Capitulo 12 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador
Mais uma vez, o cheiro atinge Philip violentamente no rosto, assim que põe a cabeça para
fora da janela sul do apartamento 3F — um caldeirão de dejetos humanos cozinhando em fogo
brando, em gordura de bacon —, um fedor tão horroroso que faz Philip estremecer. Os olhos dele
começam a marejar assim que põe a cabeça pela janela. Ele não acredita que algum dia vai
conseguir se acostumar com aquele cheiro.
Philip salta para um parapeito enferrujado e bambo de ferro fundido. A plataforma, ligada a
uma escada que ziguezagueia três andares abaixo até uma rua lateral, balança com o peso de Philip.
Seu estômago se encolhe com a súbita mudança de gravidade e ele tem que se agarrar ao corrimão.
O tempo ficou feio e úmido, com o céu da cor do asfalto e um vento nordeste cortando pelos
distantes cânions de concreto. Felizmente, lá embaixo, há apenas uma quantidade mínima de
Mordedores perambulando pela ruela que ladeia a parede sul do edifício. Philip olha o relógio.
Em cerca de um minuto e 45 segundos, April vai arriscar a vida na frente do prédio e é esse
sentimento de urgência que faz Philip ir em frente. Ele desce rapidamente o primeiro lance, com a
escada bamba gemendo sob o seu peso e tremendo a cada passada.
Enquanto desce, Philip sente que os olhos prateados dos mortos-vivos o observam, atraídos
pelo ranger metálico das escadas, os sentidos primitivos o rastreando, sentindo o cheiro dele e as
vibrações que emana, como aranhas sentem que um inseto caiu na teia. Silhuetas escuras, que Philip
nota pela visão periférica, se arrastam lentamente na direção dele, se amontoando a partir da frente
do prédio, para investigar.
Eles ainda não viram nada, pensa Philip ao cair no chão e sair correndo pela rua. Sessenta e
cinco segundos. O plano é entrar e sair rapidinho, e Philip passa pelas vitrines fechadas com tábuas
com a destreza de um fuzileiro naval da Delta Force. Ele chega ao lado leste do prédio e encontra
um Chevrolet Malibu abandonado, com placa de outro estado.
Trinta e cinco segundos.
Philip pode ouvir os passos arrastados se aproximando dele na hora em que se agacha atrás
do Malibu e rapidamente tira a mochila das costas. Suas mãos não tremem quando ele tira uma
garrafa de 300 ml de Coca-Cola cheia de gasolina (April achou um bujão de plástico de reserva no
porão do prédio, na sala de manutenção).
Vinte e cinco segundos.
Ele tira a tampa, enfia lá dentro o pano ensopado de gasolina e prende o lado fino da garrafa
no cano de descarga do carro, deixando um trapo de 30 centímetros pendurado. Vinte segundos. Ele
pega um isqueiro Bic, acende e põe fogo no trapo. Faltam 15 segundos e Philip sai correndo.
Dez segundos.
Ele consegue atravessar a rua, chegando a roçar em alguns Mordedores, e se mete num
refúgio escuro, mergulhando atrás de uma fila de latas de lixo, antes de ouvir o BAAM da primeira
erupção — a garrafa pegando fogo —, seguida por uma explosão muito maior.
Philip abaixa a cabeça e se protege quando um barulho supersônico sacode a rua e manda
para os ares uma bola de fogo que transforma aquele mundo de sombras num lugar muito bem
iluminado.
Bem na hora, pensa April, agachada nas sombras do hall de entrada, o estouro fazendo a
porta de vidro tremer. A luz que espocou sobre ela parece o flash de um fotógrafo invisível. Ela sai
por baixo das tábuas que protegem a porta e vê a enorme mudança naquele mar de mortos.
Como uma maré de rostos lívidos e esfarrapados, que mudam com a força gravitacional da
Lua, eles começam a seguir o barulho e a luz e partem, como uma massa desengonçada, para o lado
sul do edifício.
Festões metálicos refletindo o sol não conseguiriam atrair uma revoada de corvos tão bem
quanto o efeito da explosão nos Mordedores. Em mais ou menos um minuto, a rua diante do prédio
está praticamente deserta.
April se prepara. Respira fundo. Aperta as alças das mochilas. Fecha os olhos. Faz uma
prece rápida e silenciosa... e então dispara, puxa a barra da porta e a empurra.
Ela espia do lado de fora. O vento balança seus cabelos e o cheiro é de matar. Ela se mantém
abaixada enquanto corre na rua.
O excesso de sensações ameaça distraí-la — o fedor, a proximidade do bando a meia quadra
de onde está, o coração batendo como um trovão —, enquanto April rapidamente passa da frente de
uma loja para outra. Felizmente, ela conhece o bairro o bastante para saber onde fica a loja de
conveniência.
Medindo pelo relógio, April Chalmers só demora 11 minutos e 33 segundos para passar pelo
vidro quebrado e entrar no interior da loja de conveniência saqueada. Só 11,5 minutos foram
suficientes para ela encher meia sacola de lona com água e comida suficientes e várias outras coisas
para eles se manterem por algum tempo.
Mas, para April Chalmers, naqueles 11,5 minutos, parece que o mundo parou.
Ela agarra quase 10 quilos de compras da loja de conveniência, incluindo uma pequena lata
de presunto, com conservantes o suficiente para durar até o Natal, 9 litros de água filtrada, três
pacotes de Marlboro vermelho, isqueiros, carne seca, vitaminas, remédios para gripe, pomadas
antibacterianas e seis muito abençoados rolos extragrandes de papel higiênico. April joga tudo
dentro da mochila com a velocidade de um raio.
Os pelos atrás da nuca ficam arrepiados, enquanto ela trabalha sempre consciente de que o
tempo está passando. Logo a rua vai voltar a se encher e o exército de Mordedores bloqueará o
caminho se ela não voltar em mais alguns minutos.
Philip usa a metade de mais um cartucho de balas .22 para ir até os fundos do edifício. A
maioria dos Mordedores se reuniu em volta das chamas do Malibu, uma multidão de cadáveres
ambulantes atraídos como mariposas para a luz. Philip abre caminho até o pátio dos fundos dando
mais dois tiros. Um abre o crânio de um cadáver que perambula com roupa de corrida, o zumbi cai
no chão como uma marionete que teve o barbante cortado. O outro tiro explode a cabeça do que
parece que um dia foi uma mendiga, os olhos se apagando enquanto ela desfalece.
Antes de os outros Mordedores terem a chance de encurtar a distância, ele pula a cerca dos
fundos e corre pela grama morta e amarronzada.
Philip sobe pela parede dos fundos, apoiando-se num toldo. Uma segunda escada de
incêndio está dobrada mais ou menos no meio do primeiro andar, e Philip a agarra e começa a subir
até o alto.
Mas, de repente, ele para e pensa se aquele é realmente um bom plano.
April agora está chegando no ponto crítico da missão — já se passaram 12 minutos desde
que saiu do prédio —, mas ela se arrisca a visitar outra loja.
A meia quadra para o sul, uma loja Ace Hardware está vazia, com a vidraça quebrada e os
portões antifurto soltos o suficiente para uma mulher de corpo mignon entrar. Ela passa pelo buraco
e entra na loja escura.
April enche o que sobrou da segunda sacola de lona com filtros de água (para que a água
parada nas privadas se torne potável), uma caixa de pregos (para renovar o estoque que usaram para
reforçar as barricadas), canetas e rolos de cartolina (para fazer avisos para eventuais sobreviventes),
lâmpadas, pilhas, algumas latas de álcool em gel e três lanternas pequenas.
Ao voltar para a frente da loja, agora carregando cerca de 20 quilos de mercadoria nas duas
mochilas, ela passa por uma figura esparramada no chão de um corredor cheio de fibra de vidro.
April estaca. A garota morta no chão, esticada e recostada na parede ao fundo, não tem uma
das pernas. Pela trilha de gosma que se estende pelo chão, fica claro que ela se arrastou até ali. A
menina não é muito mais velha que Penny. April fica sem ar por um momento.
Ela sabe que tem que sair dali, mas não consegue desviar o olhar do corpo patético e
esfarrapado sentado sobre os próprios fluidos, que evidentemente vazaram pelo cotoco apodrecido
onde antes ficava a perna direita.
— Ai, meu Deus. Eu não consigo — fala April baixinho para si mesma, sem saber
exatamente o que não consegue: acabar com o sofrimento daquela coisa ou abandoná-la para sofrer
eternamente na loja de hardware deserta.
April pega o taco de ferro que está no cinto e pousa as mochilas no chão. Aproxima-se da
menina com cuidado. O corpo no chão mal se mexe, só olha vagarosamente para cima com o
estupor trêmulo de um peixe que morre no deque de um barco.
— Desculpe — sussurra April e afunda a ponta do taco na cabeça da garota. O golpe emite o
estalo molhado de madeira nova se rachando.
O zumbi desliza silenciosamente para o chão. Mas April fica ali em pé e fecha os olhos por
um instante, tentando tirar aquela imagem da cabeça, uma imagem que provavelmente irá
atormentá-la pelo resto da vida.
Ver a ponta de um taco rachar e abrir um crânio já é suficientemente desagradável, mas o
que April viu no tenebroso momento antes de baixar o taco, enquanto ainda o estava levantando, foi
o seguinte: talvez por um último instinto dos nervos já mortos, ou por um sentimento mais profundo
de compreensão, a menina morta virou o rosto exatamente no momento em que o taco partia para
desfechar o golpe.
Um barulho perto da frente da loja desperta a atenção de April, que corre para pegar as
mochilas, joga as alças nas costas e corre para a saída. Mas ela não vai muito longe. Tem que pisar
no freio assim que vê uma segunda menina morta obstruindo o caminho.
Está a 5 metros de distância, bem perto do portão antifurto retorcido, com um vestido sujo
absolutamente idêntico ao da garota que April acabou de despachar.
A princípio, April acha que os olhos estão lhe pregando uma peça. Ou talvez seja o fantasma
da garota que ela acabou de sacrificar. Ou então April está simplesmente enlouquecendo. Mas
quando a segunda garota começa a se arrastar pelo corredor em direção a April, com uma gosma
preta escorrendo pelos lábios entreabertos — e essa tem as duas pernas —, April percebe que é uma
gêmea.
É a gêmea idêntica da outra garota.
— E lá vamos nós — diz April, erguendo o taco, colocando as coisas no chão e
preparando-se para lutar.
Ela dá um passo na direção daquele monstro mirim e ergue o taco, quando um estampido
seco faz-se ouvir por trás da gêmea e April pisca.
A bala estilhaça o canto da vidraça e arrebenta a parte de cima da cabeça da menina. April
recua e faz uma careta ao ver aquela nuvem de sangue surgindo e a garota desabar no chão. April
solta um doloroso suspiro de alívio.
Philip Blake está do lado de fora da loja, no meio da rua vazia, colocando mais um cartucho
na Ruger .22.
— Você está aí? — pergunta ele.
— Estou. Estou bem!
— Eu sei que é falta de educação apressar uma dama, mas eles estão voltando!
April pega os tesouros, pula por cima dos restos ensanguentados que obstruem o corredor e
passa pelo portão antifurto, saindo para a rua. Na mesma hora, ela se dá conta do problema: a horda
de zumbis está voltando, dobrando a esquina com o fervor coletivo de um chorus line fora do ritmo.
Philip pega uma mochila e os dois saem correndo em direção ao prédio.
Eles atravessam a rua em segundos, com pelo menos cinquenta Mordedores fechando o
cerco de cada lado.
Brian e Nick estão olhando pelo vidro reforçado da porta exterior da sala, quando veem a
situação na rua se modificar rapidamente.
Veem alcateias de zumbis descendo a rua de ambos os lados, voltando sabe lá Deus de onde.
No meio de tudo isso, dois seres humanos, um homem e uma mulher, como se estivessem com o
domínio da bola de algum esporte maluco, desconhecido e surreal, disparam na direção do prédio,
com mochilas de lona se balançando e quicando nas costas deles. Nick se anima.
— São eles!
— Graças a Deus — diz Brian, abaixando a espingarda até a coronha tocar o chão. Está
trêmulo. Ele enfia a mão esquerda no bolso e tenta se controlar. Não quer que o irmão o veja
tremendo.
— Vamos abrir essa porta — fala Nick, encostando a espingarda num canto.
Ele abre a porta no exato instante em que Philip e April estão avançando a passos largos pela
calçada, com uma multidão de Mordedores nos calcanhares. April entra primeiro, trêmula e
ofegante de tanta adrenalina.
Philip vem logo atrás, os olhos escuros brilhando com a descarga de testosterona.
— É disso que eu estou falando!
Nick bate a porta em cima da hora, fazendo três Mordedores darem de cara com o vidro
externo, sacudindo a porta impregnada de aço, as bocas salivantes deixando um rastro. Vários pares
de olhos leitosos acompanham pelo vidro engordurado as pessoas no saguão de entrada. Os dedos
mortos tentam se agarrar à porta. Outros Mordedores vão se acumulando na calçada.
Brian está com a arma apontada para os vultos do lado de fora da porta. Ele recua um pouco.
— Mas que diabo aconteceu, cara? Onde vocês estavam?
Nick os conduz pela porta interna que dá no saguão. April solta a mochila abarrotada.
— Essa foi... essa foi... meu Deus, essa foi por pouco!
Philip põe a mochila no chão.
— Garota, você tem colhões, preciso reconhecer!
Nick vai até eles.
— Que ideia foi essa, Philly! Vocês dois simplesmente desapareceram sem dizer nada a
ninguém?
— Fala com ela — responde Philip sorrindo, enfiando a Ruger no cinto.
— A gente tava apavorado! — repreende Nick. — Nós estávamos a alguns segundos de sair
para procurar vocês!
— Fica frio, Nick.
— Ficar frio? Ficar frio? Nós reviramos o edifício inteiro procurando vocês! Tara estava
prestes a ter uma crise de diarreia!
— A culpa foi minha — diz April, limpando a gosma que ficou presa na nuca.
— Mas olha só o que trouxemos, cara! — Philip indica o material que abarrota as mochilas.
Nick está de punhos cerrados.
— E então a gente ouve uma merda de explosão! O que a gente ia pensar? Foram vocês?
Vocês tiveram alguma coisa a ver com aquilo?
Philip e April trocam um olhar e Philip diz: — Essa ideia foi realmente de nós dois.
April não consegue conter o sorriso de vitória quando Philip dá um passo na direção dela,
erguendo a mão espalmada.
— Bate aqui, querida?
Eles batem as mãos no ar, com Nick e Brian encarando-os incrédulos. Nick está prestes a
dizer alguma coisa, quando um vulto aparece do outro lado da sala, entrando pela porta interna.
— Ai, meu Deus! — Tara avança pela sala e vai até a irmã. Dá um abraço apertado em April
— Graças a Deus! Eu estava tão apavorada! Graças a Deus que você está bem! Graças a Deus!
Graças a Deus!
April dá um tapinha no ombro da irmã.
— Desculpa, Tara, mas foi uma coisa que eu tive que fazer.
Tara solta a irmã, o rosto vermelho de raiva.
— Eu devia era te dar uma surra! É sério! Eu fiquei dizendo para a menininha que você
estava apenas lá em cima, mas ela está tão assustada quanto eu! O que eu podia fazer? Essa foi uma
coisa burra e irresponsável de se fazer! O que aliás é muito típico de você, April!
— Que diabos você quer dizer com isso? — pergunta April, encarando a irmã. — Por que
você não diz logo o que pensa, só para variar um pouco?
— Sua puta idiota. — Tara se empertiga como se fosse dar um tapa na cara da caçula,
quando Philip de repente se coloca entre as duas.
— Alto lá, Tonto! — Ele dá um tapinha amigável nas costas de Tara. — Calma. Respira
fundo. — Philip aponta para as duas mochilas. — Eu quero te mostrar uma coisa, tá legal? Esfria a
cabeça um segundo.
Ele se ajoelha e abre uma das mochilas, revelando o conteúdo.
Os outros olham os mantimentos em silêncio. Philip se levanta e encara Tara direto nos
olhos.
— Essa “puta idiota” salvou a pele de todo mundo aqui. Aí tem água e comida. A “puta
idiota” arriscou a própria pele, sem saber se ia dar certo e sem querer que ninguém mais se
machucasse. Você devia era beijar os pés da “puta idiota”.
Tara tira os olhos das mochilas e olha para o chão.
— Estávamos preocupados, é só isso — diz, numa voz baixa e fraca.
A essa altura, Nick e Brian já estão ajoelhados junto às mochilas e examinam o tesouro.
— Philly — diz Nick —, eu tenho que admitir: vocês dois mandaram bem.
— Arrebentaram — murmura Brian, baixinho e maravilhado, enquanto passa as mãos pelo
papel higiênico, a carne e os filtros de água. A atmosfera emocional na sala começa a mudar, do
mesmo jeito que as nuvens vão se desfazendo. Todo mundo começa a sorrir.
Logo, até Tara está olhando de soslaio para o conteúdo das mochilas.
— Tem cigarro também?
— Três pacotes de Marlboro — responde April, tirando os cigarros. — Aproveite, puta
idiota.
Com um sorriso bem-humorado, ela joga os pacotes em cima da irmã.
Todo mundo ri.
Ninguém vê a pessoinha que está de pé, do outro lado da sala, na porta do apartamento. Até
que Brian ergue os olhos.
— Penny? Você está bem, menina?
A menina abre a porta e entra na sala. Ela ainda está de pijama e o pequeno rostinho pêssego
e creme traz uma aura de seriedade.
— Aquele homem lá dentro? O senhor Chaa-merz? Ele acabou de cair.
Eles encontram David Chalmers caído no chão do quarto principal, no meio de vários lenços
e remédios. Os cacos de um vidro de loção pós-barba brilham como um halo em volta da cabeça
trêmula.
— Meu Deus...! Papai!
Tara se ajoelha ao lado do velho caído, soltando o tubo de oxigênio. O rosto embranquecido
de David é da cor de nicotina e ele involuntariamente tenta inspirar, como um peixe fora d’água
tentando respirar na atmosfera venenosa.
— Ele está sufocando!
April corre para o outro lado da cama, verificando a bomba de oxigênio, que está no chão ao
lado do pai, perto da janela, enrolada nos tubos. O velho deve tê-la derrubado da mesa de cabeceira
quando tropeçou.
— Papai? Você pode me ouvir? — Tara dá vários tapinhas no rosto cinzento do homem.
— Verifique a língua dele!
— Pai? Pai?
— A língua dele, Tara!
April corre em volta da cama, com a bomba de oxigênio e alguns metros de tubo na mão.
Enquanto isso, os outros (Philip, Nick, Brian e Penny) observam da porta. Philip se sente inútil. Não
sabe se deve interferir ou ficar só observando. As garotas parecem saber o que estão fazendo.
Tara abre suavemente a boca do velho, verificando a goela.
— Está limpa.
— Pai? — April se ajoelha do outro lado, inserindo o pequeno aparelho de respiração
debaixo do nariz adunco. — Papai, você consegue me ouvir?
David Chalmers continua puxando o ar em silêncio, o fundo da garganta parece emitir um
cacarejo, como um disco arranhado. As pálpebras — velhas e translúcidas como as asas de uma
mariposa — começam a tremer. Tara apalpa freneticamente atrás da cabeça, para ver se há uma
lesão.
— Eu não estou vendo nenhum sangramento — diz. — Pai?
April passa a mão na testa dele.
— Está gelado.
— O oxigênio está funcionando?
— Perfeitamente.
— Pai? — April ajeita o velho suavemente, para que ele fique com o peito para cima e com
o tubo de oxigênio sobre o lábio superior. Mais uma vez, as mulheres lhes dão uns tapinhas.
— Pai? Papai? Pai, você consegue ouvir a gente? Pai?
O velho tosse. Seus olhos tremem. Ele pisca. Tenta respirar uma boa lufada de ar, mas a
respiração frágil não consegue passar da garganta. Ele revira os olhos e parece estar apenas
semiconsciente.
— Pai, olha para mim! — implora April, a mão gentilmente virando o rosto dele em direção
ao dela. — Você consegue me ver?
— Vamos colocar ele na cama — sugere Tara. — Rapazes, vocês podem dar uma mãozinha?
Philip, Nick e Brian entram no quarto. Philip e Nick seguram um lado do velho e Tara e
Brian o outro e, ao contarem até três, eles levantam o velho com o maior cuidado e o colocam na
cama, fazendo as molas rangerem e embolando a cânula de um lado.
Segundos mais tarde, a cânula está desenrolada e o velho está envolto em cobertores. Só o
rosto pálido e apagado está visível, os olhos fechados, a boca semiaberta, a respiração intermitente.
Parece mais um motor a combustão que não consegue dar a partida. Volta e meia, as pálpebras
tremem e alguma coisa parece se acender atrás delas. Os lábios fazem uma careta, mas depois o
rosto volta a ficar pálido. Ele ainda respira... mas muito mal.
Tara e April se sentam cada uma de um lado da cama, acariciando o ser humano frágil
debaixo dos cobertores. Por muito tempo, ninguém diz nada. Mas é bem possível que elas estejam
pensando na mesma coisa.
— Você acha que foi um derrame? — pergunta Brian com cuidado, alguns minutos mais
tarde, apoiado na porta de correr.
— Eu não sei. Eu não sei. — April anda de um lado para o outro na sala, roendo as unhas,
enquanto os outros se sentam ao redor, olhando para ela. Tara está no quarto, fazendo companhia ao
pai. — Mas sem assistência médica, que chance que ele tem?
— Ele já passou por alguma coisa desse tipo?
— Ele já teve dificuldade de respirar, mas nada assim. — April para de andar. — Meu Deus,
eu sabia que este dia chegaria. — Ela enxuga os olhos, que estão úmidos de lágrimas. — É a última
bomba de oxigênio.
Philip pergunta sobre os remédios.
— Nós temos os remédios dele, sim, mas isso não vai adiantar muito agora. Ele precisa é de
um médico. E esse velho teimoso desmarcou a última consulta no mês passado.
— E o que nós temos de medicamentos? — pergunta Philip.
— Eu não sei. Nós temos algumas coisas dos apartamentos de cima. Antialérgicos e coisa e
tal. — Ela volta a andar de um lado para o outro. — Temos um kit de primeiros socorros. E daí?
Isso é coisa séria. Não sei o que podemos fazer.
— Vamos ficar calmos e pensar um pouco no assunto. — Philip passa a mão na boca. —
Agora ele está descansando, não está? As vias aéreas estão desobstruídas. Uma coisa dessas... nunca
se sabe... Ele pode se recuperar.
— Mas e se ele não se recuperar? — Ela para de andar e olha para ele. — E se ele não se
recuperar?
Philip se levanta e vai até ela.
— Olha. Nós temos que tirar isso da cabeça. — Ele dá um tapinha no ombro de April. —
Nós temos que acompanhar ele de perto. A gente vai dar um jeito. Ele é um velho durão.
— Ele é um velho durão que está morrendo — responde ela, uma única lágrima escorrendo
no rosto.
— Nunca se sabe — diz Philip, enxugando a lágrima do rosto dela.
April olha para ele.
— Valeu a tentativa, Philip.
— Não pense assim.
— Valeu a tentativa. — Ela desvia o olhar, a expressão perdida desconsolada como uma
máscara da morte. — Valeu a tentativa.
Naquela noite, as irmãs Chalmers montam vigília ao lado da cama do pai, as cadeiras
puxadas uma de cada lado da cama e uma lanterna de pilha jogando uma débil luz sobre o rosto
pálido do homem. O apartamento parece um frigorífico de tão gelado. April pode sentir a respiração
de Tara do outro lado do quarto.
O velho fica ali deitado a maior parte da noite como se fosse uma pedra, o rosto oco se
contraindo periodicamente com a respiração difícil. O cavanhaque grisalho no queixo parece uma
lixa de metal, se movimentando em um campo magnético, mexendo-se de vez em quando com os
tiques do frágil sistema nervoso. Volta e meia, os lábios secos e rachados tentam falar inutilmente,
sem conseguir formar uma palavra. Com exceção de alguns sopros secos, não sai nada deles.
Em algum momento da madrugada, April percebe que Tara caiu no sono, com a cabeça
recostada na ponta da cama. April pega outro lençol e, com cuidado, o estende sobre a irmã. Ouve
uma voz.
— Lil...?
A palavra foi dita pelo velho. Os olhos dele continuam cerrados, mas a boca se movimenta
furiosamente, a expressão denotando raiva. Lil é o apelido de Lillian, a falecida esposa de David.
April não ouvia o apelido há anos.
— Pai, é April — sussurra ela, tocando o rosto dele. O velho se recolhe, com os olhos ainda
fechados. A boca está contorcida e a voz arrastada e embargada, devido a uma lesão neural de um
lado do rosto.
— Lil, traga os cachorros para dentro! Tem uma tempestade se aproximando... e das
grandes... de vento nordeste!
— Pai, acorda — sussurra April suavemente, a emoção tomando conta dela.
— Lil, onde você está?
— Pai?
Silêncio.
— Papai?
Nesse ponto, Tara já está se sentando, piscando assustada com a voz esganiçada do pai.
— O que está acontecendo? — pergunta ela, esfregando os olhos.
— Papai?
O silêncio continua, com a respiração do velho agora muito rápida e pesada.
— Pa...
A palavra fica presa na garganta de April quando ela vê uma expressão horrível atravessar o
rosto do homem. Suas pálpebras ficam semicerradas, mostrando o branco dos olhos e ele começa a
falar com uma voz assustadoramente clara: — O diabo tem planos para nós.
Na penumbra formada pela lanterna, as irmãs trocam um olhar mortificado.
A voz que vem de David Chalmers é grave e arrastada, como se fosse um motor de
caminhão.
— O dia do Juízo Final se aproxima... O Impostor caminha entre nós.
Ele fica em silêncio, com a cabeça caída num lado do travesseiro, como se as ligações para o
cérebro tivessem sido cortadas.
Tara verifica o pulso do pai.
E olha para a irmã.
April olha para o rosto do pai, a expressão dele está agora descontraída e relaxada,
transformou-se na máscara tranquila e esperançosa de um sono profundo e infinito.
Com a luz da manhã, Philip se mexe no saco de dormir estendido no chão da sala. Ele se
senta e esfrega o pescoço dolorido, as juntas duras de frio. Por um momento, permite que o olhar se
ajuste à luz fraca e se orienta pelos arredores. Ele vê Penny no sofá, encapsulada num monte de
cobertores, dormindo profundamente. Vê Nick e Brian do outro lado da sala, igualmente enrolados
em cobertores, também dormindo. A lembrança da vigília da noite anterior retorna em etapas, a luta
agonizante e sem esperanças para ajudar o velho e abrandar os temores de April.
Ele olha além da sala. Nas sombras do corredor ao lado, dá para ver a porta para o quarto
principal, ainda fechada.
Philip sai de dentro do saco de dormir e se veste em silêncio e com pressa. Ele põe as calças
e as botas. Passa os dedos pelo cabelo e vai até a cozinha fazer um bochecho. Ouve o murmúrio de
vozes atrás das paredes. Vai até a porta do quarto e fica ouvindo. É a voz de Tara.
Ela está rezando.
Philip bate suavemente à porta.
No segundo seguinte, a porta se abre e April está ali de pé, com a expressão de alguém que
teve ácido jogado nos olhos. Estão tão vermelhos e úmidos que parece que foram golpeados.
— Bom dia — diz ela, quase sem voz.
— Como ele está?
Os lábios dela tremem.
— Não está.
— O quê?
— Ele se foi, Philip.
Philip olha para ela.
— Ai, meu Deus... — Engole em seco. — Eu sinto muito, April. Sinceramente.
— Está bem.
Ela começa a chorar. Depois de um momento constrangedor — uma onda de emoções
atingindo o estômago de Philip —, ele a puxa para perto de si e a abraça. Fica ali segurando a moça
e acaricia a cabeça dela. April estremece nos braços dele como uma criança perdida. Philip não sabe
o que dizer. Por cima do ombro dela, ele pode ver o que se passa no quarto.
Tara Chalmers está ajoelhada ao lado da cama, rezando em silêncio, com a cabeça encostada
no monte de lençóis. Uma das mãos está pousada na mão fria e nodosa do pai. Por alguma razão
que Philip não consegue explicar, é difícil para ele tirar os olhos da mão da garota acariciando os
dedos sem vida do falecido.
— Eu não consigo tirar ela de lá. — April está sentada na mesa da cozinha, bebericando uma
xícara de chá morno e fraco, fervido numa lata de álcool gel. Seus olhos estão secos pela primeira
vez desde que saiu da câmara mortuária, naquela manhã. — Tadinha... Acho que está rezando para
ver se ele ressuscita.
— Não há vergonha nenhuma nisso — garante Philip. Ele se senta diante de April à mesa,
com uma tigela de arroz pela metade à frente. Não está com fome.
— Você já pensou no que quer fazer? — pergunta Brian, na cozinha. Ele está na pia,
colocando no filtro a água que pegou das privadas dos andares de cima.
O barulho de Nick jogando cartas com Penny na sala ao lado chega até eles.
April olha para Brian.
— Fazer sobre o quê?
— Sobre o seu pai... sabe... do enterro?
April suspira.
— Você já passou por isso antes, não é? — pergunta a Philip.
Philip olha para o arroz que não comeu. Não faz a menor ideia se ela está falando de Bobby
Marsh ou Sarah Blake, sobre os quais ele contou a April na noite anterior.
— Sim, senhora. É verdade. — Ele olha para ela. — Mas o que quer que você decida, nós
vamos te ajudar.
— É claro que nós vamos enterrá-lo. — A voz fica um pouco embargada. Ela olha para
baixo. — Eu só nunca pensei que fosse ser num lugar como este.
— Nós vamos enterrar ele juntos — assegura Philip. — Vamos fazer com toda a dignidade.
April olha para baixo, uma lágrima cai no chá.
— Eu detesto isso.
— Nós temos que ficar juntos — diz Philip, sem muita convicção. Só fala porque não sabe
mais o que dizer.
April enxuga os olhos.
— Tem um pouco de terra fofa lá nos fundos, debaixo do...
Um barulho forte a interrompe, vindo do corredor, e todas as cabeças se viram para lá.
Um baque surdo é seguido por algo se quebrando e móveis sendo revirados.
Philip já pulou da cadeira, antes mesmo de os outros perceberem que o barulho vem de trás
da porta fechada do quarto principal.