Capitulo 2 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


A graciosa casa colonial de dois andares que Philip escolheu para aquela longa parada fica
numa ruela muito bem cuidada no meio de um labirinto cercado de árvores, num condomínio
fechado chamado Wiltshire Estates.
Situado na margem da Rodovia 278, a mais ou menos 30 quilômetros de Atlanta, a
comunidade de 24 quilômetros quadrados fica no meio de uma reserva florestal de pinheiros densos
de folhas longas e de enormes e antigos carvalhos. O lado sul é vizinho de um campo de golfe de 36
buracos, projetado por Fuzzy Zoeller.
No prospecto, que Brian Blake encontrou no chão de uma guarita abandonada mais cedo
naquela noite, um texto comercial todo floreado faz o lugar parecer um sonho bucólico, direto do
programa de Martha Stewart: O Wiltshire Estates proporciona um estilo de vida premiado, com
muitos benefícios de ponta (...) Considerado o “Melhor entre os Melhores” pela GOLF Magazine
Living (...) e lá também se encontra o Shady Oaks Plantation Resort e Spa, agraciado com Cinco
Diamantes e cotação AAA, (...) patrulhas de segurança 24 horas por dia, (...) casas que vão de US$
475.000 a mais de 1 milhão.
O grupo de Blake chegou ao elegante portão principal no pôr do sol daquele dia, a caminho
dos centros de refugiados de Atlanta, todos amontoados no enferrujado Chevrolet Suburban de
Philip. À luz dos faróis, eles viram os sofisticados remates de ferro e a inscrição grande e arqueada
com o nome Wiltshire gravado em metal e pararam ali para investigar.
No começo, Philip achava que o lugar poderia servir para uma parada rápida, um lugar para
descansar e talvez arranjar suprimentos, antes de partir para a última etapa da viagem até a cidade
grande. Talvez pudessem encontrar outras pessoas como eles, seres vivos, talvez até uns bons
samaritanos que pudessem ajudá-los. Mas conforme os cinco viajantes famintos, cansados, exaustos
e aflitos deram a primeira volta pelas sinuosas ruas do Wiltshire, com a noite caindo rapidamente,
perceberam que o lugar estava, quase totalmente, morto.
Nenhuma luz acesa nas janelas. Pouquíssimos carros se encontravam nas calçadas ou na
frente das casas. Um hidrante esguichava água numa esquina, sem ninguém por perto, lançando um
jato de espuma sobre um dos gramados. Em outra esquina, um BMW abandonado jazia com a
frente arrebentada em volta de um poste da companhia telefônica, com a porta do passageiro aberta
e retorcida. Aparentemente, as pessoas tinham fugido às pressas.
O motivo da fuga, pelo menos o principal, podia ser visto nas sombras distantes do campo
de golfe, nas ravinas atrás do resort e até aqui e ali, pelas ruas bem-iluminadas. Zumbis se
arrastavam sem rumo como os resquícios fantasmagóricos das pessoas que haviam sido, as bocas
abertas e bambas proferindo gemidos enferrujados que Philip conseguia ouvir perfeitamente,
mesmo com todos os vidros do Suburban fechados, enquanto passava pelo labirinto de ruas amplas
e recém-pavimentadas.
A pandemia ou o ato de Deus — ou seja lá o que tivesse dado início àquilo — devia ter
acertado o Wiltshire Estates com força e rapidez. A maioria dos mortos-vivos parecia estar nas
trilhas e nas subidas e descidas do campo de golfe. Alguma coisa deve ter acontecido para acelerar o
processo. Talvez seja porque os jogadores de golfe são normalmente mais velhos e lentos. Talvez os
mortos-vivos os achassem apetitosos. Quem iria saber? Mas é visível, mesmo a centenas de metros
de distância — observando em meio às árvores e esticando a vista por cima das cercas que um dia
garantiram a privacidade — que um número enorme, talvez centenas, de mortos-vivos está
congregado no amplo complexo de chalés, fairways, pontes e obstáculos de areia.
Na calada da noite, eles parecem insetos zumbindo monotonamente numa colmeia.
Era desconcertante de se ver, mas, de alguma maneira, o fenômeno deixou a comunidade
vizinha, com seu circuito infindável de becos sem saída e pistas sinuosas, relativamente
abandonada. E quanto mais Philip e os outros passageiros boquiabertos circulavam pelas
redondezas, mais eles ansiavam em provar um pedacinho daquele estilo de vida premiado, só um
gostinho, apenas para poderem se fartar um pouco e recarregar as baterias.
Achavam que podiam passar a noite ali e talvez começar tudo de novo na manhã seguinte.
Escolheram a grande casa colonial no final da Green Briar Lane, porque parecia
suficientemente distante do campo de golfe e assim não chamaria a atenção da horda. Tinha um
jardim bem grande com um ótimo campo de visão e uma cerca alta e forte, que garantia a
privacidade. Também parecia vazia. Mas, quando eles cuidadosamente manobraram o Suburban no
meio da grama até uma entrada lateral, deixando o veículo destrancado e as chaves na ignição, e
entraram, um de cada vez, por uma janela, a casa, quase que imediatamente, se manifestou para dar
cabo deles. Os primeiros estalos vieram do segundo andar. Foi aí que Philip mandou Nick voltar ao
Suburban e pegar os inúmeros machados que tinham trazido no porta-malas.
— Eu já falei que a gente pegou todos — diz Philip, tentando acalmar o irmão, do outro lado
da cozinha, na mesa de café da manhã.
Brian não responde, só fica olhando para a tigela de cereais ensopados. Um frasco de xarope
para tosse está ao lado e Brian já tomou um quarto dele.
Penny está ao lado dele, também com uma tigela de cereais à frente. Um pequeno pinguim
de pelúcia, do tamanho de uma pera, está ao lado da tigela e volta e meia Penny leva a colher até a
boca do bichinho, fingindo dividir a comida com ele.
— Nós revistamos cada centímetro desta casa — continua Philip, enquanto abre um armário
depois do outro. A cozinha está farta, brilhando com mantimentos e luxos da classe alta: cafés
gourmets, processadores de última geração, taças de cristal, adegas de vinho, massas feitas à mão,
geleias chiques, condimentos de todas as variedades, bebidas caras e instrumentos para a cozinha de
todos os tipos. O gigantesco fogão Viking é absolutamente impecável e a enorme geladeira
Sub-Zero está cheia de carnes e frutas caras, pães, laticínios e caixinhas de comida chinesa com
sobras de restaurantes ainda frescas.
— Ele pode ter ido visitar um parente ou coisa parecida — acrescenta Philip, percebendo
um belo uísque puro malte numa prateleira. — Pode até ter ido para a casa dos avós, ou estar na
casa de um amigo, um monte de coisas.
— Meu Deus do céu, olha só isso! — exclama Bobby Marsh, do outro lado da cozinha. Ele
está na frente da despensa e inspeciona ardorosamente os mantimentos que encontra lá dentro. —
Isso aqui parece mais a Fantástica Fábrica de Chocolate da porra do Willy Wonka... cookies,
biscoitos de champanhe e pão ainda estão fresquinhos.
— O lugar é seguro, Brian — assegura Philip, pegando a garrafa de uísque.
— Seguro? — Brian Blake olha fixamente para o tampo da mesa. Ele tosse e faz uma careta.
— Foi o que eu disse. Aliás, eu estava até pensando em...
— Acabei de perder mais um! — grita uma voz do outro lado da cozinha.
É Nick. Nos últimos dez minutos, ele andou zapeando, nervoso, pelos canais de uma
pequena TV de plasma debaixo de um armário à esquerda da pia, verificando se as estações locais
tinham alguma novidade e agora, às 11h45 no fuso horário da Região Central, a Fox 5 News de
Atlanta acabou de se transformar numa tela em branco. Tudo o que resta no decodificador de TV a
cabo, além das emissoras nacionais mostrando reprises de programas da natureza e filmes antigos, é
o grande baluarte de Atlanta, a CNN, e tudo o que eles estão mostrando no momento são anúncios
de emergência mecanizados, as mesmas telas de advertência com os mesmos tópicos que vêm sendo
exibidos há vários dias. Até o BlackBerry de Brian está indo para o espaço, com o sinal muito fraco
na área. Nas poucas horas em que ele funciona, o aparelho fica cheio de e-mails sem remetente e
tags do Facebook e tweets anônimos com mensagens enigmáticas do tipo: ...E TODO O REINO
VAI SER TOMADO PELA ESCURIDÃO...
...FORAM OS PÁSSAROS CAINDO DO CÉU QUE COMEÇARAM ISSO...
...QUEIMEM TUDO, QUEIMEM TUDO...
...AS BLASFÊMIAS DIRIGIDAS CONTRA DEUS...
...SE BOBEAR, MORRE...
...A CASA DO SENHOR VIROU UM VERDADEIRO REFÚGIO DE DEMÔNIOS...
...EU NÃO TENHO CULPA, SOU UM LIBERTÁRIO...
...ME COMA...
— Desliga isso, Nick — pede Philip, melancólico, afundando numa cadeira num canto da
mesa de café da manhã com a garrafa. Ele franze a testa e apalpa a parte de trás do cinto, onde o
revólver está aninhado. Põe a Ruger na mesa e tira a tampa do uísque. E toma um belo gole.
Brian e Penny encaram a arma.
Philip volta a tampar o uísque e então joga a garrafa para Nick, do outro lado da cozinha,
que a agarra com toda a pompa de um jogador de beisebol (que ele já foi um dia).
— Se liga no canal das bebidas enquanto isso. Você precisa é dormir, pare de olhar para
telas.
Nick bebe um gole. Depois, mais outro e aí volta a fechar a garrafa e a joga de volta para
Bobby.
Ele quase deixa a garrafa cair. Ainda na despensa, está muito ocupado devorando uma caixa
inteira de biscoitos Oreo, e uma crosta preta já se forma nos cantos da sua boca. Bobby aproveita
para engolir os biscoitos com um vasto gole do uísque e solta um arroto de satisfação.
Beber é uma coisa que Philip e os dois amigos estão acostumados a fazer juntos e nessa
noite é mais necessário do que nunca. Começou no primeiro ano da Burke County, com creme de
menta e licor de melancia em pequenos acampamentos nos quintais uns dos outros. Depois,
progrediram para os drinques de cerveja com bebidas destiladas depois dos jogos de futebol.
Ninguém tem tanta resistência à bebida como Philip Blake, mas os outros dois chegam bem perto.
No começo da vida de casado, Philip se embriagava frequentemente na companhia dos dois
amigos de escola, principalmente para se lembrar de como era bom ser solteiro e irresponsável.
Mas, depois da morte de Sarah, os três acabaram se afastando. O estresse de ser pai solteiro e de
trabalhar de dia na oficina e à noite dirigindo o caminhão de frete, com Penny no compartimento
para dormir, acabava consumindo-o. As saídas com os amigos foram se tornando cada vez mais
raras. Mas, de vez em quando, inclusive no mês passado, Philip ainda arranjava tempo para se
encontrar com Bobby e Nick no Tally Ho ou no Wagon Wheel Inn, ou em algum outro lugar de
Waynesboro, para uma noite de boas gargalhadas (enquanto Mama Rose cuidava de Penny).
Nos últimos anos, Philip começou a pensar se saía com Bobby e Nick só para se lembrar de
que estava vivo. Talvez fosse por isso que, no domingo passado, quando a merda bateu no
ventilador em Waynesboro e ele decidiu pegar Penny e fugir para um lugar seguro, ele chamou Nick
e Bobby para acompanhá-lo na viagem. Eles faziam parte do passado de Philip e, de alguma
maneira, isso ajudava.
No entanto, ele nunca pensara em levar também Brian. Topar com ele fora um acidente. No
primeiro dia na estrada, uns 65 quilômetros a oeste de Waynesboro, Philip fez um rápido desvio
para Deering, para ver como estavam os pais. Os dois velhinhos moravam numa comunidade de
aposentados perto da base militar de Fort Gordon. Quando Philip chegou na pequena residência
local de seus pais, descobriu que toda a população de Deering tinha sido transferida para a base,
para ficar em segurança.
Essa foi a boa notícia. A má notícia era que Brian estava lá. Preso na casa deserta, todo
encolhido no porão, petrificado com o número crescente de mortos-vivos que se espalhavam pelos
campos. Philip tinha quase se esquecido da situação atual do irmão: Brian voltara para a casa dos
pais depois que seu casamento com uma jamaicana maluca de Gainesville foi por água abaixo —
literalmente. A garota jogou a toalha e pegou um barco de volta para a Jamaica. Isso, juntamente
com o fato de que todos os empreendimentos malucos de Brian deram errado — a maioria
financiada com o dinheiro dos pais (como a última e brilhante ideia de abrir uma loja de discos na
cidade de Athens, quando já havia uma em cada esquina) —, fez Philip torcer a cara ante a
perspectiva de ter que cuidar do irmão por qualquer tempo que fosse. Mas o que estava feito, estava
feito.
— Ei, Philly — grita Bobby do outro lado da sala, dando cabo dos últimos biscoitos —,
você acha que os tais campos de refugiados na cidade ainda estão funcionando?
— Como é que eu vou saber? — Philip olha para a filha. — Como você está, meu
amorzinho?
A menininha dá de ombros.
— Bem. — A voz é quase inaudível, como o chiado do vento soprando. Ela olha para o
pinguim de pelúcia. — Eu acho.
— O que você acha desta casa? Você gosta?
Ela dá de ombros outra vez.
— Não sei.
— O que diria se a gente passasse um tempinho aqui?
Isso chama a atenção de todo mundo. Brian olha para o irmão. Todos os olhares se voltam
para Philip.
— O que você chama de “um tempinho”? — diz Nick, finalmente.
— Me passa a garrafa — diz Philip, fazendo um sinal para Bobby. Ela chega e Philip toma
um longo gole, deixando a bebida arder deliciosamente. — Olha só para isso aqui — responde,
depois de enxugar a boca.
Brian está confuso.
— Você disse só por uma noite, né?
Philip respira fundo.
— É, mas agora estou meio que mudando de ideia.
— Tá, mas... — começa Bobby.
— Olha. É só uma ideia. Talvez seja melhor a gente ficar escondido por um tempinho.
— Tudo bem, Philly, mas e...
— A gente pode ficar quieto aqui, Bobby, ver o que acontece.
Nick ouviu tudo atentamente.
— Philip, fala sério. O noticiário diz o tempo inteiro que as cidades são os lugares mais
seguros...
— O noticiário? Caramba, Nick, deixa de ser tapado. O noticiário está indo para o ralo tanto
quanto o resto da população. Olha só para este lugar. Você acha que um alojamento improvisado
pelo governo vai ter este tipo de mantimentos, cama para todo mundo, comida suficiente para várias
semanas, uísque de 22 anos? Banheiro com água quente e máquina de lavar?
— Mas a gente já está tão perto... — diz Bobby, depois de pensar por um momento.
Philip suspira.
— É, bem... perto é um termo muito relativo.
— Uns 30 quilômetros, no máximo.
— Por mim, podem ser até 30 mil quilômetros, com tantos destroços pela estrada e a 278
infestada com aquelas coisas.
— Isso não vai nos impedir — afirma Bobby. Seus olhos se iluminam e ele estala os dedos.
— Na frente do Chevy, a gente monta uma... como é que se chama?... uma pá de escavadeira do
caralho, como no Mad Max 2...
— Olha o palavreado, Bobby — diz Philip, apontando a menininha com o queixo.
É a vez de Nick falar.
— Cara, se a gente ficar aqui, vai ser só uma questão de tempo até aqueles troços lá no... —
Ele para e olha para a menina. Todo mundo sabe do que ele está falando.
Penny examina os cereais sem graça, como se não estivesse escutando.
— Este lugar é sólido, Nicky — rebate Philip, pousando a garrafa e cruzando os braços
musculosos sobre o peito. Philip já tinha pensado bastante nas hordas de mortos-vivos que
perambulavam pelo campo de golfe. A ideia era ficar quieto, deixando a luz apagada à noite, sem
mandar sinais, cheiros ou qualquer movimento inadequado. — Enquanto a gente tiver energia e
ficar com a cabeça no lugar, a gente vai ficar bem.
— Com uma arma só? — pergunta Nick. — Quer dizer, a gente nem pode disparar essa
arma, sem chamar a atenção deles.
— A gente pode verificar as outras casas e procurar mais armas. Esses ricos filhos da mãe
gostam muito de caçar veados, talvez dê até para achar um silenciador para a Ruger... ou então a
gente faz um, porra. Você viu aquela oficina lá embaixo?
— Fala sério, Philip? Quer dizer que agora nós viramos fabricantes de armas? Quero dizer...
Tudo o que nós temos para nos defender agora são só uns...
— O Philip tem razão.
A voz de Brian faz todo mundo se assustar — pela certeza com que ele se posiciona, num
tom rouco e sibilino. Ele afasta a tigela de cereais à frente e olha para o irmão.
— Você tem razão.
Philip provavelmente é quem mais se espanta com a convicção que emana do tom anasalado
do irmão.
Brian se levanta, dá a volta na mesa e fica parado no corredor que dá para a sala espaçosa e
bem-decorada. As luzes estão apagadas e todas as cortinas, fechadas. Brian aponta para a parede da
frente.
— Basicamente, o problema é a frente da casa. As laterais e os fundos estão bem protegidos
por aquela cerca alta. Os mortos não parecem ser capazes de passar por barreiras e coisas desse
tipo... e todas as casas desse quarteirão têm uma cerca no quintal. — Por um momento, parece que
Brian vai tossir, mas ele se contém e leva a mão à boca. A mão está tremendo. Ele prossegue. — Se
nós pudermos, digamos, pegar algumas coisas emprestadas dos quintais dos outros, das casas dos
outros, talvez a gente consiga erguer uma barreira na frente da casa, e talvez na frente das casas
vizinhas também.
Bobby e Nick agora estão se entreolhando, ninguém reage, até que Philip dá um pequeno
sorriso.
— É só confiar no universitário.
Já faz muito tempo que os irmãos Blake não sorriem um para o outro, mas agora Philip pode
ver que ao menos o irmão que nunca deu certo na vida quer ser útil, fazer alguma coisa por eles,
virar homem. E Brian parece estar ganhando um pouco de confiança com a aprovação de Philip.
Mas Nick não está convencido.
— Mas por quanto tempo? Eu me sinto como um alvo permanecendo nesta casa.
— A gente não sabe o que vai acontecer — responde Brian, a voz seca e ao mesmo tempo
um pouco rouca. — A gente não sabe o que foi que causou tudo isso, e quanto tempo vai durar...
Eles podem acabar descobrindo o que é e inventando um antídoto ou coisa parecida... Podem jogar
algum produto químico, como fazem com os agrotóxicos, o Centro de Controle de Infecções pode
acabar contendo isso... Nunca se sabe. Eu acho que Philip tem razão. A gente devia esperar um
pouco aqui.
— É isso aí — sentencia Philip Blake com um sorriso, ainda sentado de braços cruzados.
Ele pisca os olhos para o irmão.
Brian devolve com um cumprimento de cabeça, todo satisfeito, e afastando uma mecha de
cabelo duro como palha de cima dos olhos. Ele respira superficialmente, jogando o ar para os
pulmões fraquinhos, e então caminha triunfante até a garrafa de uísque que está na mesa, ao lado de
Philip. Pegando a garrafa com uma determinação que não mostrava há anos, Brian leva-a até a boca
e toma um imenso gole, com a insolência vitoriosa de um viking comemorando uma expedição
bem-sucedida.
Na mesma hora, ele se contorce, dobra os joelhos e expele uma saraivada de tosse. Metade
da bebida em sua boca se espalha na direção da cozinha e ele não para de tossir e de puxar o ar
furiosamente e, por um momento, os outros só ficam olhando. A miudinha da Penny está
completamente apoplética, com os olhos totalmente arregalados, e limpando as gotas de bebida que
caíram em seu rosto.
Philip olha para o lamentável irmão que tem e depois para os amigos. Do outro lado da sala,
Bobby Marsh faz força para abafar uma risada. Nick faz uma careta para não sorrir abertamente.
Philip tenta falar alguma coisa, mas não se contém e desata a rir, e o riso é contagioso. Os outros
caem na gargalhada.
E logo todo mundo está rindo histericamente — inclusive Brian — e, pela primeira vez
desde que todo o pesadelo começou, o riso é autêntico: a liberação de algo frágil e obscuro de
dentro deles.
Naquela noite, eles procuram se revezar para dormir. Cada um fica com um quarto no
segundo andar, os objetos dos antigos moradores parecendo peças sinistras de um museu: uma mesa
de cabeceira com um copo d’água pela metade, um romance de John Grisham aberto numa página
que jamais será lida até o fim, um par de pompons pendurados numa cama de quatro colunas.
Na maior parte da noite, Philip fica de vigia no andar de baixo, na sala, com a arma na
mesinha de canto ao lado e Penny aninhada no meio das cobertas num sofá curvo ao lado da
poltrona. A menina tenta dormir sem sucesso e, lá pelas 3 horas da manhã, quando Philip vê a mente
voltar aos velhos e atormentados pensamentos sobre o acidente de Sarah, ele percebe, pelo rabo do
olho, que Penny não para de se mexer.
Philip se debruça sobre ela, acaricia seus cabelos escuros e sussurra: — Você não consegue
dormir?
A garotinha, que está com as cobertas puxadas até o queixo, olha para ele e balança a
cabeça. Seu rosto pálido fica quase angelical na luz laranja do aquecedor que Philip ligou perto do
sofá. Do lado de fora, no vento distante e quase inaudível por cima do zumbido leve do aquecedor,
o coral de gemidos desafinados não para, como uma série de ondas do inferno arrebentando na
costa.
— Não se preocupe, meu amorzinho. O papai está aqui — diz Philip suavemente, tocando o
rosto dela. — E sempre vai estar.
Ela faz que sim com a cabeça.
Philip sorri para a filha com ternura. Ele se inclina e dá um beijo na sobrancelha esquerda da
menina.
— Eu não vou deixar que nada aconteça com você.
Penny volta a assentir. Está com o pinguim de pelúcia aninhado junto ao pescoço. Ela olha
para o bichinho e franze o rosto. Chega o pinguim mais perto da orelha e age como se o bichinho
estivesse lhe contando um segredo. A menina olha para o pai e então diz: — Pai?
— O que é, meu amorzinho?
— O pinguim está querendo saber uma coisa.
— O que é?
— O pinguim quer saber se aquelas pessoas estão doentes.
Philip respira fundo.
— Diga para o pinguim que... elas estão doentes, sim. Até mais do que doentes. Foi por isso
que a gente deu um jeito de... acabar com o sofrimento delas.
— Pai?
— Sim?
— O pinguim quer saber se a gente também vai ficar doente?
Philip acaricia a bochecha da menina.
— Não, senhora. Diga para o pinguim que nós vamos ficar fortes como cavalos.
Isso parece deixar a garota suficientemente satisfeita para desviar o olhar para o lado e
apreciar o vazio um pouco mais.
Às 4 horas daquela madrugada, outra alma insone, em outra parte da casa, está fazendo suas
próprias e imponderáveis perguntas. Embrulhado num monte de lençóis, o corpo franzino vestindo
apenas cueca e camiseta, a febre formando uma camada de suor no rosto, Brian Blake olha para o
teto de gesso do quarto de uma adolescente morta e pergunta se será esse o fim do mundo. Não foi
Rudyard Kipling que disse que o mundo termina “não com um estrondo, mas com um gemido”?
Não, espere um pouco... foi Eliot. T. S. Eliot. Brian lembra de ter estudado esse poema — se
chamava “Os homens ocos”? —, na aula de literatura comparada do século XX, na Universidade da
Geórgia. E aquele diploma lhe trouxera muita coisa.
Ele fica ali deitado, remoendo seus fracassos — como acontece noite após noite —, mas
hoje esse ruminar é intercalado com uma carnificina, como trechos de um filme velho inseridos no
fluxo de sua consciência.
Os velhos demônios o atormentam e se misturam aos novos temores, maculando seus
pensamentos: havia alguma coisa que ele poderia ter dito, ou feito, para evitar que Jocelyn, sua
ex-mulher, fosse embora, contratasse um advogado e dissesse todas aquelas coisas horríveis que
disse antes de voltar para Montego Bay? E será que dá para matar aqueles monstros com um
simples golpe no crânio, ou será preciso destruir o tecido cerebral? Será que Brian deveria ter feito
ou pedido alguma coisa, ou quem sabe tomado um empréstimo, para manter a loja de discos
funcionando em Athens — a única daquele tipo na região Sul, uma ideia brilhante, do cacete, que
disponibilizava a artistas de hip hop mesas de som remodeladas, caixas acústicas de graves e
microfones bregas cobertos de strass ao estilo Snoop Dog? Com que velocidade o número de
vítimas infelizes lá fora estaria se multiplicando? Será que essa é uma praga transmitida pelo ar ou
pela água, como o vírus Ebola?
O redemoinho da mente continua voltando aos assuntos mais urgentes, especialmente a
sensação angustiante de que o sétimo membro da família que morava na casa continua escondido
em algum lugar dela.
Depois de convencer os companheiros de que deveriam ficar ali indefinidamente, Brian não
consegue mais parar de se preocupar com isso. Ele registra atentamente cada rangido, qualquer
mínimo estalo da fundação se acomodando e qualquer barulho abafado que venha da fornalha. Por
alguma razão que ele não sabe bem qual é, está totalmente convicto de que o menino louro continua
por ali, na casa, esperando, deixando o tempo passar até... o quê? Talvez o garoto seja a única
pessoa da família que não virou zumbi. Talvez esteja escondido, apavorado.
Antes de ir dormir, Brian insistira para checarem uma última vez todos os cantinhos da casa.
Philip o acompanhara com uma lanterna e uma picareta e eles verificaram todos os recantos do
porão, todos os armários, todas as cômodas e locais de depósito. Olharam dentro do freezer de carne
que havia no porão e olharam até dentro da lavadora e da secadora de roupas, em busca de qualquer
coisa suspeita. Nick e Bobby foram conferir o sótão, olharam dentro dos armários, das caixas e atrás
dos baús. Philip deu uma busca embaixo de todas as camas e atrás das penteadeiras. Mesmo sem
encontrar ninguém, fizeram algumas descobertas interessantes pelo caminho.
Encontraram a tigela de comida de um cachorro no porão, mas nem sinal do animal.
Também acharam um monte de ferramentas muito úteis na oficina: serras, furadeiras, plainas e até
um martelo pneumático. Ele seria particularmente útil para construir barricadas, já que era um
pouco mais silencioso que um martelo comum.
Aliás, Brian pensa até nas outras utilidades que um martelo pneumático pode ter, quando
ouve um ruído que imediatamente paralisa seu corpo parcamente vestido.
O barulho vem de cima, do outro lado do teto.
Direto do sótão.