— Que diabo é isso?
Brian acorda de repente em meio à escuridão do quarto. Ele apalpa a mesinha de cabeceira
em busca de uma lâmpada de querosene, derrubando o copo do centro da lâmpada e esparramando
o líquido. Ele se levanta e vai até a janela, o chão gelado contra as solas dos pés.
A luz da lua ilumina uma cristalina e fria noite de outono, permitindo divisar o contorno de
todas as formas com um reluzente halo de prata. Brian ainda pode ouvir as latas colocadas nos fios
dando o alarme em algum lugar lá fora. Ele também pode ouvir os outros se mexendo nos quartos
atrás dele, ao longo do corredor. A essa altura, todo mundo já está de pé, acordados pelo barulho das
latas.
Mas o mais estranho é que — e Brian se pergunta se não estaria imaginando coisas — o
barulho das latas parece estar partindo de todas as direções. As latas de alumínio estão batendo nos
arvoredos que ficam atrás da casa, assim como nos que ficam na frente. Brian estica o pescoço para
ver melhor, quando a porta do quarto é aberta de supetão.
— Cara! Você está acordado? — Philip está sem camisa, só de jeans e botas de lenhador,
que ele ainda não teve a oportunidade de amarrar. Ele ergue a espingarda numa das mãos, os olhos
arregalados e alarmados. — Eu vou precisar que você pegue aquele tridente no corredor dos fundos,
agora mesmo!
— São Mordedores?
— Só faz o que eu pedi!
Brian assente e sai correndo do quarto, o cérebro afogado em pânico. Ele só está com a calça
do pijama e uma camiseta sem mangas. Enquanto corre pela escuridão da casa — desce as escadas,
atravessa o salão e parte na direção do hall dos fundos —, sente um movimento do lado de fora das
janelas e a presença de outras pessoas que o cercam de fora.
Pegando o tridente que estava encostado na porta dos fundos, Brian se vira e volta para a
sala principal.
A essa altura, Philip, Nick e até Penny já desceram as escadas. Eles vão até a janela
principal, que oferece uma ampla visão dos terrenos da vizinhança, da ladeira que vai dar na estrada
até a ponta do pomar mais próximo. Na mesma hora veem vultos escuros — na altura do chão — se
esgueirando na direção da casa grande, vindo de três direções diferentes.
— Aquilo ali são carros? — fala Nick de um jeito que mal passa como sussurro.
À medida que os olhos se ajustam à luz da lua, todos percebem que o que veem realmente
são carros se movimentando lentamente pelo terreno da propriedade, em direção à casa. Um vem
subindo pela estrada sinuosa, outro aparece pelo lado norte do pomar, um terceiro pode ser visto
mais ao sul, passando lentamente sobre a estradinha de cascalho que sai das árvores.
Em sincronia quase que perfeita, eles param de repente em pontos equidistantes da casa.
Ficam parados por um segundo, a uns 15 metros de distância uns dos outros, com as janelas escuras
demais para mostrar os ocupantes.
— Essa não é nenhuma caravana de boas-vindas — murmura Philip, o maior eufemismo da
noite.
E de novo, quase que em perfeita sincronia, os dois faróis de cada carro se acendem ao
mesmo tempo. O efeito é bastante dramático — na verdade, quase teatral — quando os faróis
iluminam as janelas da casa, enchendo o interior escuro com a luz fria de cromo. Philip está pronto
para sair e marcar posição com a espingarda imprestável quando eles ouvem o som de uma batida,
vinda dos fundos da casa.
— Querida, você fica aqui com Brian — diz Philip a Penny. Depois, lança um olhar para
Nick. — Nicky, eu quero ver se você consegue escapar por uma janela lateral, pegar a machadinha e
atingi-los por trás, se puder. Está me entendendo?
Nick compreende perfeitamente e sai pelo corredor lateral.
— Fique atrás de mim, mas fique próximo.
Philip levanta a espingarda, encostando a coronha no ombro. Com cuidado e concentrado
com uma calma de serpente, Philip se vira como um fuzileiro na direção dos passos que vêm da
cozinha e pisam em cacos de vidro.
— Vamos com calma, chefe — diz o invasor com um simpático sotaque do Tennessee,
erguendo o cano de uma Glock de .9 mm, quando Philip entra na cozinha com a espingarda
igualmente levantada.
Antes de ser tão bruscamente interrompido, o intruso passeava calmamente pela cozinha,
como se tivesse saído da cama para fazer um lanchinho de meia-noite. Os faróis que vêm de fora
cortam o ambiente com uma radiação violenta. O painel de vidro em cima da maçaneta atrás do
homem está quebrado e a luz tênue do dia está começando a raiar.
Com bem mais de 2 metros de altura, calças puídas, botas enlameadas e um colete de Kevlar
todo ensanguentado, o invasor é completamente careca, tem uma cabeça em forma de míssil cortada
por uma cicatriz, e olhos que são como crateras cavadas por pequenos meteoros. Olhando mais de
perto, ele parece doente, como se tivesse sido exposto à radiação, a pele coberta de feridas.
Philip aponta a espingarda inútil para a careca do homem — a distância entre eles é de uns 3
metros — e se esforça para fingir, talvez até acreditar, que a espingarda está mesmo carregada.
— Eu vou dar a vocês o benefício da dúvida — diz Philip — e partir do princípio que vocês
achavam que a casa estava desocupada.
— É isso aí, chefe — diz o careca, a voz calma, talvez dopada, como um DJ doidão. Seus
dentes são encapados de ouro e reluzem fracamente quando ele dá um sorriso amarelo.
— E por isso nós agradeceríamos muito se você nos deixasse em paz, sem causar danos.
Uma expressão de ofensa toma o rosto do homem com a Glock.
— Ah, aí você não está sendo um cavalheiro. — O homem tem um leve tremor, um tique
nervoso que deixa passar uma violência latente. — Eu também vejo que você tem uma coisinha
bem bonitinha lá atrás.
— Deixe ela para lá. — Philip mantém a posição. Ele consegue ouvir a porta da frente
ranger e o som de passos atravessando a sala. Seu cérebro está entrando em pânico e mandando
impulsos de partir para a guerra. Ele sabe que os próximos segundos serão críticos, talvez até
mortais. Mas tudo o que pensa em fazer é manter a posição. — Nós não queremos nenhum banho
de sangue aqui e, meu irmão, eu garanto que, aconteça o que acontecer, o seu sangue e o meu
sangue vão ser os primeiros a derramar.
— Quanta educação! — O careca grita repentinamente para um de seus camaradas no
escuro. — Baixinho?
Uma voz vem de trás da porta dos fundos.
— Já peguei, Tommy!
E, quase que na mesma hora, Nick aparece do lado de fora da janela quebrada da porta dos
fundos, com uma imensa faca Bowie encostada na traqueia. O sequestrador é um sujeito franzino,
com espinhas e um penteado rente de fuzileiro naval. Ele abre a porta e empurra Nick para dentro
da cozinha.
— Desculpe, Philly — diz Nick, ao ser prensado contra os armários tão forte que precisa
puxar fôlego. O jovem magro com o penteado rente mantém a faca encostada no pomo de adão de
Nick e a machadinha no cinto. Um sujeito esquelético, elétrico, com luvas Carnaby sem dedos, o
garoto parece que acabou de fugir da prisão de um navio de guerra. O uniforme está com as mangas
rasgadas e os braços nus cobertos de tatuagens de prisão.
— Espere um pouco — diz Philip para o careca. — Vocês não têm motivo para...
— Sonny! — O careca chama outro cúmplice na mesma hora em que Philip ouve passos
estalando na madeira centenária do salão principal. Philip mantém a arma levantada e apontada,
mas dá uma olhadinha rápida por cima do ombro. Brian e Penny se encolhem nas sombras logo
atrás de Philip, a cerca de 1,5 metro dele.
Dois outros vultos aparecem de repente atrás de Brian e Penny, fazendo a menininha pular.
— Já cobrimos aqui, Tommy! — diz um dos vultos, quando o cano de aço de um revólver de
grande calibre (talvez um Magnum 357, ou um .45 do exército) fica visível a todos, pressionado
atrás da cabeça de Brian... que se enrijece como um animal encurralado.
— Esperem — pede Philip.
De esguelha, ele pode ver que os dois vultos que apontam as armas para Brian e Penny são
um homem e uma mulher... embora mulher seja um termo generoso nesse caso. A garota que segura
Penny pelo colarinho é uma marionete andrógina de pele e osso, vestindo calças de couro e malhas
sobrepostas, com os olhos fortemente delineados de preto e a palidez ligeiramente esverdeada de
uma viciada. Na perna esquelética, ela tamborila nervosamente os dedos no cano de um revólver
especial da polícia, calibre .38.
O homem ao lado dela, o tal que aparentemente se chama Sonny, também tem cara de ser
bem chegado a uma agulha. Com olhos fundos, ele encara fixamente a frente, em meio a uma
máscara purulenta de ignorância e crueldade, o corpo macilento vestido com retalhos de tecido
camuflado.
— Eu gostaria de agradecer, irmão — diz o careca, enfiando a .9 mm no cinto, agindo como
se o confronto tivesse oficialmente terminado. — Você criou um lugar bem acolhedor aqui. — Ele
vai até a pia e se serve calmamente da jarra de água em cima da bancada, bebendo um copo inteiro.
— Vai ser uma belíssima base para nós.
— Está tudo muito bem — diz Philip, sem dar qualquer sinal de que irá abaixar a falsa arma.
— O único problema é que nós não podemos aceitar mais gente.
— Tudo bem, irmão.
— Nesse caso, o que exatamente vocês planejam...? Quais são suas intenções?
— As nossas intenções? — O careca pronuncia a palavra com uma falsa profundidade. —
Nossa intenção é tomar este lugar de vocês.
Alguém que Philip não consegue ver solta um risinho contido, achando tudo muito
divertido.
O cérebro de Philip é como um tabuleiro de xadrez quebrado. Ele sabe que é bem provável
que esses vagabundos estejam realmente pensando em matar todo mundo na casa. Ele sabe que são
parasitas e que provavelmente já vinham rondando o lugar como urubus há várias semanas; pelo
visto, Brian não estava ouvindo coisas.
Mesmo agora, Philip ainda consegue ouvir mais gente do lado de fora — vozes baixinhas,
galhos estalando — e faz um rápido cálculo mental: eles são pelo menos seis, talvez mais, e
possuem no mínimo quatro carros, e todos parecem estar fortemente armados, com bastante
munição — Philip pode ver automáticas e cartucheiras presas nos cintos de alguns deles —, mas a
única coisa que eles parecem não ter, com a qual Philip talvez (apenas talvez) possa lidar, é um
mínimo de inteligência. Até o careca grandalhão, que aparenta ser o chefe, tem um olhar de um
viciado idiota. Não vai haver nenhum apelo à misericórdia, nenhum apelo a um Deus maior. Philip
só tem uma chance de sobrevivência.
— Posso falar um negócio, antes de vocês fazerem qualquer coisa precipitada?
O careca ergue o copo, como se estivesse fazendo um brinde.
— À vontade, meu amigo.
— O que eu quero dizer é que nós temos duas maneiras de resolver a situação.
Isso parece atiçar a curiosidade do careca. Ele põe o copo na bancada e olha para Philip.
— Só duas?
— Uma delas é a gente sair no pau e eu já posso até prever qual vai ser o resultado.
— Diga.
— Vocês vão dominar a gente e vai estar tudo acabado, mas tem uma coisa que eu prometo
que vai acontecer. Uma coisa só e eu vou ser honesto: eu nunca tive tanta certeza de algo na minha
vida.
— E o que é?
— Aconteça o que acontecer, eu vou conseguir dar um único tiro, e digo isso com o maior
respeito, mas garanto que a maior parte deste aço vai parar na parte de cima do seu corpo. Agora,
senhor, quer ouvir a segunda opção?
O careca perdeu todo o senso de humor.
— Continue.
— A segunda opção é vocês deixarem a gente sair daqui vivos e tomarem a casa com nosso
consentimento, e ninguém vai ter que limpar sujeira alguma e o senhor ainda fica com a parte de
cima do corpo.
Por algum tempo, as coisas fluem de maneira ordenada (segundo as ordens do careca). O
casal de drogados — em sua cabeça atormentada, Philip pensa neles como Sonny e Cher —
simplesmente se afasta de Brian e Penny, permitindo que Brian pegue a menina do chão e a
carregue pelo salão, até a porta.
O acordo, se é que é possível chamá-lo assim, é para Philip e o grupo simplesmente saírem
da villa, deixando todos os pertences e ponto final. Brian vê Philip se afastando da casa com a
espingarda ainda erguida. Graças a Deus por essa antiguidade de merda. Nick vai logo atrás. Os
dois então se juntam a Brian e Penny, e Brian abre a porta com a perna, enquanto segura Penny nos
braços.
Eles se arrastam para fora, ainda apontando a espingarda para os invasores, dentro da casa.
Muitas coisas inundam os sentidos de Brian: o vento frio, a luz pálida do amanhecer atrás do
pomar, as silhuetas de mais dois atiradores, um em cada flanco da casa e os carros com os faróis
altos ainda acesos, como se fossem os refletores de um teatro anunciando o próximo ato de uma
peça de terror.
A voz do careca avisa lá de dentro: — Meninos, deixem eles passarem!
Os dois cúmplices do lado de fora, vestidos com uniformes militares esfarrapados e com
artilharia pesada nas mãos — cada um leva uma espingarda de cano curto — acompanham com o
interesse de aves de rapina o momento em que Brian passa Penny cuidadosamente para os ombros,
como se fosse um cavalinho. Philip sussurra em voz baixa: — Fiquem juntos e venham atrás de
mim. Eles ainda querem matar a gente. Façam apenas o que eu digo.
Brian segue Philip — que continua com o peito descoberto e aquela arma ridícula levantada,
como se fosse um fuzileiro naval — pelo pátio, passando por um dos zelosos vigias e caminhando
na direção de um monte de pessegueiros.
É preciso uma quantidade anormal de tempo para Philip atravessar todo mundo pela
propriedade e entrar nas sombras do pomar mais próximo — no relógio, não foram mais do que
alguns segundos, mas para Brian Blake foi uma eternidade —, porque agora a metódica
transferência de propriedade começa a desabar.
Brian pode ouvir ruídos perigosos atrás dele enquanto apressadamente carrega Penny em
direção às árvores. Ele continua descalço e as solas dos pés doem com as pedras e os galhos em que
pisa. Vozes raivosas são ouvidas vindas da casa, e então passos e uma movimentação na varanda da
frente.
O primeiro tiro ecoa exatamente quando Philip e o grupo estão entrando no meio das
árvores. A bala voa pelo ar e atinge um galho que está a 15 centímetros do ombro direito de Brian,
cuspindo um pedaço da casca da árvore no rosto dele e fazendo Penny dar um gritinho. Philip
empurra Brian — ainda com Penny nos ombros — mais para dentro das sombras e ordena: —
CORRA, BRIAN! CORRA! AGORA!
Para Brian Blake, os cinco minutos seguintes se passam como um sonho borrado e caótico.
Ele ouve mais tiros atrás dele, com as balas zunindo pela folhagem enquanto corre por entre as
árvores. A luz aguada do amanhecer ainda não afastou as sombras densas dos pomares. Os pés
descalços — cada vez mais machucados — se enterram no tapete de folhas e de líquidos das frutas,
o cérebro espocando com flashes de pânico. Penny vai cavalgando nas costas dele, ofegante de
tanto terror. Brian não tem a menor ideia de que distância deve percorrer, nem para onde, nem qual
é a hora de parar. Ele simplesmente vai se metendo mais e mais pelas sombras do pomar.
Ele atravessa uns 200 metros em meio às sombras das árvores antes de chegar a um imenso
amontoado de lenha apodrecendo e se esconde ali atrás.
Tentando puxar o ar rapidamente para os pulmões, o ar condensado totalmente visível na
atmosfera fria e o coração pulsando nos ouvidos, ele delicadamente tira Penny de cima das costas e
a coloca ao lado, no mato.
— Fique abaixada, querida — sussurra. — E bem, mas bem quietinha mesmo. Igual a um
ratinho.
O pomar vibra com movimentos vindos de todas as direções — os tiros pararam,
momentaneamente — e Brian se arrisca a esticar o pescoço por cima da lenha para ver melhor.
Através das grossas colunas de pessegueiros, Brian pode divisar um vulto a cerca de 100 metros de
distância, vindo na direção deles.
Com os olhos recém-ajustados às sombras, Brian percebe que é um dos sujeitos que estavam
fora da casa, com a espingarda na mão, pronta para entrar em ação. Outras pessoas também estão
passando pelas árvores atrás dele e uma sombra se aproxima em ângulo reto do sujeito.
Recolhendo-se atrás da lenha que apodrece, Brian tenta pesar as opções freneticamente. Se
sair correndo, vão ouvi-lo. Se ficar parado, com certeza vão topar com ele ali. E onde é que Philip
foi parar? E Nick?
Nessa hora, Brian ouve galhos se quebrando em outra parte do bosque. O ritmo vai
aumentando. Alguém se move rapidamente na direção do homem armado.
Olhando por cima da lenha, Brian vê a silhueta do irmão, a 50 metros de distância, se
esgueirando junto aos arbustos, se dirigindo ao atirador em ângulo reto. Brian sente a coluna gelar
de medo e o estômago se retorcer.
Nick Parsons aparece nas sombras, do lado oposto ao do atirador, com uma pedra na mão.
Ele para e arremessa a pedra, do tamanho de um limão grande, que cruza uns 30 metros do pomar.
Ela bate numa árvore, com um baque bem alto, o que assusta o atirador.
O sujeito se vira e manda um tiro no escuro, na direção de onde partiu o barulho, o
estampido sônico ecoando por todo o pomar e fazendo Penny pular. Brian se abaixa, mas não antes
de testemunhar, quase que na mesma hora, um borrão se movimentando na direção do atirador,
antes de o sujeito sequer ter uma chance de atirar novamente no bosque.
Philip Blake sai do meio das árvores com a velha espingarda de cano duplo já em posição. A
coronha petrificada de madeira atinge o atirador bem na nuca, com tanta força que ele quase salta
para fora das botas. A arma que tem nas mãos sai voando. O atirador cai estirado na lama.
Brian desvia o olhar, ao mesmo tempo em que cobre os olhos de Penny, e Philip, rápida e
selvagemente, termina o serviço com mais quatro golpes portentosos na cabeça do atirador caído.
E agora o equilíbrio de forças muda sensivelmente. Philip encontra uma pistola com
numeração raspada, uma .38 de cano curto, atrás do cinto do atirador. Um monte de cartuchos e um
carregador melhoram ainda mais a situação de Philip e Nick. Brian acompanha tudo isso a
distância, do esconderijo a 50 metros dali.
Uma onda de alívio passa pelo corpo de Brian, um resto de esperança. Com isso eles vão
poder fugir. Vão poder começar tudo de novo. Sobreviver mais um dia.
Mas quando Brian faz sinal para o irmão do esconderijo, e Philip e Nick vão até lá, a
expressão que Philip traz no rosto, naquela luz ainda pálida, manda uma onda de pânico direto para
o estômago de Brian.
— A gente vai expulsar esses filhos da puta daqui. Todos eles.
— Mas Philip, e se a gente só...
— A gente vai retomar este lugar. É nosso e eles vão ser expulsos.
— Mas...
— Escuta aqui. — Tem alguma coisa na maneira que Philip encara o irmão que faz a pele de
Brian formigar. — Eu preciso que você proteja minha filha de qualquer perigo, aconteça o que
acontecer. Está me entendendo?
— Estou, mas...
— Isso é tudo o que preciso que faça.
— Tudo bem.
— Trate apenas de mantê-la em segurança. Olhe para mim. Pode fazer isso por mim?
Brian assente.
— Claro... É claro que sim, Philip. Pode deixar. Só não vá dar um jeito de morrer.
Philip não diz nada, não reage, mantém o olhar fixo enquanto enfia um cartucho na
espingarda calibre .20 e então olha para Nick.
Em questão de segundos, os dois homens já voltaram a entrar em ação, desaparecendo atrás
de mais um amontoado de árvores, deixando Brian sentado no mato, desarmado, petrificado de
terror, tomado pela indecisão e com os pés descalços sangrando. Será que Philip queria que ele
apenas ficasse ali, quieto? Será que era esse o plano?
Um tiro ecoa como um trovão. Brian dá um pulo. Outro tiro vem em resposta, o eco como
um bumerangue acima das árvores, no céu frio. Brian cerra os punhos com força suficiente para
tirar sangue. Ele deve apenas ficar sentado ali?
Brian puxa Penny para junto de si quando mais um tiro se faz ouvir, mais perto, o som
abafado e estrangulado de um suspiro de morte reverberando logo a seguir. Os pensamentos de
Brian se aceleram de novo, o corpo inteiro tremendo de medo.
Ouvem passos na direção do esconderijo. Brian se aventura a dar uma rápida espiada por
cima da lenha e vê o careca sinistro com a Glock .9 mm se esgueirando rapidamente por entre as
árvores, o rosto marcado espumando com ódio assassino. O corpo torcido do garoto chamado
Baixinho está caído a uns 100 metros ao norte, com metade da cabeça destruída.
Mais um tiro faz Brian se abaixar, o coração quase saindo pela garganta. Ele não sabe se o
careca foi atingido, ou se foi ele quem disparou o tiro.
— Vamos lá, querida — fala Brian para uma Penny quase catatônica, encolhida sob uns
arbustos e cobrindo a cabeça. — A gente tem que dar o fora daqui.
Ele a retira com força dos arbustos e a conduz pela mão — ficou perigoso demais levá-la nas
costas —, arrastando-a para longe do tiroteio.
Eles se esgueiram por trás das sombras dos pessegueiros, mantendo-se abaixo das moitas e
evitando as trilhas que cortam o pomar. As solas dos pés estão quase entorpecidas pela dor e pelo
frio e Brian ainda ouve vozes atrás dele, alguns tiros isolados e depois mais nada.
Por muito tempo, Brian não ouve nada a não ser o vento batendo nos galhos e talvez uma
série de passos desvairados aqui e ali, mas ele não tem certeza, o coração está batendo alto demais
nos ouvidos. Mas ele segue em frente.
Avançam mais uns 100 metros, ou algo assim, antes de se esconderem atrás de um carro de
feno velho e quebrado. Recuperando o fôlego, Brian mantém Penny perto de si.
— Você está bem, querida?
Penny consegue colocar o polegar para cima, mas está com uma expressão atordoada de
pavor.
Ele confere as roupas da menina, o rosto e corpo dela. Não parece ter ferimentos. Ele dá um
tapinha na cabeça dela e tenta confortá-la, mas a fadiga e a adrenalina estão fazendo Brian tremer
demais e ele mal consegue pensar.
Ele ouve um som e estaca. Agacha-se ainda mais e dá uma olhada por entre as tábuas da
carroça apodrecida. A uns 50 metros de distância, um vulto caminha sorrateiramente por entre as
sombras de uma ravina. O vulto é alto e esguio e carrega uma espingarda, mas está longe demais
para ele poder identificar.
— Papai...?
A voz de Penny assusta Brian, saindo como um sussurro fraco, mas alta o bastante para
entregar a posição deles. Brian agarra a garota. Ele lhe cobre a boca com a mão. Depois, estica o
pescoço para olhar por cima do vagão. Vê de relance um vulto subindo pela ravina.
Infelizmente, o vulto que vem na direção deles não é o pai da menina.
O tiro praticamente desfaz metade do vagão, e Brian é jogado no chão num redemoinho de
poeira e escombros. Ele come terra e engatinha para pegar Penny, então consegue agarrar um
pedaço da camisa dela e a arrasta mais para dentro da floresta. Ele rasteja por vários metros,
arrastando Penny consigo, e finalmente consegue se levantar e arrastá-la pelas sombras, mas tem
alguma coisa errada.
A menininha está completamente mole nos braços dele, como se tivesse desmaiado.
Brian pode ouvir as botas correndo pelo mato atrás dele, o barulho nas folhas, enquanto o
atirador encurta a distância para dar o tiro de misericórdia. Jogando Penny sofregamente nas costas,
Brian corre o mais rápido que pode coberto pelas árvores, mas não vai muito longe antes de
perceber que está empapado de sangue. E o sangue está escorrendo pela frente da camisa dele,
deixando-o ensopado.
— Ai, não, meu Deus, não, meu Deus, não, meu Deus, não, não...
Brian coloca Penny na terra macia e a deita de costas. Seu rosto sem sangue está da cor de
um lençol. Os olhos estão vidrados e fixos no céu enquanto ela soluça, um pequeno filete de sangue
escorrendo pelo canto da boca.
Ele nem consegue ouvir o atirador, que corre pesado na direção dele, a espingarda soltando o
estalo de mais um cartucho sendo carregado. A camisa de Penny, de algodão, está totalmente
molhada de vermelho escuro, com um rombo no tecido de pelo menos 15 centímetros de diâmetro.
Os grãos do cartucho de uma arma calibre .20 têm poder suficiente para penetrar o aço e parece que
a menina foi atingida por pelo menos metade dos grãos, num tiro que entrou pelas costas e saiu pelo
lado da barriga.
O atirador se aproxima.
Brian levanta a camisa da menina e solta um grito quase primitivo de agonia. Sua mão não
consegue estancar o sangramento, e o rombo aberto parece uma lua crescente. Brian pressiona o
ferimento com a mão. O sangue borbulha. Ele rasga um pedaço da camisa e tenta tapar o buraco na
barriga dela, mas o sangue agora está por todos os lados. Brian gagueja, chora e tenta falar com ela,
enquanto o sangue escorre como óleo por entre os dedos e o atirador se aproxima: — Está tudo
bem, vai dar tudo certo. A gente vai conseguir salvar você. Vai dar tudo certo, você vai ficar bem
melhor...
A barriga e os braços de Brian são batizados com o calor da força vital que se esvai da
menina. Penny solta um último e débil sussurro: — ...longe...
— Não, Penny, não, não, não faz isso, não... Não vai pra longe agora, não... não vai pra
longe...!
Nessa hora, Brian ouve um galho se partir imediatamente atrás dele.
Uma sombra se projeta por cima de Penny.
— Que pena! — murmura uma voz rascante atrás de Brian, com o cano frio de uma
espingarda pressionando a nuca dele. — Dá uma boa olhada nela.
Brian se vira e olha para o atirador, um homem barbado, tatuado e com uma barriga de
cerveja, apontando a arma direto para o rosto dele. Depois, quase que pensando melhor, o homem
ruge: — Olha para ela... porque vai ser a última coisa que você vai ver nesta vida.
Em momento algum Brian tira a mão de cima da ferida da Penny, mas ele sabe que já é tarde
demais.
Ela não vai sobreviver.
E agora ele está pronto — para morrer...
O tiro parece um sonho, como se Brian de repente tivesse voado para fora do corpo e ficasse
pairando acima do pomar, testemunhando coisas da perspectiva de um espírito descarnado. Mas,
quase que instantaneamente, Brian, que, por instinto, se lançou para a frente na hora do tiro, se
empertiga chocado. O sangue espirra por cima de seus braços e por cima de Penny. Será que o
impacto da bala foi tão avassalador que ele nem chegou a sentir dor? Será que Brian morreu e não
sabe?
A sombra do atirador começa a cair, quase que em câmera lenta, como uma velha árvore que
se vai.
Brian se vira a tempo de ver que o homem de barba foi morto pelas costas. O alto da cabeça
virou uma posta vermelha, a barba tingida de sangue. Com os olhos se revirando, ele cai. Brian fica
embasbacado. Como uma cortina despencando, o morto revela dois vultos atrás dele, que correm na
direção de Brian e de Penny.
— MEU DEUS, NÃO! — Philip joga a espingarda (ainda fumegante) no chão e corre por
entre as árvores. Nick o segue. Philip chega rugindo para Brian e o empurra para o lado. — NÃO!
NÃO!
Philip cai de joelhos ao lado da menina que agora está asfixiando, quase morrendo, afogada
no próprio sangue. Ele a recolhe do chão e suavemente toca o ferimento como se fosse um
arranhão, uma coisinha à toa, uma topada. Ele a envolve, ficando encharcado de sangue.
Brian está caído no chão a 1 metro de distância, respirando a terra molhada, com uma
cortina de choque sobre os olhos. Nick fica ali perto.
— A gente pode parar o sangramento, não pode? A gente pode dar um jeito, não pode?
Philip nina a garota ensanguentada.
Penny se esvai nos braços do pai com um último suspiro da morte, que deixa o rosto da
menina branco e frio como porcelana. Philip a sacode.
— Vamos lá, amorzinho... Fica aqui... Fica aqui com a gente. Vamos lá... fica com a gente...
Por favor, fica com a gente... Meu amorzinho? Meu amorzinho? Meu amorzinho?
Um silêncio terrível paira no ar.
— Meu Deus do Céu — murmura Nick, desviando o olhar para o chão.
Por bastante tempo, Philip fica abraçado à menina, enquanto Nick olha para a terra, rezando
baixinho. Pela maior parte do tempo, Brian fica prostrado no chão, a 1,5 metro de distância,
chorando na terra úmida, balbuciando de leve, mais para si mesmo do que para qualquer outra
pessoa: — Eu fiz de tudo... Mas foi tão rápido... Eu não consegui... Foi... Não dá para acreditar...
Não dá... Penny era...
De repente, a mão grande e vigorosa de alguém puxa Brian por trás, agarrando-o pelo
colarinho.
— O que foi que eu disse? — rosna Philip, num grunhido gutural, enquanto arranca o irmão
da terra e o atira contra o tronco de uma árvore. Brian desfalece. Vê estrelas.
— Philly, não!
Nick tenta se interpor entre os irmãos, mas Philip o empurra com força e ele rola no chão.
Continua com a mão direita fechada na garganta do irmão.
— O que foi que eu disse?
Philip volta a jogar Brian contra o tronco da árvore. A nuca de Brian bate na casca, raios de
luz e de dor enchem o campo de visão dele. Mas Brian não faz força para lutar, nem para fugir. O
que ele quer mesmo é morrer nas mãos do irmão.
— O QUE FOI QUE EU DISSE?
Philip arranca Brian de perto da árvore. O chão vem de encontro a Brian como se fosse um
porrete, batendo num dos ombros e numa das faces e então uma saraivada de chutes é descarregada
sobre Brian, enquanto ele involuntariamente rola pelo chão. Um chute da bota com ponta de aço o
atinge no queixo, com força suficiente para quebrar o maxilar. Outro chute o faz fraturar três
costelas, e uma onda branca de dor cobre todo aquele lado do corpo. Mais um o atinge na lombar,
deslocando uma vértebra e quase perfurando o fígado. Um jato reluzente de dor estilhaça o cóccix
de Brian. E, depois de algum tempo, ele mal pode sentir dor, só pode ver tudo se desenrolar lá de
cima — de cima do corpo estraçalhado, enquanto se entrega àquele espancamento, tanto quanto um
pecador se entrega a um bispo.