Capitulo 19 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


No dia seguinte, Philip passa uma hora no galpão de ferramentas atrás da casa, verificando a
coleção de armas que tirou dos invasores, assim como as facas e os instrumentos da fazenda
deixados pelos antigos proprietários. Ele sabe o que tem que fazer, mas escolher o modo de
execução é uma agonia para ele. A princípio, opta pela semiautomática .9 mm. É a maneira mais
rápida e mais limpa. Mas aí ele pensa duas vezes antes de usar uma arma. De certo modo, parece
uma injustiça. Muito frio e impessoal. Porém também não consegue juntar coragem para usar uma
picareta ou machadinha. É muito incerto e faz muita sujeira. E se ele errar por um centímetro e fizer
tudo errado?
No fim das contas, Philip se decide pela Glock .9 mm, colocando um pente novinho de balas
na agulha e armando o ferrolho.
Ele respira fundo e vai até a porta do galpão. Faz uma pausa e toma coragem. Sons de
arranhões surgem esporadicamente do lado de fora do galpão. O terreno da casa está infestado de
Mordedores. Toda uma multidão foi atraída pelo tiroteio do dia anterior. Philip abre a porta com o
pé.
A porta bate direto numa zumbi de meia-idade vestindo uma jardineira manchada e que
estava farejando do lado de fora da oficina. A força do impacto faz o corpo raquítico da zumbi
cambalear para trás, os braços girando e um grito horrível saindo do rosto deformado. Philip passa
por ela, erguendo a Glock casualmente, sem sequer diminuir o passo enquanto mete uma única bala
na lateral do crânio da morta-viva.
O barulho da Glock ecoa conforme o cadáver feminino cambaleia para o lado, em meio a
uma nuvem escarlate, e esmorece no chão.
Philip marcha pelos fundos da casa, erguendo a Glock e dando cabo de mais dois
Mordedores perdidos. Um deles é um velho vestido apenas com uma cueca amarelada — talvez
tenha fugido de um asilo. O outro era, muito provavelmente, um agricultor de frutas, cujo corpo
inchado e enegrecido continua vestindo o macacão largo. Philip se livra deles com o mínimo de
transtorno — um tiro em cada um — e faz uma nota mental para limpar aqueles dejetos mais tarde
com a pá de neve presa à ceifadeira.
Já se passaram quase 24 horas desde que Penny morreu nos braços dele e o novo dia está
nascendo azul e límpido, o céu rascante de outono se erguendo de novo sobre vários hectares de
pessegueiros. Philip precisou de praticamente um dia inteiro para tomar coragem e fazer o que tem
que ser feito. Agora ele pega o revólver na mão suada e entra no pomar.
Ainda tem cinco balas no pente.
Na sombra da floresta, um vulto se remexe e geme encostado no tronco de uma velha
árvore. Amarrado com corda e fita isolante, o prisioneiro faz força para fugir, um ato fútil de
desespero. Philip se aproxima e levanta a arma. Aponta o cano para o meio dos olhos dela e, por um
segundo, diz a si mesmo para acabar logo com aquilo: Abre a ferida, arranca o tumor e está feito.
O cano treme e o dedo de Philip congela no gatilho. Ele solta um suspiro atormentado.
— Não consigo — fala baixinho.
Ele abaixa a arma e fica olhando para a filha. A 2 metros dele, amarrada ao tronco da árvore,
Penny rosna com a fome feroz de um cão raivoso. Seu rostinho de porcelana se encolheu e afundou
e virou uma abóbora branca apodrecida. Os olhos suaves ficaram duros como duas moedas de prata.
Os lábios de tulipa, outrora inocentes, agora estão negros e retraídos, exibindo dentes apodrecidos.
E ela não consegue reconhecer o pai.
Isso é o que mais maltrata a alma de Philip. Ele não consegue deixar de se lembrar do olhar
de Penny sempre que ia pegá-la na creche ou na casa da tia Nina, ao fim de um longo e pesado dia
de trabalho. A chama do reconhecimento e da emoção — e sim, senhor, do amor incondicional —
naqueles olhos grandes e castanhos cada vez que Philip voltava, era o suficiente para fazê-lo tocar a
vida, acontecesse o que acontecesse. Agora essa chama se perdeu para sempre — coberta pela tez
cinzenta dos mortos-vivos.
Philip sabe o que tem que fazer.
Penny rosna para ele.
Os olhos de Philip queimam de tanta agonia.
— Não consigo — murmura outra vez, baixando a cabeça, sem se dirigir a Penny ou a si
mesmo. Vê-la daquele jeito manda um jato de fúria por todo o sistema de Philip, como a chama de
um maçarico, acendendo um fogo secreto dentro dele. Ele volta a ouvir a voz: Vai lá, quebra tudo,
manda ver agora, arranca o coração dessa merda... Agora!
Ele recua do horror no pomar, com o cérebro girando de tanta raiva.
O terreno da casa — que agora reluz na simpática manhã de outono — tem a forma de uma
meia-lua, com a casa grande ao centro. Vários anexos se erguem ao longo da curva suave atrás da
casa: a cocheira, o pequeno galpão para o trator e a ceifadeira, um segundo galpão para as
ferramentas, uma casa de hóspedes sobre pilares mais elevados, um grande celeiro de madeira com
um imenso cata-vento e uma abóbada em cima. É para essa última construção, com a madeira
carcomida e a pintura manchada de rosa pelo sol, que Philip se dirige.
Ele tem que dar vazão à corrente de veneno que corre pelo corpo. Precisa descarregar.
A entrada principal do celeiro é uma porta dupla, trancada com uma imensa tábua de
madeira no meio. Philip vai até lá, solta a tábua, e as portas logo se abrem com um rangido,
mostrando a poeira que flutua nas sombras de dentro. Philip entra e fecha a porta atrás de si. O ar
tem cheiro de cocô de cavalo e feno mofado.
Dois outros indivíduos gemem e se remexem num canto, vivendo o próprio tormento dos
infernos, amarrados e amordaçados com fita adesiva: Sonny e Cher.
A dupla treme, um encostado no outro no chão, as bocas amordaçadas, as costas apertadas
contra a porta de um estábulo vazio, os corpos fazendo algum tipo de viagem. Ou de heroína, ou de
crack, ou de alguma outra coisa. Para Philip, isso não importa. A única coisa que interessa é que os
dois não têm a menor ideia do quanto a vida vai piorar para o lado deles.
Philip caminha até a dupla dinâmica. A garota esquelética treme em espasmos, os olhos
pintados cobertos de lágrimas ressecadas. O homem respira com dificuldade pelas narinas.
Postando-se numa fresta estreita por onde entra a luz do sol, cheia de poeira, Philip olha para
os dois como se fosse um Deus furioso.
— Você aí — diz para Sonny. — Vou perguntar uma coisa... e sei que é difícil assentir com a
cabeça amordaçada desse jeito, por isso basta piscar uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer
não.
O homem olha com os olhos fundos, úmidos e crus. Pisca uma vez.
Philip o encara.
— Você gosta de assistir?
Duas piscadas.
Philip leva a mão ao cinto e começa a tirá-lo.
— É uma pena, porque eu vou dar um espetáculo e tanto.
Duas piscadas.
E de novo... duas piscadas.
Duas piscadas. Duas piscadas. Duas piscadas.
— Calma, Brian. Mais devagar — fala Nick para o amigo na noite seguinte, no quarto de
costura do segundo andar. À luz das lâmpadas de querosene, Nick ajuda Brian a beber água por um
canudo. A boca de Brian ainda está inchada e ele engole com dificuldade, babando sobre si mesmo.
Nick tem feito tudo o que pode para ajudar Brian a se recuperar, e mantê-lo alimentado é
fundamental.
— Tente comer um pouco mais dessa sopa de verdura.
Brian come umas colheradas.
— Obrigado, Nick. — A voz dele é abafada e cheia de dor. — Obrigado por tudo.
As palavras são ligeiramente arrastadas, o céu da boca ainda está inflamado. Ele fala com
dificuldade, sofregamente. Deitado na cama, vários trapos amarrados em volta de suas costelas
quebradas e Band-Aids foram colocados no rosto e no pescoço, e o olho esquerdo está roxo e
inchado. Ainda pode ter acontecido alguma coisa com o quadril, não dá para saber direito.
— Você vai ficar bom — afirma Nick. — Quanto ao seu irmão, já é outra história.
— O que quer dizer com isso?
— Ele pirou, cara.
— Ele passou por muita coisa, Nick.
— Como é que você pode dizer isso? — Nick se recosta e solta um suspiro sofrido. — Olha
o que ele fez contigo. E não vem dizer que foi por causa da morte de Penny. Todo mundo aqui
perdeu alguém que amava. Ele chegou muito perto de matar você.
Brian olha para os pés estilhaçados saindo por baixo das cobertas. Com grande esforço, ele
diz: — Eu mereço tudo o que recebi.
— Não diga uma coisa dessas! O que aconteceu não foi culpa sua. Seu irmão passou dos
limites com isso. E eu estou realmente preocupado com ele.
— Ele vai ficar bem. — Brian olha para Nick. — O que aconteceu? Tem mais alguma coisa
que está incomodando você.
Nick respira fundo e se pergunta se pode confiar em Brian. Os irmãos Blake sempre tiveram
um relacionamento complexo e muitas vezes Nick sentiu como se ele fosse mais irmão de Philip
que o irmão biológico. Mas sempre houve um fator X entre os dois Blake, um laço de sangue mais
profundo entre eles.
Finalmente, Nick diz: — Eu sei que você não faz exatamente o estilo religioso. Sei que você
pensa que eu sou um Crente Piegas.
— Isso não é verdade, Nick.
Nick faz um gesto com a mão.
— Não tem problema. A minha fé é forte e eu não julgo uma pessoa pela religião.
— Onde você quer chegar com isso?
Nick olha firme para Brian.
— Ele está mantendo ela viva, Brian... Ou, talvez, viva não seja a palavra mais adequada.
— Penny?
— Está lá fora com ela, agora.
— Onde?
Nick explica o que aconteceu nos últimos dois dias, desde o tiroteio. Enquanto Brian se
recuperava da surra, Philip andou ocupado. Ele tem mantido dois intrusos — os únicos que
sobreviveram ao tiroteio — trancados no celeiro. Philip diz que os vem interrogando sobre
possíveis acampamentos humanos, mas Nick teme que ele os esteja torturando. Mas essa é a menor
das preocupações. O que está corroendo Nick por dentro é o destino de Penny.
— Ele a amarrou a uma árvore, como se fosse um cachorrinho de estimação.
Brian franze a testa.
— Onde?
— No pomar. Ele sai à noite e passa horas com ela.
— Ai, meu Deus.
— Escuta. Eu sei que você acha que isso é besteira, mas, do jeito que eu fui ensinado, existe
uma força no universo chamada Deus e uma força chamada Mal.
— Nick, eu não acho que esse seja o...
— Só um instante, deixa eu terminar. Eu acredito que tudo isso... essa praga, ou seja lá como
você queira chamar... é obra daquilo que você chamaria de Demônio ou de Satã.
— Nick...
— Deixa só eu terminar. Eu andei pensando muito sobre isso tudo.
— Muito bem. Estou escutando.
— O que é que Satã mais odeia? O poder do amor? Talvez. O fato de alguém renascer?
Provavelmente. Mas eu acho que é quando uma pessoa morre e o espírito dela vai para o Paraíso.
— Eu não sei se estou entendendo.
Nick encara os olhos vazios de Brian.
— E é isso o que está acontecendo aqui, Brian. O Demônio arranjou um jeito de deixar a
alma das pessoas presa aqui na terra.
Passam-se alguns segundos até que Brian absorve tudo isso. Nick não espera que Brian
acredite, mas talvez, só talvez, ele possa fazê-lo entender.
Nesse curto período de silêncio, o vento norte assobia nas persianas. O tempo está mudando.
A casa solta estalos e gemidos. Nick levanta a gola do suéter que cheira a naftalina — há alguns
dias, eles encontraram roupas quentes no sótão da casa — e agora ele treme no ar gelado do
segundo andar.
— O que o seu irmão está fazendo é errado. Vai contra o desejo de Deus — declara Nick, e a
afirmação fica pairando na penumbra.
Naquele instante, na escuridão do pomar, uma pequena fogueira estala e crepita no chão.
Philip está sentado na terra fria em frente ao fogo, com a espingarda ao lado e um livrinho mofado
que encontrou no berçário da casa aberto no colo.
— “Porquinho, deixe-me entrar, deixe-me entrar” — lê em voz alta, em tom melodioso e
elaborado —, “ou eu vou bufar, soprar e derrubar sua casa!”
A 1 metro dali, amarrada ao tronco da árvore, Penny Blake rosna e grunhe a cada palavra,
suas pequenas mandíbulas tentando morder sem sucesso.
— “De jeito nenhum” — recita Philip, virando uma página delicada de papel. Faz uma
pausa e olha para a coisa que um dia foi sua filha.
À luz das labaredas, o rostinho de Penny se contorce com uma fome inesgotável, inchada e
enrugada como uma abóbora que imita um rosto humano. Sua barriga, presa com um arame, faz
força tentando se soltar da árvore. Ela estica os dedos curvados como garras, querendo se soltar e
jantar o seu pai, mas só consegue acertar o ar.
— “Mas é claro” — continua Philip, com a voz falhando — “que o lobo soprou a casa
abaixo.” — Ele faz uma pausa angustiante antes de falar com a voz embargada, parte melancólica e
parte louca. — “E comeu o porquinho.”
Pelo resto da semana, o sono não vem fácil para Philip Blake. Ele tenta dormir algumas
horas por noite, mas a energia nervosa o faz se virar de um lado para o outro, até que acaba se
levantando para fazer alguma coisa. Na maioria das noites, vai até o celeiro e descarrega parte da
raiva em Sonny e Cher. Eles são as razões mais visíveis para Penny ter virado zumbi e Philip está
decidido a fazer com que eles sofram mais do que qualquer outro ser humano jamais sofreu. O
delicado processo de mantê-los a um fio da morte não é fácil. De vez em quando, Philip tem que dar
água a eles, para evitar que morram e o deixem na mão. Ele também tem que tomar cuidado para
que não se matem tentando fugir dos tormentos. Como um bom carcereiro, Philip mantém a rédea
curta e todos os objetos cortantes ou pontiagudos fora de alcance.
Naquela noite — Philip acha que é sexta —, ele espera até Nick e Brian adormecerem antes
de cair fora do quarto, calçar as botas, vestir a jaqueta de brim e sair pela porta dos fundos, cortando
o pátio iluminado pelo luar até o velho celeiro, no extremo nordeste da propriedade. Philip gosta de
anunciar a chegada.
— O papai chegou — sussurra num tom animado, com o vapor da respiração aparecendo,
enquanto tira a tranca e abre a porta dupla.
Ele liga uma lanterna a pilha.
Sonny e Cher estão caídos nas sombras onde Philip os deixou, duas criaturas estraçalhadas,
amarradas como porcos, lado a lado, sentadas numa poça cada vez maior formada pelo próprio
sangue, xixi e cocô. Sonny mal consegue se manter acordado, com a cabeça inclinada para um lado
e os olhos fortes, de viciado, com rodelas vermelhas em volta. Cher está inconsciente. Está deitada
ao lado dele, com as calças de couro ainda abaixadas até os tornozelos.
Cada um traz as marcas inclementes dos instrumentos de punição adotados por Philip:
alicates pontudos, arame farpado, tábuas de madeira com pregos enferrujados despontando e vários
objetos contundentes que Philip pensa em utilizar no calor do momento.
— Acorda, irmãzinha! — Philip estica a mão e faz a mulher se sentar, as tiras que a amarram
cortam seus pulsos e a corda que ela tem em volta do pescoço a impede de gemer muito. Ele dá um
tapa na cara dela que faz os olhos da mulher tremerem. Philip volta a bater nela, que agora acorda,
com o choro abafado pela fita adesiva que traz na boca.
Em algum momento da noite, a mulher conseguiu levantar as calcinhas ensanguentadas para
tapar as partes íntimas.
— Deixa eu lembrar mais uma vez — diz Philip, puxando as calcinhas dela com força até a
altura do joelho. Ele se põe sobre ela, abrindo as pernas da mulher com as botas como se estivesse
criando um espaço para si mesmo. Ela se contorce e geme embaixo dele, como se isso pudesse
fazê-la sair da própria pele. — Vocês são as pessoas que levaram embora a minha filha. Portanto,
todos nós vamos juntos para o inferno.
Philip desafivela o cinto e abaixa as calças, e não é preciso muita imaginação para ele ter
uma ereção imediata — o ódio e a raiva incendeiam tanto o seu plexo solar que ele se sente como
um aríete. Philip ajoelha entre as pernas trêmulas da mulher.
A primeira penetração é sempre o gatilho; a voz no cérebro dele abruptamente o chama,
provocando-o, incitando-o com fragmentos de antigas frases bíblicas sem sentido, que o pai dele
costumava resmungar, quando bêbado: A vingança é minha, a vingança é minha, diz o Senhor!
Mas essa noite, depois da terceira ou quarta enfiada na mulher inerte, Philip para.
Um conjunto de coisas tira a concentração dele, desviando a atenção. Ele ouve passos do
lado de fora, caminhando pelos fundos da propriedade, e até vê, por entre as tábuas, um vulto
passando rápido pelo celeiro. Mas o que faz Philip parar, se levantar, e rapidamente erguer as
calças, é o fato de que o vulto está indo na direção do pomar.
O lugar onde Penny mora.
Philip sai do celeiro e imediatamente vê um vulto mergulhando nas sombras do pomar. O
vulto é compacto, um homem magro de 30 anos, calças jeans e suéter, carregando uma enorme pá
enferrujada no ombro.
— Nick!
O grito de aviso não é ouvido. Ele já sumiu entre as árvores.
Sacando a espingarda .9 mm do cinto, Philip parte para o pomar. Ele põe um pente na
metralhadora quando se mete entre as árvores. A escuridão dá lugar ao facho de uma lanterna.
A 15 metros de distância, Nick aponta a lanterna para o rosto lívido daquela coisa que um
dia foi Penny.
— NICK!
Nick se vira de repente com a pá levantada e deixa a lanterna cair.
— Já passou dos limites, Philly. Passou dos limites.
— Abaixe essa pá — diz Philip, enquanto se aproxima com a arma levantada.
A lanterna passa a apontar para as folhas, projetando uma luz sinistra sobre todo o ambiente,
como um filme preto e branco bem granulado.
— Você não pode fazer isso com a sua filha. Será que não percebe o que está fazendo?
— Abaixe isso.
— Você está impedindo que a alma dela suba ao paraíso.
— Cale a boca!
No escuro, a 6 metros deles, a coisa que foi Penny força as amarras. O facho indireto da
lanterna ressalta, de baixo para cima, as feições monstruosas. Os olhos refletem a luz seca e
prateada.
— Philly, escute. — Nick abaixa a pá, a voz trêmula de emoção. — Você tem que deixá-la
morrer... Ela é uma filha de Deus. Por favor... estou pedindo, como cristão... deixe ela ir.
Philip aponta a Glock direto para a testa de Nick.
— Se ela morrer, você vai logo depois.
Por um instante, Nick fica de queixo caído, totalmente derrotado.
Então, ele larga a pá, deixa a cabeça pender e volta para a casa.
Durante todo o tempo, a coisa que foi Penny manteve os olhos de tubarão no homem que um
dia ela chamou de pai.
Brian continua a se recuperar. Seis dias depois da surra, já tem força suficiente para se
levantar da cama e mancar pela casa. O quadril dá uma pontada de dor a cada passo e a tontura vem
em onda, sempre que sobe ou desce as escadas, mas, no geral, está se saindo muito bem. As lesões
desapareceram, o inchaço diminuiu e Brian sente o apetite voltar. E ele também tem uma conversa
séria com Philip.
— Eu sinto muita falta dela — comenta Brian com o irmão, tarde da noite na cozinha, os
dois acometidos por uma forte crise de insônia. — Eu trocaria de lugar com ela na mesma hora, se
isso pudesse trazê-la de volta.
Philip abaixa a cabeça. Ele desenvolveu uma série de tiques sutis, que aparecem quando está
sob pressão: fungar, morder o lábio, pigarrear.
— Eu sei, meu caro. Não foi culpa sua... o que aconteceu lá fora. Eu nunca devia ter feito
aquilo com você.
Os olhos de Brian ficam marejados.
— Eu provavelmente teria feito a mesma coisa.
— Vamos passar uma borracha nisso tudo.
— Claro. — Brian enxuga os olhos. Olha para Philip. — E qual é a história daqueles dois lá
no celeiro?
Philip volta a erguer os olhos.
— O que tem eles?
— Tudo isso está deixando Nick muito nervoso. Dá para ouvir o que se passa lá dentro... à
noite, eu quero dizer. Nick acha que você está meio que... arrancando as unhas deles.
Um sorriso frio torce o canto da boca de Philip.
— Isso é doentio.
Brian não sorri.
— Philip, o que quer que você esteja fazendo com eles... não vai trazer Penny de volta.
Philip volta a abaixar a cabeça.
— Eu sei. Você acha que eu não sei?
— Então, eu imploro que você pare. O que quer que esteja fazendo... pare. — Brian olha
para o irmão. — Não adianta nada.
Philip volta a olhar para cima, os olhos dominados por emoção.
— Aquele lixo que está lá no celeiro tirou de mim tudo o que era mais importante na minha
vida... aquele filho da puta careca e a turma dele... os dois viciados... eles destruíram a vida de uma
linda menina inocente e fizeram isso por pura maldade e por ganância. Nada que eu fizer a eles vai
bastar.
Brian suspira. Qualquer outra observação vai parecer uma futilidade, por isso ele fica
simplesmente olhando para o café.
— E você está errado quando diz que isso não adianta nada — conclui Philip, depois de
pensar um pouco. — Faz com que eu me sinta melhor.
Na noite seguinte, depois de as lanternas se apagarem e de o fogo de três lareiras diferentes
virarem carvão e de o vento nordeste começar a brincar com as águas-furtadas e as telhas soltas,
Brian está deitado na cama do quarto de costura, tentando cair num sono problemático, quando
ouve o trinco da porta girar e vê a silhueta de Nick entrar. Brian se senta.
— O que houve?
— Sssshhh — sussurra Nick, caminhando pelo quarto e se ajoelhando ao lado da cama. Ele
está de casaco, luvas e um volume no quadril que parece uma arma. — Quieto.
— O que houve?
— O seu irmão dormiu... finalmente.
— E daí?
— E daí que nós vamos fazer uma... como é que se diz? Intervenção.
— Do que você está falando? Penny? Você vai tentar matar Penny de novo?
— Não! O celeiro, cara! O celeiro!
Brian fica na ponta da cama e esfrega os olhos. Ele estica os braços e as pernas e tira a
poeira do corpo.
— Eu não sei se estou preparado para isso.
Eles saem pela porta dos fundos, cada um armado com uma pistola. Nick leva o revólver de
aço .357 do careca e Brian carrega o revólver de cano curto que pertencia a um dos atiradores. Eles
se esgueiram até o celeiro e Brian joga a luz da lanterna sobre a tranca. Encontram um pedaço de
lenha numa pilha ali ao lado e o utilizam para abrir as portas apodrecidas, fazendo o mínimo de
barulho possível.
O coração de Brian bate forte no peito conforme eles entram no celeiro escuro.
O cheiro de mofo e urina toma conta das narinas deles conforme seguem até os fundos por
entre as sombras fétidas do celeiro, onde dois trambolhos escuros estão estirados no chão, em duas
postas de sangue negro como petróleo. No início, as formas nem parecem humanas, mas quando a
luz da lanterna de Brian recai sobre um rosto pálido, ele engasga.
— Puta que o pariu.
O homem e a mulher ainda estão vivos, mas por muito pouco, os rostos inchados e
desfigurados e os abdomes em carne viva. Uma fumacinha sai das feridas infeccionadas que os
estão corroendo. Os dois reféns estão semiconscientes, os olhos vermelhos fixos nos caibros do
telhado. A mulher foi totalmente violentada, como uma boneca quebrada com as pernas abertas e
manchas de sangue cobrindo a carne tatuada e pastosa.
Brian começa a tremer.
— Puta merda... O que foi que nós...? Puta que o pariu...
Nick se ajoelha ao lado da mulher.
— Brian, arranja um pouco d’água.
— E o...?
— Traz lá do poço! Rápido!
Brian passa a lanterna para ele, faz meia-volta e sai pelo mesmo caminho por onde entrou.
Nick joga a lanterna em cima da constelação de feridas e lesões — algumas velhas e
infeccionadas, outras mais novas — espalhadas por todas as partes dos corpos contorcidos. O peito
do homem levanta e abaixa rápida e convulsivamente, a respiração muito superficial. A mulher luta
para fixar o olhar reumático em Nick. Está piscando muito.
Os lábios dela se mexem por baixo da fita isolante. Nick começa a retirar cuidadosamente a
mordaça da boca da mulher.
— P-po... f-avvooo... aaa... — Ela está tentando suplicar alguma coisa que Nick não
consegue entender.
— Está tudo bem, nós vamos tirar vocês daqui. Vai dar tudo certo.
— Aaaa..
— Água? — Nick tenta levantar as calças dela. — Tenta respirar. Tenta...
— Aaaaac...
— Hein? Não consigo...
A mulher tenta engolir em seco e volta a repetir.
— Aaac-caba c-com a ge-nte, poor f-avoor...
Nick olha fixo para ela. O estômago dele fica gelado. Sente alguma coisa mole apalpando o
quadril e, ao olhar para lá, vê que a mão cheia de escaras da mulher está tentando pegar o revólver
pendurado no cinto dele. Nick não sente mais vontade alguma de lutar. O coração afunda até o chão.
Ele tira o .357 do cinto, se levanta e olha por um bom tempo para as duas aberrações ali no
chão do celeiro.
Faz uma oração: o salmo nº 23.
Brian está voltando para o celeiro com um balde de plástico com água do poço quando ouve
os dois estampidos abafados que vêm de dentro do celeiro. Como fogos de artifício espocando
dentro de latas de alumínio, os estampidos são curtos e secos. O som faz Brian estacar no meio do
caminho, derramando a água pela borda do balde. Ele prende a respiração, assustado.
Então vê, pelo rabo do olho, um fio de luz acendendo numa das janelas do segundo andar da
casa: o quarto de Philip. Uma lanterna lá em cima passa pelas janelas e desaparece. Segue-se uma
série de passos abafados descendo as escadas e cruzando a casa, rápidos e decididos, e isso faz
Brian voltar a entrar em ação.
Ele larga o balde e corre pelo terreno da propriedade até o celeiro. Passa pela porta, entrando
na escuridão. Depois, corre pelas sombras, na direção do facho de luz prateado que vem dos fundos.
Ele vê Nick de pé sobre os reféns.
Um fio de fumaça sobe do cano do .357 na mão direita de Nick, que agora está junto ao
corpo, enquanto ele olha para os dois mortos.
Brian se junta a Nick e começa a falar quando de repente olha para baixo e vê os dois
ferimentos nas cabeças: brotos de gosma surgem contra a porta do estábulo, brilhando à luz da
lanterna.
O homem e a mulher estão mortos, cada um deitado de bruços em cima dos fluidos
ressecados, os rostos em paz, liberados das contorções e da desgraça. Mais uma vez, Brian tenta
falar alguma coisa.
Mas não consegue dizer nada.
*
No momento seguinte, na escuridão do celeiro, as portas duplas se abrem e Philip entra de
supetão. Com os punhos cerrados ao lado do corpo e o rosto numa máscara de raiva, os olhos
brilhando em completa loucura, ele marcha na direção da luz. A cara é de quem vai devorar alguém.
Philip traz um revólver de um lado do cinto e a machadinha batendo na cintura.
Ele chega à metade do celeiro antes de diminuir o ritmo.
Nick saiu de perto dos corpos e está delimitando seu território, encarando Philip conforme
ele se aproxima. Brian dá um passo atrás, com um tsunami de vergonha passando por ele. A
sensação é de ter a alma partida ao meio. Ele olha para o chão à medida que o irmão se aproxima
lentamente agora, com cautela, olhando nervoso dos corpos para Nick e então para Brian e depois
de volta para os corpos.
Por muito tempo, ninguém tem nada a dizer. Philip continua encarando Brian, que tenta
esconder a vergonha paralisante que sente tomar conta de si, mas quanto mais tenta esconder, mais
ela o puxa para baixo.
Se Brian tivesse coragem, enfiaria o cano do revólver na boca e acabaria imediatamente com
o próprio sofrimento. De uma forma esquisita, ele se sente responsável por isso — por tudo isso —,
mas é covarde demais para se suicidar como um homem.
Tudo o que consegue é ficar ali parado e desviar o olhar, com uma vergonha abjeta e
humilhante.
E, como numa reação em cadeia invisível, aquele quadro patético e asqueroso de corpos
dilacerados — combinado com o silêncio sem fim do irmão e do amigo — começa a pesar sobre
Philip.
Ele luta para conter as lágrimas que se acumulam nos olhos e tenta conter o queixo trêmulo,
numa mistura de desafio e ódio de si mesmo. Ele abre a boca como se tivesse algo importante a
dizer e precisa fazer um esforço descomunal para falar, mas finalmente consegue soltar um sussurro
abafado: — Que seja.
Nick olha mortificado para ele, sem conseguir acreditar.
— “Que seja”?
Philip se vira e vai embora, sacando a Glock do cinto enquanto sai. Ele destrava a arma e dá
um tiro na parede do celeiro — BUUUUMMMMMM! —, a arma recua nas mãos dele, o estampido
alto faz Brian saltar. BUUUUUMMMM! Mais um flash espoca na escuridão, arrancando um
pedaço da porta. BUUUUUMMMM! O terceiro tiro acerta o telhado e os destroços chovem no
chão.
Raivoso, Philip abre a porta com um chute e sai do celeiro batendo o pé.
O silêncio que fica para trás parece ecoar por alguns instantes com imagens da ira de Philip.
O tempo todo, Brian não desgrudou os olhos do chão, e permanece com a cabeça pendendo
desolada e olhando para o feno mofado. Nick dá uma última olhada nos corpos e então solta um
suspiro longo, doloroso e irregular. Ele olha para Brian e balança a cabeça.
— E aí está.
Mas alguma coisa por trás dessas palavras — o tom sutil de desamparo na voz Nick — diz
que as coisas mudaram para sempre naquela pequena e problemática família.