Nas imediações do aeroporto de Hartsfield, a chuva dá uma trégua, deixando para trás um
céu metálico de nuvens baixas e um frio deprimente. No entanto, a sensação de avançar tanto em menos de uma hora é incrível. A rodovia 85 tem menos destroços obstruindo as pistas do que a Interestadual 20, e a população de zumbis diminuiu consideravelmente. A maioria dos prédios na beira da estrada continua intacta, as janelas e portas protegidas por tábuas de madeira e seguras. Os poucos mortos-vivos que circulam a esmo parecem quase parte da paisagem — misturando-se às árvores raquíticas, como um fungo desagradável que infesta a floresta. O próprio terreno parece ter se modificado. As cidades estão mortas. Viajar pela região deixa mais uma impressão de desolação
do que de fim do mundo.
O único problema imediato é o fato de todos os postos de gasolina abandonados e paradas
de caminhão estarem infestados de Mordedores e Brian estar ficando muito preocupado com Penny.
A cada parada — seja para fazer xixi, ou arranjar água ou comida —, o rosto dela parece ficar mais
contraído, os pequeninos lábios em forma de tulipa mais rachados. Brian está com medo de que ela
esteja se desidratando. Aliás, está com medo de que todos eles estejam desidratando.
Um estômago vazio é uma coisa (eles podem ficar sem comer por muito tempo), mas a falta
de água é um problema bem mais sério.
Quinze quilômetros ao sul de Hartsfield, quando a paisagem começa a fazer a transição para
trechos de floresta e plantações de soja, Brian já está se perguntando se eles poderiam beber a água
dos radiadores das motos, quando vê uma placa verde de alerta assomando à frente, com uma
abençoada mensagem: PARADA — 1,5 KM. Philip faz sinal para encostarem e eles pegam a saída
seguinte.
Enquanto as motos avançam morro acima e entram no estacionamento, ladeado pela cerca
de um pequeno centro turístico, uma onda de alívio toma conta do corpo de Brian. Graças a Deus, o
lugar está deserto, livre de qualquer sinal de gente viva e de gente morta.
— O que realmente aconteceu lá atrás, Philip?
Brian está sentado numa mesa de piquenique, num pequeno promontório de grama atrás da
cabana do lugar. Philip anda de um lado para o outro, bebendo de uma garrafa de Evian que ele
arrancou de outra máquina de comida quebrada. Nick e Penny estão a 15 metros de distância, mas
ainda visíveis. Nick está rodando Penny num carrossel velho e aos pedaços, embaixo de um
carvalho doente. A menina só fica ali sentada, sem alegria, como uma gárgula, olhando reto para a
frente, enquanto o carrossel roda, roda e roda.
— Eu já mandei você não tocar mais nesse assunto — resmunga Philip.
— E eu acho que você ainda me deve uma resposta.
— Eu não te devo porra nenhuma.
— Alguma coisa aconteceu naquela noite — insiste Brian. Ele não tem mais medo do irmão.
Sabe que Philip pode espancá-lo a qualquer momento (e o potencial para uma onda de violência
entre os Blake é mais iminente agora do que em qualquer outro momento), mas Brian nem se
importa mais. Alguma coisa dentro dele se modificou, como uma placa tectônica que muda com a
paisagem. Se Philip quiser erguer Brian pela garganta, que seja. — Alguma coisa entre você e April.
Philip fica muito calado e olha para baixo.
— E que merda de diferença isso faz?
— Para mim faz muita diferença. As nossas vidas estão em jogo. Tínhamos uma boa chance
de sobreviver naquele prédio e aí, de repente... puf?
Philip olha para cima. Ele encara fixamente o irmão e alguma coisa muito sombria se passa
entre os dois.
— Esquece, Brian.
— Me diz só uma coisa. Você parecia tão ansioso para sair de lá... tem algum plano?
— Do que você está falando?
— Você tem algum tipo de estratégia? Alguma ideia de para onde estamos indo?
— Que diabo é você, um guia turístico?
— E se o número de Mordedores voltar a aumentar? Basicamente, tudo o que nós temos é
um pedaço de madeira contra eles.
— A gente vai encontrar mais alguma coisa.
— Para onde é que nós vamos, Philip?
Philip vira de lado e sobe o colarinho da jaqueta de couro, com os olhos no caminho de
asfalto que vai serpenteando até a linha do horizonte, a oeste.
— Em um mês, mais ou menos, já vai ser inverno. Eu estava pensando em não pararmos,
seguir sempre para o sudoeste... na direção do rio Mississippi.
— E aonde isso vai levar a gente?
— É o caminho mais fácil para o sul.
— E daí?
Philip se vira e olha para Brian. Uma mistura de angústia e determinação cruza o rosto
extremamente tenso de Philip, como se ele não acreditasse de verdade no que está dizendo.
— A gente vai encontrar um lugar para morar, por muito tempo, no sol. Um lugar como
Mobile ou Biloxi. Talvez até Nova Orleans. Sei lá... Um lugar quente. E nós vamos morar lá.
Brian solta um suspiro exausto.
— Parece muito fácil. Só seguir para o sul.
— Se você tiver um plano melhor, sou todo ouvidos.
— Planejamento a longo prazo é um luxo no qual ainda não pensei.
— Vai dar tudo certo.
— A gente tem que arranjar comida, Philip. Eu estou realmente preocupado com a
alimentação de Penny.
— Você pode deixar que com minha filha eu mesmo me preocupo.
— Ela não quis nem comer um Twinkie. Dá para acreditar? Uma criança que recusa um
Twinkie?
— É comida de barata mesmo — grunhe Philip. — Eu não a culpo por isso. A gente vai
encontrar alguma coisa. E ela vai ficar bem. Ela é durona. Igual à mãe.
Brian não tem como contestar isso. Ultimamente, a garota demonstrou ter uma disposição e
tanto, um verdadeiro milagre. Na verdade, Brian até vem pensando se Penny não seria a verdadeira
cola que mantém todo o grupo junto, que os impede de se destruírem mutuamente.
Ele olha para o outro lado da área de descanso, onde a menina continua com os olhos
perdidos girando no carrossel, naquele playground escabroso. Nick já perdeu todo o entusiasmo e só
dá uns poucos empurrões com a bota.
Mais além do playground, o terreno se ergue numa colina de vegetação espessa, onde um
cemitério erodido repousa sob o sol fraco.
Brian vê que Penny está falando com Nick, enchendo a paciência dele por alguma coisa.
Brian se pergunta sobre o que os dois estariam conversando e o que faz a menininha parecer tão
preocupada.
— Tio Nick?
O rostinho de Penny está muito preocupado enquanto ela gira lentamente no carrossel. Ela já
chama Nick de “tio” há muitos anos, mesmo sabendo que ele não é seu tio de verdade. Esse
tratamento sempre deu a Nick uma vontade secreta de pertencer, um desejo de ser realmente tio de
alguém.
— Sim, querida. — Uma sensação de que algo de ruim está para acontecer pesa sobre Nick
Parsons, enquanto ele distraidamente empurra Penny no carrossel. Ele pode ver os irmãos Blake
pelo canto do olho, discutindo alguma coisa.
— O meu pai está zangado comigo? — pergunta ela.
Nick empurra mais forte. Penny olha para baixo, enquanto vai girando lentamente. Ele
procura medir as palavras.
— É claro que não. É claro que ele não está zangado com você. O que você quer dizer com
isso? Por que pensaria numa coisa dessas?
— Ele não fala mais comigo como falava antigamente.
Nick para o carrossel suavemente. A garota procura equilibrar-se levemente na barra do
brinquedo. Nick educadamente lhe dá um tapinha no ombro.
— Olhe só. Eu garanto. Seu pai ama você mais do que qualquer coisa no mundo.
— Eu sei.
— Ele só está vivendo sob muita pressão. É só isso.
— Você não acha que ele está zangado comigo?
— De jeito nenhum. Ele ama muito você, Penny. Pode acreditar. Ele só está... sob muita
pressão.
— É. Eu acho que sim.
— Todos nós estamos.
— É.
— E eu tenho certeza que ninguém aqui tem falado muito ultimamente.
— Tio Nick?
— O que é, querida?
— Você acha que Tio Brian está zangado comigo?
— Meu Deus, não. Por que ele estaria zangado com você?
— Talvez porque ele tenha que ficar o tempo todo me carregando...
Nick sorri com tristeza. Estuda o olhar no rosto da menina, a testinha franzida, toda séria.
Acaricia o rosto dela.
— Olhe só. Você é a menina mais corajosa que eu já vi na minha vida. Estou falando sério.
E você é uma Blake... devia se orgulhar disso.
Ela pensa um pouco a respeito e sorri.
— Sabe o que eu vou fazer?
— Não, querida. O quê?
— Eu vou consertar todas aquelas bonecas quebradas. Você vai ver. Vou consertar todinhas.
Nick sorri para ela.
— Parece um bom plano.
O sorriso da menininha é algo que Nick Parsons imaginou que nunca mais veria de novo.
Instantes depois, do outro lado da área de descanso, em meio às mesas de piquenique, Brian
Blake vê alguma coisa pelo rabo do olho. A 100 metros de distância, além do playground, no meio
dos túmulos alquebrados, das placas apagadas e das flores de plástico amassadas, alguma coisa se
move.
Brian fixa o olhar em três vultos distantes, saindo das sombras das árvores. Arrastando-se de
maneira desengonçada, eles se aproximam como cães de caça preguiçosos que farejam a vítima. É
difícil dizer a distância, mas é como se as roupas deles tivessem passado por uma ceifadeira, as
bocas estão abertas em tormento eterno.
— Hora de a gente se mandar — diz Philip, sem muita urgência, e começa a caminhar para o
playground com passos pesados e mecânicos.
Ao correr atrás dele, Brian pensa por um momento que, do jeito que o irmão está andando,
com os braços vigorosos caindo ao lado do corpo e carregando o peso do mundo nas costas, ele
mesmo poderia ser confundido facilmente — a distância — com um zumbi.
Eles avançam mais alguns quilômetros. Passam por cidades vazias tão paradas quanto os
dioramas de um grande museu. A luz azul do anoitecer começa a projetar sombra sobre o céu
carregado, o vento bate com força no visor dos capacetes conforme o grupo desvia dos escombros e
de trailers abandonados, seguindo para o oeste pela rodovia 85. Brian começa a pensar que eles
precisam encontrar algum lugar para passar a noite.
Aninhado na garupa atrás de Nick, com os olhos marejados e os ouvidos surdos pelo vento e
pelo motor duplo da Harley, Brian tem muito tempo para imaginar o lugar perfeito para um viajante
cansado, na terra dos mortos. Ele imagina uma enorme fortaleza com jardins, trilhas, fossos
inexpugnáveis, cercas de segurança e torres de guarda. Ele daria metade do cérebro por um bife
com batata frita. Ou uma garrafa de Coca-Cola. Ou até um pedaço daqueles bifes misteriosos dos
Chalmers...
Um reflexo passa pelo interior do capacete de Brian e interrompe o fluxo de pensamentos.
Ele olha por cima do ombro.
Estranho. Por um rápido momento, no mesmo instante em que viu um borrão escuro passar
pelo visor, ele pensou ter sentido alguma coisa na nuca, uma sensação muito leve, como o beijo de
lábios gelados. Podia ser só imaginação, mas ele achou que também tinha visto alguma coisa piscar
no espelho retrovisor. Só por um instante. Pouco antes de começarem a rumar para o sul.
Ele olha por cima do ombro e não vê nada atrás, a não ser as pistas vazias se esvaindo,
diminuindo de tamanho e então desaparecendo atrás de uma curva. Brian dá de ombros e volta a
seus pensamentos caóticos e desordenados.
Eles se aventuram ainda mais pelo interior, até não verem nada além de quilômetros e
quilômetros de fazendas abandonadas e terras de ninguém. Dos dois lados da estrada, colinas cheias
de grãos se estendem por ladeiras íngremes. É uma terra antiga — pré-histórica, cansada, que já
vem sendo arada há gerações. Carcaças de máquinas velhas jazem adormecidas por toda a parte,
enterradas em lama e grama.
O entardecer começa a virar noite, e o céu se transforma de cinza claro em azul-escuro. Já
passa das 19 horas e Brian se esqueceu completamente do rápido flash refletido no interior do
capacete. Eles precisam encontrar abrigo. O farol de Philip se acende, jogando um facho de luz
prateada naquelas sombras que só fazem crescer.
Brian está prestes a gritar alguma coisa sobre encontrarem abrigo quando vê que Philip está
fazendo um sinal mais à frente — um aceno meio duro e então um dedo enluvado aponta para a
direita. Brian olha na direção norte e percebe para onde o irmão está apontando.
A distância, além da propriedade rural que se estende, erguendo-se acima das árvores,
nota-se a silhueta de uma casa — tão longe que parece ter sido recortada de papel craft preto. Se
Philip não tivesse apontado, Brian nunca a teria percebido. Mas agora ele entende por que a casa
fisgou Philip com tanta facilidade: ela parece uma imensa relíquia do século XIX, talvez até do
século XVIII — provavelmente uma antiga casa de fazenda.
Brian vê mais um borrão rápido e preto passar pelo canto do olho e como um flash no
espelho lateral — alguma coisa atrás deles, que passou apenas por uma fração de segundo pela
ponta do ângulo de visão.
E aí se foi, desaparecendo exatamente quando Brian se vira no banco para olhar para trás.
Eles pegam a saída seguinte e avançam por uma estradinha de terra, levantando poeira. À
medida que se aproximam da casa — que fica sozinha no alto de uma colina, a pelo menos 800
metros da estrada —, Brian treme de frio. De repente, ele tem um péssimo pressentimento, apesar
do fato de que, quanto mais se aproximam da casa, mais acolhedora ela parece. Essa região da
Geórgia é famosa pelos pomares de pêssego, figo e ameixa, e enquanto as motos rugem pela
estradinha sinuosa que leva até a casa, eles veem que é uma bela relíquia.
Cercada de pessegueiros, que se espalham a distância como os raios de uma roda, a
edificação central é uma imensa construção de tijolos, com dois andares, belos jardins e
águas-furtadas se projetando do telhado. Tem um quê de villa italiana antiga e meio decrépita. A
varanda da frente tem uns 15 metros de comprimento com colunas, balaustradas e janelas de
caixilhos encobertas por trepadeiras marrons e buganvílias. Na penumbra, parece quase um navio
fantasma da esquadra de um tempo anterior à Guerra Civil.
O barulho e a fumaça das Harleys levantam poeira conforme Philip os conduz até o pátio da
frente, que abriga um imenso chafariz feito de mármore e pedra. Aparentemente desativada, a fonte
do chafariz tem uma camada de gosma que se estende por toda a bacia. Vários anexos — talvez
estábulos — se estendem à direita. Um trator está semienterrado no meio do capim. À esquerda da
fachada fica uma imensa cocheira, com espaço suficiente para seis carros.
Absolutamente nada de toda a antiga opulência é percebida por Brian enquanto eles
cautelosamente chegam até uma porta lateral entre a garagem e a casa grande.
Philip estaciona a Harley no meio do redemoinho de poeira, fazendo o motor roncar por
mais um momento. Depois ele a desliga e fica ali, olhando para aquela monstruosidade salmão feita
de tijolos. Nick encosta a moto ao lado da dele e apoia o descanso. Todos passam um longo tempo
sem dizer uma palavra. Finalmente, Philip baixa o descanso, salta da moto e diz para Penny: —
Espere aqui um instante, querida.
Nick e Brian desmontam.
— Aquele taco de beisebol está à mão? — pergunta Philip, sem olhar para eles.
— Você acha que pode ter alguém aí dentro? — pergunta Nick.
— Só tem um jeito de descobrir.
Philip espera Nick dar a volta na Electra Guide e pegar o taco, aninhado na lateral do
bagageiro. Ele traz o taco e passa para Philip.
— Vocês dois fiquem com Penny — diz Philip, avançando para o pórtico.
Brian o segura, agarrando o braço do irmão.
— Philip... — Brian está prestes a dizer alguma coisa sobre vultos escuros passando como
um flash pelos espelhos laterais na estrada, mas se contém. Não tem certeza se quer que Penny ouça
isso.
— Qual é o seu problema?
Brian engole em seco.
— Eu acho que tem alguém seguindo a gente.
*
Os ex-ocupantes da villa já se foram há muito tempo. Aliás, o interior da casa parece que
estava vazio muito antes de a praga irromper. Lençóis amarelados cobrem os móveis antigos. Os
muitos quartos estão vazios, câmaras empoeiradas congeladas no tempo. Um relógio de pêndulo
funciona teimoso numa sala de estar. Ornamentos de um tempo que já passou enfeitam a casa:
portas francesas paramentadas e escadas circulares, duas imensas lareiras separadas com vãos do
tamanho de um armário. Debaixo de um lençol está um piano de cauda, de outro, uma vitrola e
noutro, um fogão a lenha.
Philip e Nick vasculham os andares de cima à procura de Mordedores e não encontram nada
a não ser mais relíquias empoeiradas do Velho Sul: uma biblioteca, um corredor cheio de pinturas a
óleo dos generais confederados em molduras douradas e um quarto de criança com um berço velho
e empoeirado dos tempos coloniais. A cozinha é surpreendentemente pequena — outra
característica do século XIX, quando só os empregados sujavam as mãos cozinhando — mas a
enorme despensa tem prateleiras cheinhas de latas de conserva empoeiradas. Os grãos secos e os
cereais estão todos melados e infestados de vermes, mas a quantidade de frutas e verduras é
impressionante.
— Você está vendo coisas, meu caro — diz Philip, baixinho, em frente às labaredas
crepitantes na sala de estar principal. Eles encontraram pilhas de lenha no pátio dos fundos, ao lado
do celeiro, e conseguiram aquecer os ossos pela primeira vez desde que saíram de Atlanta. O calor e
o abrigo da villa, além dos pêssegos e quiabos, fizeram Penny adormecer imediatamente. Agora ela
cochila numa luxuosa caminha no quarto infantil, no segundo andar. Nick dorme no quarto ao lado
do dela. Mas os dois irmãos não conseguem dormir. — E, de todo modo, quem é que nesse mundo
iria seguir a gente? — pergunta Philip, tomando mais um gole do licor caro que encontrou na
despensa.
— Eu só estou falando, vi o que vi — diz Brian, se balançando nervoso numa cadeira
ornamentada do outro lado da lareira. Ele vestiu uma camisa seca e calças de moletom e está quase
se sentindo humano outra vez. Brian observa o irmão e percebe que Philip está olhando fixamente
para o fogo, como se escondesse alguma mensagem secreta e em código.
Por algum motivo, a visão do rosto consternado e angustiado de Philip refletindo as
labaredas da lareira deixa Brian de coração partido. Sua mente volta às aventuras épicas de infância
pela floresta e às noites passadas em cabanas e tendas improvisadas. Lembra de quando tomou a
primeira cerveja na companhia do irmão, numa época em que Philip tinha apenas 10 anos e ele 13, e
se lembra de que, já naquele tempo, Philip conseguia beber bem mais do que ele.
— Pode ter sido um carro — continua Brian — ou talvez uma van, não tenho certeza. Mas
juro por Deus que vi, mesmo que só de relance... E realmente parecia que estavam atrás da gente.
— Muito bem, e se tiver mesmo alguém atrás de gente. Quem se importa?
Brian reflete por um segundo.
— A questão é que... se eles fossem amistosos... não iriam querer nos alcançar? Fazer
alguma espécie de contato?
— Quem é que vai saber? — Philip continua olhando fixamente para o fogo, com os
pensamentos perdidos em outro lugar. — Seja lá quem for... se estiverem por aí, a possibilidade é de
que estejam tão ferrados quanto nós.
— Isso eu acho que é verdade. — Brian pensa um pouco mais. — Talvez só estejam...
assustados. Talvez estejam... checando a gente.
— Ninguém vai conseguir pegar a gente de surpresa aqui em cima. Isso eu posso garantir.
— É... Acho que não.
Brian compreende perfeitamente o que o irmão está falando. A localização e a posição da
casa são ideais. Situada numa colina acima de quilômetros de árvores esquálidas, a casa conta com
ângulos de visão que permitem vislumbrar qualquer perigo com muita antecedência. Mesmo numa
noite sem lua, os pomares estão tão quietos e silenciosos que ninguém poderia se esgueirar até ali
sem ser visto ou ouvido. E Philip já está estendendo armadilhas com fios no perímetro para
alertá-los quanto a qualquer intruso.
Além de tudo isso, o lugar oferece todo tipo de benefício que pode sustentá-los por algum
tempo, talvez até pelo inverno. Tem um poço nos fundos, gasolina no trator, um lugar para esconder
as Harleys e quilômetros de árvores com frutas comestíveis (ainda que com uma leve camada de
gelo) e lenha suficiente para abastecer o fogão e as lareiras por muitos meses. O único problema é a
falta de armas. Reviraram a casa inteira e só encontraram algumas ferramentas no celeiro — uma
foice velha e enferrujada e um tridente —, mas nenhuma arma.
— Tudo bem com você? — pergunta Brian, depois de um longo silêncio.
— Melhor impossível.
— Tem certeza?
— Tenho, mamãe. — Philip olha para o fogo. — Todos nós vamos ficar melhores depois de
mais alguns dias aqui.
— Philip?
— O que foi agora?
— Posso falar uma coisa?
— Lá vem. — Philip não desgruda os olhos da lareira. Está de suéter e calças jeans secas. As
meias estão furadas e o dedão desponta de uma delas. E essa visão à beira da lareira, o dedão
retorcido de Philip saindo pela meia, toca o coração de Brian. Faz com que o irmão pareça, talvez
pela primeira vez na vida, quase que vulnerável. É extremamente improvável que qualquer um deles
estivesse vivo naquele momento se não fosse por Philip. Brian engole a onda de emoção.
— Eu sou seu irmão, Philip.
— Estou ciente disso, Brian.
— Não. O que eu estou dizendo é que... eu não julgo você e nunca vou julgar.
— Aonde você quer chegar?
— O que eu quero dizer é... eu agradeço muito pelo que você tem feito... Arriscando a
própria vida para proteger a gente. Eu queria que você soubesse. Sou grato por isso.
Philip não diz nada, mas o jeito com que olha para o fogo se modifica um pouco. Ele
começa a olhar além do fogo, as chamas fazendo os olhos dele brilharem de emoção.
— Eu sei que você é uma boa pessoa — prossegue Brian. — Eu sei disso. — Uma breve
pausa. — E eu sei que tem alguma coisa corroendo você por dentro.
— Brian...
— Só um instante, escuta até o fim. — A conversa foi longe demais, chegou ao ponto em
que não tem mais volta. — Se não quiser me contar o que aconteceu entre você e April, está tudo
bem. Eu nunca mais vou tocar neste assunto. — Segue-se uma longa pausa. — Mas para mim você
pode contar, Philip. E você pode contar porque eu sou seu irmão.
Philip se vira e olha para Brian. Uma lágrima isolada escorre pelo rosto rígido. Isso faz o
estômago de Brian se apertar. Ele não se lembra de uma única vez na vida em que tenha visto o
irmão chorar, nem mesmo quando criança. Uma vez, o pai deles deu uma surra impiedosa em
Philip, na época com 12 anos, com uma vara de nogueira. As costas do garoto ficaram tão inchadas
que ele teve que passar semanas dormindo de bruços, e mesmo assim, nunca chorou. Quase que em
desafio, Philip se recusou a chorar. Mas agora, encarando o olhar de Brian à luz das labaredas, a voz
de Philip fica embargada ao dizer: — Eu fodi tudo, cara.
Brian assente sem dizer nada. Só espera. Na lareira, as labaredas crepitam.
Philip abaixa a cabeça.
— Eu acho que me apaixonei por ela. — A lágrima escorre pelo rosto, mas a voz não chega
a falhar. Continua monocórdia e fraca. — Não digo que fosse amor, mas que diabo é o amor? O
amor é uma maldita doença. — Philip faz uma careta, como se um demônio estivesse se
contorcendo dentro dele. — E eu estraguei tudo, Brian. Eu podia ter construído alguma coisa com
ela, construído alguma coisa boa e sólida para Penny. — Ele franze o cenho, como se estivesse
contendo uma maré de tristeza, as lágrimas assomando-lhe os olhos até piscar, quando escorrem
pelo rosto. — Eu não consegui me conter. Ela mandou eu parar, mas não me contive. Não deu.
Sabe... a questão é que... a sensação era tão boa... — Lágrimas escorrem. — Mesmo quando ela me
empurrava, era bom... — Silêncio. — Qual é o meu problema, porra? — Mais silêncio. — Eu sei
que isso não é desculpa. — Pausa. — Eu não sou burro... Só não achava que eu poderia... Não achei
que iria... Eu não pensei que...
A voz falha, até que não resta nada a não ser o crepitar do fogo e o enorme silêncio sombrio
do lado de fora da casa. Finalmente, depois de um período interminável de tempo, Philip olha para o
irmão.
Na luz flamejante, Brian vê que Philip já gastou as lágrimas. Não há mais nada no rosto do
irmão, a não ser a mais pura angústia. Brian não fala nada. Apenas assente.
Os dias seguintes levam ao mês de novembro e eles decidem ficar quietos e ver o que
acontece com o tempo.
Uma geada fina cobre o pomar, numa manhã. No outro dia, uma geada forte toma conta dos
campos e acaba com boa parte das frutas. Mas mesmo com todos os sinais da chegada do inverno,
eles não sentem a menor compulsão de sair, por enquanto. A casa pode ser a melhor aposta para eles
se protegerem dos tempos difíceis que despontam no horizonte. Há frutas e comida em conserva
suficiente (se tomarem cuidado) para eles se manterem por vários meses. E bastante lenha para
aquecê-los. E o pomar parece relativamente livre de Mordedores, pelo menos na vizinhança
imediata.
De certa maneira, Philip parece melhor agora, depois que o peso da culpa foi tirado de seus
ombros. Brian guarda o segredo só para si, pensando frequentemente no assunto, mas nunca o
trazendo à tona. Os dois irmãos estão se estranhando menos e até Penny parece se adaptar
lindamente à nova rotina que estão criando para si mesmos.
Ela descobre uma antiga casa de bonecas no sótão e monta um lugarzinho só para ela (e
todos os brinquedos quebrados), no fim do corredor do segundo andar. Um dia, Brian vai até lá e
encontra todas as bonecas alinhadas no chão, com todos os membros partidos ao lado dos corpos a
que pertencem. Ele passa um bom tempo olhando para aquele mininecrotério antes que Penny o tire
do torpor.
— Vamos lá, tio Brian. Você pode ser médico. Me ajuda a remendar todas elas.
— Boa ideia. Vamos remendar estas bonecas.
Outra vez, de manhã cedo, Brian ouve um som vindo do primeiro andar. Ele vai até a
cozinha e encontra Penny de pé numa cadeira, toda coberta de farinha, mexendo nos potes e nas
panelas, com o cabelo respingado de massa de panqueca. A cozinha está a maior zona. Os outros
também chegam e os três homens ficam ali, na porta da cozinha, só olhando.
— Não fiquem irritados — diz ela, olhando por cima do ombro. — Eu prometo que depois
limpo tudo.
Os homens se entreolham e Philip, abrindo um sorriso pela primeira vez em várias semanas,
diz: — Quem está irritado? Não estamos irritados. A gente só está com fome. Quando é que o café
vai ficar pronto?
Com o passar dos dias, eles tomam algumas precauções. Decidem queimar lenha só à noite,
quando não dá para ver a fumaça da estrada. Philip e Nick montam uma cerca de arame estendido
entre pequenas estacas de madeira nos cantos da casa grande, colocando latas de alumínio em
pontos estratégicos para dar o alarme contra eventuais intrusos — sejam eles humanos ou
Mordedores. Eles até encontram uma velha espingarda de cano duplo, calibre .12, no sótão da casa.
A arma está coberta de poeira, tem querubins entalhados e parece que pode explodir na cara
deles se tentarem usá-la. Eles nem sequer têm munição para ela — parece o tipo de arma que
alguém penduraria no escritório, ao lado de velhas fotos de Ernest Hemingway —, mas Philip acha
que o fato de ela estar ali tem algum valor. Parece bastante ameaçadora, como um cavalo a todo
galope, como o pai costumava dizer.
— Nunca se sabe — declara Philip certa noite, encostando a arma na lareira e tratando de
entorpecer a mente com um pouco mais de licor.
Os dias continuam passando com uma regularidade disforme. Eles aproveitam para pôr o
sono em dia, exploram o pomar e colhem frutas. Preparam armadilhas para criaturas perdidas e
chegam até mesmo a pegar uma lebre raquítica. Nick se candidata a limpar o animal e acaba
fazendo um assado muito bom no fogão a lenha.
Nesse período, eles têm apenas poucos confrontos com os Mordedores. Um dia, Nick está
em cima de uma árvore, tentando pegar umas ameixas cobertas de neve, quando vê um morto-vivo
com macacão de fazendeiro nas sombras de um arvoredo perto dali. Ele calmamente desce da
árvore e se aproxima do troço com o tridente, espetando a parte detrás da cabeça do monstro como
quem estoura um balão. Outra vez, Philip está puxando gasolina de um trator quando percebe um
cadáver todo ferrado numa vala ali ao lado. As pernas estão esmagadas e retorcidas e parece que a
coisa que foi uma mulher precisou se arrastar por quilômetros para chegar até ali. Philip corta a
cabeça dela com a foice e queima o resto com um pouco de gasolina e uma faísca do isqueiro.
Maior moleza.
E esse tempo todo, parece que a casa os adota da mesma maneira como eles a adotaram.
Com todos os lençóis retirados de cima dos móveis, é um lugar que quase podem chamar de lar.
Agora, cada um tem seu quarto. E embora eles continuem sendo atormentados por pesadelos, não
tem nada que os acalme mais do que chegar à velha e elegante cozinha com o sol de novembro
entrando pelas janelas francesas e sentir o cheiro de um bule de café que ferveu a noite inteira.
Aliás, se não fosse pela frequente sensação de estarem sendo observados, as coisas seriam
quase perfeitas.
Para Brian, a sensação ficou mais forte a partir da segunda noite que passaram no local. Ele
tinha acabado de se mudar para o próprio quarto no segundo andar — um austero quarto de costura,
com uma pequena e singular cama de quatro colunas e um guarda-roupa do século XVIII —,
quando acordou de súbito no meio da noite.
Estava sonhando que era um náufrago, perdido num bote num mar de sangue, quando viu
um flash de luz. No sonho, achou que podia ser um farol numa costa distante, chamando-o,
resgatando-o da praga de sangue sem fim, mas, quando acordou, percebeu que tinha visto uma luz
de verdade, no mundo dos acordados, só por um segundo: um facho de luz retangular, deslizando
pelo teto.
Em um piscar de olhos, havia sumido.
Ele não tinha sequer certeza de ter visto a luz, mas todos os músculos do corpo o mandaram
se levantar e ir até a janela. Ele foi e, olhando pela vazia escuridão da noite, podia jurar que viu um
carro de relance, a uns 500 metros de distância, fazendo a curva no lugar onde a estrada da fazenda
se juntava à rodovia. Então o objeto sumiu, desaparecendo no vazio.
Brian sentiu cada vez mais dificuldade de continuar dormindo aquela noite.
Quando contou o ocorrido a Philip e Nick no dia seguinte, eles disseram que tudo não
passara de um sonho. Quem sairia da estrada e depois daria meia-volta e iria embora?
Mas a suspeita aumentou dentro de Brian durante a semana e meia seguinte. De noite, ele
continuava a ver feixes de luzes se movimentando lentamente na estrada, ou no final do pomar.
Algumas vezes, de madrugada, podia jurar que estava ouvindo o atrito dos pneus no cascalho. O
pior era exatamente a característica breve e furtiva dos sons. Dava a Brian a sensação de que, de
alguma maneira, a casa estava sendo cercada. Mas ficou tão cansado de ver as suspeitas serem
chamadas de paranoicas pelos outros que simplesmente parou de contar para eles. Talvez realmente
estivesse imaginando coisas.
Brian não tocou mais no assunto até eles completarem duas semanas de permanência na
casa, quando, em algum momento logo antes de o sol nascer, o clamor das latas de alumínio
batendo o fez acordar de um sono profundo.