resolvido em poucas horas. Avisos regulares aparecem nas frequências da
defesa civil, pedindo às pessoas que fiquem em casa e que se afastem das regiões escassamente
habitadas, que lavem as mãos regularmente, tomem somente água mineral e blá-blá-blá.
É claro que ninguém tem respostas. E talvez o sinal mais sinistro de todos fosse o número
cada vez maior de estações que entravam em colapso. Felizmente, os postos de gasolina têm
gasolina, os armazéns ainda têm produtos e a rede elétrica, os sinais de trânsito e as delegacias de
polícia e toda a infraestrutura parece estar funcionando.
Mas Philip teme que uma queda de energia possa aumentar os riscos de uma forma
absolutamente formidável.
— Vamos colocá-los naquelas latas de lixo grandes que ficam atrás da garagem — diz
Philip, tão baixinho que é quase um sussurro, erguendo dois embrulhos de lona até a cerca de
madeira ao lado da garagem, a qual tem espaço para três carros. Ele quer dar cabo disso rápido e
sem fazer barulho. Não quer atrair nenhum zumbi. Sem fogo, sem qualquer barulho mais alto e, se
puder, sem disparar tiros.
Há um estreito caminho de cascalho, logo atrás da cerca de dois metros de altura, que serve
às pomposas e espaçosas garagens que se enfileiram junto aos jardins. Nick levanta o embrulho por
cima do portão da cerca, um conjunto sólido de tábuas de cedro, com um puxador de ferro fundido.
Deixa a lona cair e abre o portão.
Um cadáver está à sua espera, de pé, do outro lado do portão.
— CUIDADO, PESSOAL! — grita Bobby Marsh.
— Cale a boca! — sussurra Philip, sacando a machadinha do cinto e já com meio corpo para
fora do portão.
Nick se encolhe.
O zumbi o ataca, com passos pesados, errando o lado esquerdo do peito por milímetros — o
som dos dentes amarelos batendo inutilmente ao errar o alvo é como o clique de uma castanhola —
e, à luz da Lua, Nick pode ver que é um homem idoso, com um suéter bem gasto da Izod, calças de
golfe e chuteiras caras, o brilho da Lua refletindo nos olhos leitosos, tomados pela catarata: o avô de
alguém.
Nick dá uma boa olhada naquela coisa antes de tropeçar para trás e cair de bunda sobre a
vicejante grama azul. O golfista morto percorre trôpego o espaço deixado por Nick até alcançar o
gramado, exatamente quando um ferro enferrujado arqueia pelo céu de relance.
O lado afiado da machadinha de Philip aterrissa perfeitamente a cabeça do monstro,
quebrando o crânio do velho como se fosse um coco, rasgando a membrana densa e fibrosa de
dura-máter e afundando no gelatinoso lóbulo parietal. O som é parecido com o de um aipo sendo
partido e lança um coágulo de fluido asqueroso no ar. A vivacidade de um inseto no rosto do vovô
se dissolve na mesma hora, como um desenho animado em que o projetor acabou de pifar.
O zumbi desmorona no chão com a deselegância de um saco de lavanderia vazio.
A machadinha, ainda bem entranhada no cadáver, faz Philip ir até lá e se abaixar. Ele a puxa.
A lâmina está presa.
— Fecha a merda do portão agora. Fecha o portão e em silêncio, porra — diz Philip, ainda
tentando sussurrar freneticamente, enquanto prende a bota Chippewa com bico de aço na cabeça
destroçada do cadáver.
Os outros dois homens se movem como que num balé, Bobby larga imediatamente seu
embrulho e corre até o portão. Nick se põe de pé com dificuldade e recua, horrorizado. Bobby
rapidamente desce a tranca de ferro. Ela faz um barulho metálico oco e tão alto que ressoa por todos
os gramados escuros.
Finalmente, Philip consegue soltar a machadinha do crânio teimoso do zumbi — ela sai com
um leve barulho aguado — e se volta para os restos da família, a cabeça no mais completo pânico,
quando ouve uma coisa estranha, algo inesperado vindo de dentro da casa.
Ele levanta os olhos e vê a traseira da casa colonial, a vidraça toda iluminada por uma luz
que vem de dentro.
A silhueta de Brian aparece atrás da porta de correr, batendo na janela, fazendo sinal para
Philip e os outros voltarem depressa, imediatamente. O rosto de Brian está incandescente com
urgência. E não tem nada a ver com o cadáver do jogador de golfe, Philip sabe disso. Tem alguma
coisa errada.
Ai, meu Deus, não permita que seja com Penny.
Philip larga a machadinha e atravessa o gramado em segundos.
— E os presuntos? — grita Bobby Marsh.
— Deixa eles aí! — berra Philip de volta, engolindo os degraus para o deque em direção à
porta de correr.
Brian já está esperando com a porta entreaberta.
— Cara, eu tenho que mostrar uma coisa.
— O que é? É Penny? Ela está bem? — Philip mal consegue respirar quando entra na casa.
Bobby e Nick também estão chegando ao deque e entram no calor da casa colonial.
— Penny está bem — responde Brian, que segura um porta-retrato. — Ela está bem. Disse
que não vai se importar de ficar mais um tempinho no armário.
— Judas Priest, Brian. Mas que merda! — responde Philip recuperando o fôlego e cerrando
os punhos.
— Eu tenho que te mostrar uma coisa. Você quer passar a noite aqui? — Brian se vira para a
porta de correr. — Olha. A família toda morreu aqui, certo? Todos os seis? Seis?
Philip passa a mão pelo rosto.
— Desembucha logo, porra.
— Olha. De algum jeito, todos eles se transformaram juntos. Como uma família, correto? —
Brian tosse e aponta para os seis embrulhos pálidos deixados perto da garagem. — Tem seis mortos
no gramado. Agora olha aqui. A mamãe, o papai e quatro filhos.
— E daí, porra?
Brian segura o porta-retrato, que mostra a família num tempo mais feliz, todos sorrindo
desajeitados, na melhor roupa de domingo.
— Eu encontrei isso aqui no piano.
— E...?
Brian aponta para o mais novo da foto, um garoto de 11 ou 12 anos, num pequeno blazer
azul-marinho, franjas louras e um sorriso forçado.
Brian olha para o irmão e fala, gravemente.
— Na foto, eles são sete.