Capitulo 11 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


Por um milésimo de segundo, eles param, o coração disparado. Além de uns poucos
invólucros de bala e garrafas quebradas e vazias, e um bocado de poeira, o hall do segundo andar —
que é igual ao do primeiro — está vazio. Um feixe de luz do sol passa pelas janelas e ilumina
pequenos grãos de poeira no ar, que vão se acumulando perto das portas fechadas: 2A, 2C e 2E de
um lado e 2B, 2D e 2F do outro.
— Estão todos trancados nos apartamentos — cochicha Nick.
Philip assente.
— Vai ser como atirar em peixes num barril.
— Vamos logo. Em frente — diz Brian, sem convencer. — Vamos acabar com isso.
Philip olha para o irmão e então para Nick.
— Olha o Rambo falando!
Eles se dirigem para a primeira porta da direita — 2F — e erguem os canos das armas.
Philip destrava a Ruger.
E depois arromba a porta com um chute.
Uma enorme onda de fedor os atinge como se fosse um soco na cara. É a primeira coisa que
eles registram: um cheiro horroroso de degradação humana, de fezes e de urina — e o fedor dos
zumbis — tentando dominar os cheiros igualmente fortes de comida estragada, banheiros cheios de
limo e roupas mofadas. É tão avassalador e insuportável que literalmente faz os homens recuarem
um passo.
— Minha mãe do céu — exclama Nick, quase que sufocando e desviando o rosto sem
querer, como se o cheiro fosse vento batendo nele.
— Ainda acha meu peido fedorento? — pergunta Philip, enquanto entra cuidadosamente na
malcheirosa escuridão do apartamento. Levanta a Ruger .22.
Nick e Brian vão atrás com as armas em posição, os olhos abertos e brilhando de tensão.
Um segundo mais tarde, eles encontram quatro zumbis repousando no chão da sala
totalmente revirada, cada um esparramado num canto, catatônicos e de queixo caído, grunhindo
preguiçosamente ao ver os intrusos. Mas são doentes demais, burros demais ou muito dementes
para se mexer, como se tivessem ficado cansados daquela sina miserável e se esquecido de como
usar os móveis. É difícil de dizer com a pouca luz, especialmente com os rostos deles todos
inchados, escurecidos e com a pele em decomposição, mas é como se fosse outra família: pai, mãe e
dois filhos crescidos. As paredes têm manchas estranhas de arranhões, como uma gigantesca pintura
abstrata, uma prova de que aquelas coisas procuraram seguir um último instinto para rastejar para o
lado de fora.
Philip vai até o primeiro, os olhos de tubarão brilhando ao ver a Ruger apontada para ele. O
tiro faz o cérebro do zumbi se misturar ao quadro estilo Jackson Pollock formado pelos arranhões
atrás dele. E então a coisa esmorece no chão. Enquanto isso, Nick está do outro lado da sala, dando
cabo de mais um, com o tiro da Marlin parecendo um grande saco de papel explodindo. A massa
encefálica forma uma pintura na parede. Philip atinge o terceiro conforme ele se levantava
lentamente e Nick se move na direção do quarto e BUUUM!... o som da parede se cobrindo de
fluidos é amortecido pelo zunido nos ouvidos.
Brian está dez passos atrás deles, a arma em posição, com o espírito naufragando em seu
corpo numa onda de repulsa e náusea.
— Isso aí... isso não é... — começa a dizer, mas um rápido movimento vindo da esquerda o
interrompe.
*
A zumbi cambaleante se aproxima de Brian vinda das profundezas de um corredor na lateral,
saindo das sombras como um palhaço monstruoso de peruca preta e olhos que parecem doces. Antes
de Brian ter sequer a chance de identificá-la como filha ou namorada de alguém, vestida num robe
rasgado com um peito murcho exposto como se fosse um pedaço de carne mastigada, a coisa o
atinge com a força de um zagueiro bloqueando um adversário.
Brian cai de costas no chão e tudo acontece tão rápido que Philip e Nick não têm tempo de
intervir. Estão longe demais.
O cadáver ambulante aterrissa em cima de Brian e rosna com os dentes pretos e gosmentos.
Naquela fração de segundo antes de Brian perceber que ainda está segurando a arma, o zumbi
escancara tanto a boca que parece que o crânio está prestes a se soltar.
Brian tem uma visão tenebrosa do interior daquela garganta — um poço sem fundo que vai
até o inferno —, antes de instintivamente erguer a arma. Quase que por acidente, o cano se aloja no
buraco que é a boca daquela coisa e Brian dá um grito estrangulado enquanto dispara o único tiro.
A parte de trás da cabeça do monstro explode, mandando pelos ares uma nuvem de sangue e
de tecido. Os fluidos lavam o teto com sangue arterial roxo escuro e Brian fica perplexo por um
momento, as costas ainda grudadas no chão. A cabeça do troço ainda pende sobre o cano da arma.
Ele pisca. Os olhos de prata da filha ou namorada, ou quem quer que aquilo fosse, agora estão
petrificados e fixos em Brian.
Ele tosse e vira o rosto conforme a cabeça da garota desliza devagar pelo cano da arma,
como um espetinho de carne gigante, os olhos mortos ainda fixos em Brian. Ele sente a gosma do
rosto dela nas mãos e fecha os olhos. É incapaz de se mexer. Com a mão direita ainda colada no
gatilho e a esquerda na coronha, ele faz uma careta de horror.
Uma risada fria faz com que Brian volte ao mundo dos vivos.
— Olha só quem marcou o primeiro gol da vida — comemora Philip, se erguendo sobre o
irmão em meio a uma nuvem de fumaça de pólvora e sorrindo de orelha a orelha, totalmente
encantado.
*
Nick é quem encontra a saída para o terraço, e Philip tem a ideia de depositar os corpos em
putrefação ali em cima, para não empestearem ainda mais o apartamento (ou tornar o saque dos
andares de cima mais desagradável do que o estritamente necessário).
Eles levam pouco mais de uma hora para carregar todos os restos não humanos pela escada
até o terceiro andar e de lá por uma escada estreita até a saída de incêndio. Eles têm que abrir a
porta a tiros e depois trabalhar numa espécie de linha de montagem improvisada, arrastando os
sacos de carne fedorenta pelos corredores e subindo dois lances de escada até o teto, deixando
trilhas de gosma no carpete cor-de-rosa.
Eles conseguem levar todos os corpos — deram cabo de 14 zumbis ao todo, usando dois
cartuchos de balas calibre .22 e meia caixa de munição para espingarda — pela escada que vai dar
no terraço.
— Olha só para isso aqui — maravilha-se Nick ao colocar a última carcaça na cobertura de
papel alcatroado que corre do lado leste do terraço; o vento levanta as pernas de suas calças e
bagunça seus cabelos. Os corpos estão deitados em fila como lenha pronta para ser usada no
inverno. Brian está na outra ponta, olhando para os zumbis mortos com uma expressão estranha e
implacável no rosto.
— Legal — comenta Philip, andando até a beira do terraço.
Daquela altura, eles podem ver a distância os edifícios do exclusivo bairro de Buckhead, a
Peachtree Plaza e os arranha-céus de vidro a oeste. As torres petrificadas da cidade se erguem em
picos impassíveis e imaculados, estoicas à luz do sol e intocadas pelo Apocalipse. Lá embaixo,
Philip vê uns poucos mortos-vivos saindo das sombras, como soldadinhos de chumbo quebrados
que ganharam vida.
— Lugarzinho legal para passar o tempo — declara Philip, virando-se e dando uma geral no
resto do terraço.
Em volta de um imenso emaranhado de antenas, máquinas de aquecimento e de
ar-condicionado, agora frias e impotentes, um canteiro de cascalho tem espaço suficiente para se
jogar futebol americano. Uma pilha de móveis de jardim repousa próximo a um duto de ar.
— Peguem uma cadeira dessas e relaxem um pouco.
Eles arrastam umas espreguiçadeiras quebradas até a beira do terraço.
— Eu poderia me acostumar com isto aqui — diz Nick, se recostando numa cadeira e
olhando para os prédios no horizonte.
Philip se senta ao lado dele.
— Você está falando do terraço ou do prédio inteiro?
— Do prédio inteiro.
— Positivo.
— Como é que vocês conseguem? — pergunta Brian, de pé atrás deles, tendo que lutar
contra os próprios nervos. Ele se recusa a se sentar, recusa-se a relaxar. Ainda está tenso do
encontro com a cabeça empalada.
— Conseguem o quê? — pergunta Philip.
— Não sei, matar e tal e, no minuto seguinte, já estão...
Brian estaca, incapaz de transformar o raciocínio em palavras, e Philip se vira para encarar o
irmão. Vê que as mãos dele estão tremendo.
— Senta aí, Brian. Você se saiu muito bem naquela hora.
Brian puxa uma cadeira e se senta, esfregando as mãos e ruminando.
— O que eu estava dizendo é que...
E de novo ele não consegue articular o que “estava dizendo”.
— Isso não é matar, meu velho. Assim que você entender isso, vai ficar bem melhor.
— Então o que é?
Philip dá de ombros.
— Como é que você chamaria, Nicky?
Nick está olhando os prédios.
— O trabalho de Deus?
Philip solta uma sonora gargalhada e então diz: — Eu tenho uma ideia.
Ele se levanta e vai até o cadáver mais próximo, um dos menores.
— Olhem só para isso — diz, e arrasta a coisa até a borda do terraço.
Os outros o seguem. O vento rançoso levanta os cabelos deles, enquanto olham para a rua,
quase 5 metros abaixo.
Philip empurra o cadáver com a ponta da bota, até que ele escapole da borda.
O troço parece cair em câmera lenta, os membros flácidos batendo como se fossem asas
quebradas. Ele aterrissa no chão de cimento lá embaixo, na frente do prédio, e se desfaz com o som,
a cor e a textura de uma melancia excessivamente madura, numa explosão de tecido cor-de-rosa.
No quarto principal do apartamento do primeiro andar, David Chalmers está sentado de
camiseta e cueca samba-canção, respirando por um inalador e tentando mandar Atrovent suficiente
para os pulmões para fazer frente ao enfisema, quando ouve a barulheira do outro lado da porta de
correr, na parte de trás do apartamento.
O som imediatamente arrepia os pelos atrás da nuca dele e David rapidamente se veste,
atrapalhado, enfiando por dentro das roupas o tubo de oxigênio, o qual só consegue inserir pela
metade — a outra cânula fica pendurada debaixo da narina cabeluda.
Ele dispara pelo quarto com os joelhos bambos, arrastando consigo a bomba de oxigênio,
como uma criança teimosa sendo contida por uma babá impaciente.
Atravessando a sala, ele vê de relance três vultos tensos e horrorizados na porta da cozinha.
April e Tara estavam fazendo biscoitos com a menininha — gastando o resto da farinha e do açúcar
— e agora as três mulheres estão ali, de boca aberta, olhando na direção do barulho.
David caminha trôpego até a porta de correr, coberta de tábuas para se proteger dos ladrões.
Por uma fresta entre as madeiras de compensado e por entre os galhos das árvores, ele
consegue ver o canto do pátio e, além dele, uma nesga da rua que passa pela frente do apartamento.
Mais um corpo caiu do céu, como se tivesse sido atirado por Deus, batendo na calçada e
fazendo um som molhado e sinistro, bem parecido com o de uma gigantesca melancia explodindo.
Mas não é esse o barulho que incomoda David. Não é o barulho que está penetrando no
apartamento, vindo em ondas, numa ampla, desafinada e distante sinfonia.
— Minha Nossa Senhora — balbucia, numa voz que é quase um sopro, virando-se tão
rápido que quase tropeça na bomba de oxigênio.
Ele arrasta o carrinho na direção da porta.
No terraço, Philip e Nick fazem uma pausa depois de jogar o quinto corpo do parapeito.
Com a respiração pesada devido ao esforço e com uma espécie de vertigem mórbida, Philip
comenta: — Eles explodem que é uma beleza, né?
Nick está fazendo força para não rir, mas sem sucesso.
— É um absurdo total a gente fazer isso, mas eu tenho que dizer que lava a alma.
— É isso aí.
— E qual é o objetivo disso, gente? — pergunta Brian, atrás dos dois.
— O objetivo é que não tem objetivo — responde Philip, sem encarar o irmão.
— E isso é o quê? Algum ditado zen?
— Isso é o que é.
— Certo, agora estou perdido. Quero dizer, eu não vejo como o fato de atirar essas porras do
terraço está levando a alguma coisa.
Philip se vira e olha duro para o irmão.
— Dá um tempo, meu chapa. Você conseguiu o seu primeiro troféu hoje. Não foi bonito,
mas deu conta do serviço. A gente só está espairecendo um pouco.
Nick vê alguma coisa no horizonte que não tinha percebido até então.
— Ei, olha lá...
— O que eu estou querendo dizer — interrompe Brian — é que a gente tem que manter a
cabeça no lugar e coisa e tal. — Ele mantém as mãos no bolso, manuseando nervoso o canivete e as
moedas que ainda guarda ali. — April e a família são gente boa, Philip. E a gente tem que se
comportar.
— Tá bem, mãe — responde Philip com um sorriso frio.
— Gente, dá só uma olhada naquele edifício ali da esquina.
Nick aponta para um edifício feio e atarracado de tijolos, na esquina nordeste do cruzamento
mais próximo. Enegrecido nas pontas pela fumaça da cidade, o letreiro esmaecido pintado acima da
vitrine do primeiro andar diz DILLARD — MÓVEIS PARA O LAR.
Philip vê.
— Sei. E daí?
— Olha para o canto do prédio, tem uma daquelas coisas para pedestres.
— Uma o quê?
— Uma passarela, ou um caminho, ou seja lá como se chama. Estão vendo?
E, certamente, Philip percebe uma ponte de vidro suja que atravessa a rua lateral, ligando a
ponta do prédio de escritórios que fica à diagonal deles até o segundo andar da Dillard. A passarela
está vazia e fechada dos dois lados.
— No que você está pensando, Nicky?
— Eu não sei. — Ele olha para a ponte de pedestres e reflete um pouco. — Mas pode ser
que...
— Senhores!
A voz rascante de um velho os interrompe.
Brian se vira e vê David Chalmers cambaleando na direção deles, saindo da porta aberta da
escada. Os olhos do homem estão queimando de urgência e ele arrasta a bomba de oxigênio como
quem já está acostumado. Brian dá um passo na direção dele.
— Sr. Chalmers, o senhor subiu até aqui sozinho?
O velho respira com dificuldade quando se aproxima. No meio da respiração cheia de
chiados e dificuldades, ele diz: — Eu posso estar velho e doente, mas não sou inválido... E trate de
me chamar de David. Estou vendo que vocês realmente limparam os andares direitinho e eu
sinceramente agradeço muito por isso.
Philip e Nick se viram para encarar o homem.
— Tem algum problema? — pergunta Philip.
— Oh, sim, temos um problema, sim — responde o homem, com os olhos faiscando de
raiva. — Que diabos vocês estão fazendo aqui, jogando os corpos desse jeito? Vocês só estão dando
um tiro no próprio pé!
— O que quer dizer?
O velho solta um grunhido.
— Vocês estão surdos, ou coisa parecida? Não conseguem ouvir isso?
— Ouvir o quê?
O velho se move até a ponta do prédio.
— Dá só uma olhada.
Ele aponta um dedo retorcido para dois edifícios no horizonte.
— Estão vendo o que vocês fizeram?
Philip olha para o norte e imediatamente percebe porque passou os últimos 15 minutos
ouvindo o zunido infernal de 1.001 gemidos. Legiões de zumbis estão migrando para o edifício,
provavelmente atraídas pelo barulho e pelo espetáculo do sangue explodindo na calçada.
Talvez a dez ou 12 quadras de distância, eles agora andam como um coágulo ondulante que
viaja pelas artérias. Por um momento, Philip não consegue desviar os olhos daquela horrível
expedição.
Os zumbis vêm de todas as direções. Perambulando pelas sombras, saindo das ruelas,
infestando as ruas principais, eles se encontram e se multiplicam nos cruzamentos como uma ameba
gigante ganhando força e tamanho, atraídos inexoravelmente pelos seres humanos ali no meio, que
servem de catalisadores. Philip finalmente desvia o olhar e dá um tapinha no ombro do velho.
— Nossa culpa, David... Nossa culpa.
Naquela noite, eles tentam jantar e fingir que é só uma refeição normal entre amigos, mas o
barulho insistente de garras do lado de fora acaba com todas as conversas. O som é uma lembrança
constante do exílio em que se encontram, da ameaça mortal que está logo ali fora, do isolamento.
Contam uns aos outros suas histórias de vida, se esforçam ao máximo, mas o barulho ameaçador
deixa todos os nervos à flor da pele.
Considerando que há outros 17 apartamentos no prédio, eles tinham esperado colher um
belo saque de provisões. Mas tudo o que encontraram foram alguns mantimentos secos nas
despensas, cereais e macarrão duro, uma meia dúzia de latas de sopa, alguns biscoitos mofados e
umas poucas garrafas de vinho barato.
Já fazia semanas desde que o prédio fora abandonado, sem energia e infestado de gente
morta, e toda a comida havia apodrecido. As larvas tinham tomado conta da maioria das geladeiras
e até as roupas de cama e de vestir estavam mofadas e impregnadas com o cheiro dos zumbis.
Talvez as pessoas tivessem levado os objetos essenciais com elas quando fugiram. Talvez tivessem
levado todas as pilhas, lanternas, água mineral, os fósforos e as armas com elas.
No entanto, deixaram os armários de remédios intactos e Tara conseguiu juntar uma caixa de
sapato inteira de comprimidos: calmantes como Xanax e Valium, estimulantes como Adderall e
Ritalina, remédios para a pressão, comprimidos para emagrecer, betabloqueadores, antidepressivos
e remédios para baixar o colesterol. Ela também encontrou dois vidros de broncodilatadores que
vêm bem a calhar para o velho. Philip se diverte com a maneira falsa como Tara finge que está
cuidando do bem-estar de todos, quando sabe perfeitamente que ela está mais interessada em
encontrar alguma coisa que lhe faça se divertir um pouco. E quem pode culpá-la? Um alívio
farmacêutico agora seria uma fuga tão boa quanto qualquer outra.
A verdade é que, naquela segunda noite, mesmo com toda a barulheira dos zumbis do lado
de fora, Philip começou a simpatizar com a família Chalmers. Gosta deles. Gosta do jeito boêmio
interiorano, da garra deles e simplesmente gosta de estar junto de outros sobreviventes. Nick
também parece se sentir energizado pela união das duas famílias e Penny até voltou a falar, com os
olhos brilhando pela primeira vez em várias semanas. A presença de outras mulheres, pensa Philip,
era exatamente o que o médico tinha recomendado para a filha.
Até Brian, que praticamente se curou da gripe, parece mais forte e confiante. Na humilde
opinião de Philip, ele ainda tem um longo caminho pela frente, mas parece energizado pela
possibilidade de viver numa comunidade, por menor e mais estraçalhada que seja.
No dia seguinte, eles começam a entrar numa espécie de rotina. Do terraço, Philip e Nick
monitoram o número de zumbis na rua, enquanto Brian verifica os pontos fracos do primeiro andar:
as janelas, as saídas de incêndio, o quintal e o pátio da frente. Penny está se enturmando mais com
as irmãs Chalmers e David permanece, na maioria das vezes, reservado. O velho está lutando com a
doença nos pulmões da melhor maneira que pode. De vez em quando cochila, mas leva o inalador e
faz companhia aos visitantes o máximo possível.
De tarde, Nick começa a fazer uma passarela improvisada, a qual planeja ligar do terraço do
prédio em que estão ao terraço do edifício vizinho. Ele meteu na cabeça que pode chegar até a
passarela de pedestres da esquina, sem precisar pôr os pés no chão. Philip acha que a ideia é
maluca, mas manda o amigo ir em frente e perder tempo, se é isso o que deseja.
Nick, porém, acredita que esse plano é crucial para a sobrevivência deles, principalmente
porque estão todos secretamente preocupados — dá para ver pela expressão de todo mundo que vai
até a cozinha — que a comida logo logo acabe. A água foi fechada no edifício e carregar baldes de
excremento humano do banheiro até a janela dos fundos para jogar no quintal é o menor dos
problemas. Eles contam com um suprimento limitado de água e é isso o que preocupa todo mundo.
Naquela noite, depois do jantar, um pouco depois das 20 horas, quando um silêncio
desagradável na conversa faz todo mundo se lembrar do barulho incessante que vem da escuridão lá
fora, Philip tem uma ideia.
— Por que vocês não tocam alguma coisa para a gente? Para abafar esses filhos da mãe de
uma vez?
— Ei — diz Brian animado. — Essa ideia é ótima.
— Nós estamos um pouco enferrujados — diz o velho, na cadeira de balanço. Essa noite, ele
parece mais cansado e retraído, ação da doença. — Para falar a verdade, nós não tocamos nem uma
nota desde que esta confusão toda começou.
— Medroso — comenta Tara do sofá, enrolando um cigarro com um pouco de fumo,
sementes e raminhos que estão no fundo da caixinha de Band-Aid. Os outros estão espalhados pela
sala, com as orelhas erguidas ante a perspectiva de ouvir a mundialmente famosa Chalmers Family
Band.
— Vamos lá, pai — incentiva April. — A gente podia tocar “The Old Rugged Cross” para
eles.
— Nãão, não querem ouvir uma baboseira religiosa numa situação como esta.
Tara já está manobrando o imenso corpo pela sala na direção do enorme contrabaixo, com o
cigarro improvisado pendurado na boca.
— É só escolher, pai. Eu acompanho no baixo.
— Bem... Que mal pode fazer? — conforma-se David Chalmers, enquanto ergue o corpo
frágil da cadeira de balanço.
Os Chalmers tiram os instrumentos das caixas e os afinam. Quando estão prontos, se
posicionam como uma verdadeira trupe antes de começarem, com a sincronia de um exército em
manobra, com April à frente, no violão, e David e Tara atrás, um de cada lado, ele no bandolim e ela
no contrabaixo. Philip pode muito bem imaginá-los no palco do Grand Ole Opry e pode ver que
Brian está curtindo tudo, do outro lado da sala. Um fato sobre Brian Blake é que ele entende de
música. Philip sempre apreciou o quanto o irmão entende do assunto e agora, com esse bônus
inesperado, Philip acha que o irmão deve estar maravilhado.
Eles começam a tocar.
Philip fica totalmente quieto.
E parece que seu coração começa a ficar mais leve que um balão.
*
Não é só a beleza crua e inesperada da música — a primeira é uma velha canção irlandesa,
com a cadência do baixo triste e um violão que soa como um violino de roda, de cem anos atrás.
Nem o fato de que a pequena e doce Penny parece se transportar com aquela melodia e ficar sentada
no chão, com os olhos sonhadores. Nem o fato de que uma simples música, uma delicada música,
no meio de todo aquele horror quase consegue partir o coração de Philip. É a hora em que April
começa a cantar que enche a alma de Philip de mel: There’s a shadow on my wall, but it don’t scare
me at all I’m happy all night long in my dreams*
Clara e perfeita como um sino de vidro. Afinadíssima. O contralto de April, espetacular e
aveludado, toma conta da sala. Parece acariciar as notas e tem até um toque religioso, um tempero
de soul que lembra Philip de uma cantora do coral de uma igreja da região: In my dreams, in my
dreams
I’m happy all night long in my dreams
I’m safe here in my bed, happy thoughts are in my head
And I’m happy all night long in my dreams**
A voz levanta um desejo louco em Philip — uma coisa que não sentia desde que Sarah
morreu. De repente, ele desenvolve uma visão de raios X. Pode ver detalhes de April Chalmers
enquanto ela toca as seis cordas do violão e canta maravilhosamente; coisas que ele não havia
percebido antes. Vê uma pequena tornozeleira nela e uma rosa tatuada num cantinho do braço e as
meias-luas brancas que formam seus peitos — brancos como madrepérola — entre os botões da
blusa.
A música termina e todo mundo aplaude; e Philip, mais alto que todo mundo.
No dia seguinte, depois de um magro café da manhã composto de cereais mofados e leite em
pó, Philip percebe que April está sozinha, perto da porta da frente, calçando as botas de escalada e
prendendo as mangas do moletom com fita adesiva.
— Achei que gostaria de mais uma xícara — oferece Philip, indo a ela inocentemente, com
uma xícara de café em cada mão. — É café instantâneo, mas dá para o gasto. — Ele percebe que ela
está enrolando fita adesiva no tornozelo também. — O que você está fazendo?
Ela olha para o café.
— Você usou o resto da jarra só para isso?
— Acho que sim.
— Nós só temos uma jarra para nós sete até sabe Deus quando.
— Em que você está pensando?
— Não precisa fazer escândalo. — Ela sobe o zíper do moletom e aperta o elástico do rabo
de cavalo, escondendo-o sob o capuz. — Eu já venho planejando isso há algum tempo e quero fazer
sozinha.
— Planejando o quê?
Ela põe a mão dentro do armário dos casacos e tira um taco de beisebol de ferro.
— Nós encontramos isto num dos apartamentos. Eu sabia que um dia poderia ser útil.
— O que você vai fazer, April?
— Sabe aquela escada de incêndio no lado sul do edifício?
— Você não vai sair na rua sozinha.
— Eu posso sair pelo 3F, descer pela escada e afastar os Mordedores do edifício.
— Não... Não mesmo!
— Afastá-los o suficiente para pegar mais mantimentos e voltar.
Philip olha para as botas sujas de lenhador ao lado da porta, onde as deixou na noite anterior.
— Você poderia me passar aquelas botas? Se está decidida, então com certeza não vai
sozinha.
NOTAS
* Tem uma sombra na minha parede, mas ela não me assusta
Eu passo a noite inteira feliz com meus sonhos
** Com meus sonhos, com meus sonhos
Eu passo a noite inteira feliz com meus sonhos
Estou segura aqui na cama, pensando em coisas bonitas
E eu passo a noite inteira feliz com meus sonhos