Capitulo 20 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador
— Que diabo ele está fazendo? — Nick está diante da janela frontal da casa, olhando para a
manhã de nuvens densas do lado de fora.
Do outro lado da propriedade, no caminho para a garagem, Philip leva Penny numa espécie
de coleira de cachorro adaptada, montada com peças avulsas que ele encontrou no galpão de
ferramentas — um cano longo de cobre com uma coleira de ferro na ponta. Ele a conduz até o Ford
S-10 estacionado na grama. A picape é um dos veículos que pertenciam à turma do careca e Philip
encheu a carroceria com gêneros enlatados, armas, mantimentos e roupas de cama.
Penny rosna e se sacode enquanto vai sendo levada, mordendo o ar e se agarrando ao cano
ligado ao pescoço. Na luz difusa e úmida, o rostinho morto parece mais uma máscara de Halloween,
esculpida em barro cinza.
— É o que estou tentando dizer — responde Brian, ao lado de Nick, olhando para a cena
bizarra que acontece no pátio. — Ele se levantou de manhã, convicto de que não pode mais ficar
aqui.
— E tem alguma razão para isso?
Brian dá de ombros.
— Eu não sei... Depois de tudo o que aconteceu... Acho que esse lugar é como veneno para
ele, cheio de fantasmas... Não sei.
Brian e Nick passaram a noite inteira acordados, bebendo café e discutindo a situação. Nick
ficou o tempo todo fazendo a conversa girar sobre o fato de achar que Philip enlouqueceu, que ele
sucumbiu ao estresse de perder Penny, além da pressão adicional de precisar protegê-los. Embora
Nick não tenha dito isso abertamente, ele fez uma alusão à possibilidade de o Demônio ter se
apoderado de Philip. Brian está exausto demais para discutir metafísica com Nick, mas não há como
negar o fato de as coisas terem ficado feias.
— Deixa ele ir — diz Nick finalmente, se afastando da janela.
Brian olha para ele.
— O que quer dizer? Que você vai ficar?
— Sim, vou ficar aqui e você deveria ficar também.
— Nick, se toca.
— Como é que a gente pode continuar seguindo ele... depois de toda a merda que fez...
depois de tudo o que aconteceu?
Brian enxuga a boca e pensa no assunto.
— Olha, eu vou repetir. O que ele fez com aquelas pessoas é... mais do que horrível. Ele
pirou. Eu mesmo não tenho certeza se vou ser capaz de olhar para ele da mesma maneira... mas
agora é uma questão de sobrevivência. A gente não pode se separar. A melhor chance que temos é
ficarmos juntos, aconteça o que acontecer.
Nick volta a olhar pela janela.
— Você realmente acha que a gente vai chegar até o Golfo do México? São uns 500
quilômetros e mais um pouco.
— A nossa melhor chance é ficarmos juntos.
Nick olha fixamente para Brian.
— Ele está levando a filha morta na porra de uma coleira. Quase espancou você até a morte.
Ele é uma bomba-relógio, Brian, e vai explodir na nossa cara.
— Essa bomba-relógio conseguiu trazer a gente inteiro de Waynesboro até aqui,
atravessando a Geórgia — responde Brian, com um jato de raiva queimando o estômago. — E daí
se ele é maluco, volúvel, está possuído por demônios, que seja o próprio príncipe das trevas... Ainda
é meu irmão e a nossa melhor chance de sobrevivência.
Nick olha para ele.
— É assim que você chama agora? Sobrevivência?
— Se você quiser ficar aqui, esteja à vontade.
— Obrigado. É exatamente o que eu vou fazer.
Nick se afasta, deixando Brian ir até a janela e olhar nervoso para o irmão.
Utilizando o cano de um radiador para sucção, eles juntam todo o combustível que há na
casa — dos tratores, dos veículos e até mesmo das Harleys — no tanque do Ford S-10. Somando
tudo, enchem até a borda os 64 litros do tanque e ainda sobra um pouco. Philip arranja um lugar
para Penny no compartimento de carga, na traseira, formando um semicírculo com as caixas de
suprimentos e esticando os lençóis no assoalho. Ele a acorrenta a um gancho em formato de U, que
é para que não faça nenhuma besteira e caia do carro.
Nick acompanha tudo isso da janela do segundo andar, andando de um lado para o outro
como um animal enjaulado. Ele começa a cair na real. Vai ficar totalmente sozinho na casa enorme,
com o vento batendo. Vai passar as noites sozinho. Vai passar o inverno inteiro sozinho. Vai ouvir os
ventos do norte batendo nas janelas e os gemidos distantes dos Mordedores rondando o pomar...
tudo isso sozinho. Vai acordar sozinho e comer sozinho, vai ter que arranjar comida sozinho, sonhar
com dias melhores sozinho e pedir a Deus que o liberte... tudo sozinho. Vendo Philip e Brian
terminarem os últimos preparativos para a viagem, uma pontada de arrependimento aperta a barriga
de Nick — uma espécie de remorso. Ele vai até o armário do quarto.
Só precisa de alguns segundos para enfiar os objetos essenciais na mochila.
Sai correndo do quarto e desce as escadas, dois degraus de cada vez.
Brian acabou de se acomodar no banco do passageiro e Philip está engrenando a primeira
marcha, começando a sair da casa, quando o som da porta da frente se abrindo de chofre chega a
seus ouvidos.
Brian olha para trás e vê Nick com a mochila nas costas, correndo pelo pátio da frente e
acenando para eles esperarem.
É difícil de acreditar que Philip não tenha checado o capô da picape. Se tivesse tirado três
minutinhos para conferir se estava tudo bem, teria visto a mangueira furada. Mas Philip Blake não
anda muito bem ultimamente. Sua mente é como um rádio de ondas curtas, ligado em diversas
estações.
Mas independentemente do corte ter sido feito de propósito pelos invasores depois do
tiroteio (para evitar que alguém fugisse), ou por algum estilhaço que tenha entrado pela grade da
frente da picape, ou se o defeito não passou de uma simples coincidência, a picape começa a soltar
fumaça e a enguiçar menos de 8 quilômetros depois de eles terem saído da villa.
Num ponto a cerca de 80 quilômetros a sudoeste de Atlanta, num lugar que a maioria das
pessoas chamaria de Meio do Nada, a picape deixa a estrada e sobe no acostamento de cascalho,
onde para com todas as luzes de aviso piscando no painel. Uma fumaça branca sai de baixo do capô
e a chave não consegue dar a partida. Philip solta uma saraivada de palavrões, quase fazendo a bota
atravessar o assoalho do carro. Os outros dois olham para baixo, esperando em silêncio o acesso de
fúria passar. Brian se pergunta se é assim que se sente a mulher de um marido violento: com medo
demais para fugir e medo demais para ficar.
Depois de algum tempo, o acesso de Philip passa. Ele sai do carro e abre o capô.
Brian vai se juntar a ele.
— Qual é o veredito?
— Completamente fodido.
— Sem chance de conserto?
— Por acaso, você tem uma mangueira de radiador aí com você?
Brian olha para trás. A lateral da estrada desce numa ribanceira cheia de pneus velhos, mato
e escombros. Um movimento leva os olhos dele para a parte mais distante da ladeira — a uns 400
metros de distância —, onde um bando de Mordedores perambula pelo lixo. Eles tropeçam e
procuram carne entre as pedras, como porcos chafurdando. Ainda não perceberam o veículo
enguiçado, soltando fumaça no acostamento da estrada, a 300 metros de onde estão.
Na carroceria da picape, Penny puxa a corrente, que está em seu pescoço e presa no deque
ondulado. A proximidade de outros cadáveres parece estar lhe atiçando, excitando, perturbando.
— O que você acha? — pergunta Brian finalmente ao irmão, que baixou o capô com
cuidado e o fechou fazendo o mínimo de barulho.
Nick está saindo da cabine e vai se juntar a eles.
— Qual é o plano?
Brian olha para ele.
— O plano é o seguinte: estamos fodidos.
Nick rói uma unha, olhando para trás e vendo o amontoado de zumbis subindo a ribanceira,
se aproximando minuto a minuto.
— Philip, a gente não pode ficar aqui parado. Talvez dê para achar outro carro.
Philip solta um doloroso suspiro.
— Bem, vocês sabem o que têm que fazer. Peguem todas as coisas que eu vou pegar Penny.
Eles partem com Penny na coleira e as costas carregadas de suprimentos. Tomam o
acostamento, seguindo pela estrada. Brian vai mancando sem reclamar, apesar da dor lancinante no
quadril. Perto de Greenville, têm que desviar, por causa de um engavetamento inexplicável de
veículos, com o emaranhado de aço atravessando dos dois lados as pistas e a área infestada de
zumbis. A distância, a impressão é de que a própria terra se abriu e vomitou centenas de cadáveres
ambulantes.
Eles decidem pegar uma via de mão dupla — a Rural Route 100 —, que segue para o sul
passando por Greenville e evitando o congestionamento. Eles andam por 2 ou 3 quilômetros, antes
de Philip erguer a mão e parar.
— Só um segundo — diz ele, franzindo a testa. Inclina um pouco a cabeça. — O que é isso?
— Isso o quê?
— Esse barulho.
— Que barulho?
Philip escuta. Todos escutam. Philip se volta em um círculo lento, tentando sentir a direção
de onde o som vem.
— Será que é o barulho de um motor?
Brian agora ouve.
— Parece mais um tanque.
— Ou talvez uma escavadeira — sugere Nick.
— Caralho. — Philip aperta os olhos enquanto ouve. — Não pode estar muito longe.
E eles seguem em frente. Menos de 1 quilômetro mais adiante, veem uma placa carcomida:
WOODBURY – 1,5 KM
Eles continuam seguindo a estrada, com todos os olhos voltados para o céu carregado de
fumaça.
— Seja lá quem forem, têm gasolina — afirma Nick.
Brian vê uma nuvem de poeira no horizonte.
— Você acha que são amistosos?
— Não vou arriscar — avisa Philip. — Vamos lá, pessoal... A gente vai dar um jeito de
entrar de mansinho, dando um passo de cada vez.
Philip atravessa o acostamento e então desce por um barranco cheio de mato.
Eles passam pelo campo de uma fazenda ali perto, um enorme vale abandonado de terra
fofa. As botas afundam na lama conforme passam. O vento frio os castiga e eles precisam de um
tempo interminável para dar a volta pelo perímetro, até os resquícios de uma cidade abandonada
voltarem a se materializar à frente.
Uma placa do Walmart se ergue acima de um bosque de velhos carvalhos. Não muito longe
do Walmart, os arcos dourados de um McDonald’s despontam. O lixo se acumula pelas ruas vazias,
passando por construções de tijolos do período pós-Guerra Civil e condomínios baratos. Mas, no
lado norte da cidade, no meio das cercas anticiclones, o som de motores e martelos e de uma voz ou
outra denota a presença de seres humanos.
— Parece que eles estão construindo uma muralha, ou coisa parecida — comenta Nick
quando passam por baixo de algumas árvores. A distância, a cerca de 200 metros, um grupo de
pessoas trabalha num enorme baluarte de madeira, que fecha a parte norte da cidade. A barricada já
se estende por uns dois quarteirões.
— Mas o resto da cidade parece morto — comenta Philip. — Não devem ter restado muitos
sobreviventes.
— Que droga é aquela? — Brian aponta para um semicírculo de grandes balaústres, alguns
quarteirões a oeste da barricada. Aglomerados de postes em arco se voltam para uma grande área
vazia, escondida atrás de cercas e prédios.
— Talvez o campo de futebol da escola? — Philip alcança a Glock. Ele saca a arma e
confere quantas balas restam no pente. Sobraram seis cartuchos de ponta oca.
— O que você está pensando, Philip? — Nick parece trêmulo e ansioso.
Brian se pergunta se Nick está temendo cair em outra armadilha. Ou talvez seja a presença
de Philip que o deixa meio nervoso. A verdade é que o próprio Brian também não está muito
ansioso em entrar sem ser convidado naquela porcaria de comunidade, especialmente considerando
que eles levam um zumbi apodrecido na coleira e que o pai da tal zumbi está tão afetado que parece
ser capaz de fazer qualquer coisa, a qualquer momento. Mas que alternativa eles têm? Nuvens
negras voltam a se juntar no horizonte e a temperatura está despencando.
— O que você tem aí, meu caro? — Com o queixo, Philip aponta para a arma que se projeta
no cinto de Brian. — Um .38?
— É.
— E você está com o .357? — pergunta Philip a Nick, que assente, nervoso. — Muito bem...
O que nós vamos fazer é o seguinte...
Eles entram pelo lado nordeste da cidade, saindo das árvores ao lado dos trilhos da ferrovia.
Chegam devagar, com as mãos levantadas num gesto de que não estão ali para ameaçar ninguém. A
princípio, se surpreendem com o quanto conseguem adentrar na cidade — totalmente às claras,
diante de dezenas de seres humanos —, antes que qualquer um perceba que estranhos passeiam por
ali.
— Ei! — Um sujeito grande e de meia-idade, num suéter de gola rulê, salta de uma
escavadeira e aponta para os recém-chegados. — Bruce, olha só! Temos companhia!
Outro trabalhador — um negro alto, num casaco estilo marinheiro e dono de uma reluzente
cabeça raspada — para de martelar. Ele olha para cima e arregala os olhos. Vai pegar uma arma,
encostada num cooler próximo.
— Calma, pessoal! — Philip se aproxima devagar, passando por um pátio de caminhões
todo empoeirado, com as mãos levantadas. Exibe a expressão de uma tentativa de aproximação
calma, da maneira mais suave e amistosa que é capaz de demonstrar. — A gente só está aqui de
passagem... Ninguém quer fazer drama.
Brian e Nick seguem de perto, nos calcanhares de Philip, ambos com as mãos levantadas.
Os dois homens se aproximam com as armas empunhadas.
— Vocês estão trazendo um arsenal? — pergunta o homem negro.
— A trava de segurança está acionada — diz Philip, fazendo uma pausa para pegar
cuidadosamente a Glock. — Eu vou mostrar a peça, de boa-fé.
E mostra a espingarda .9 mm.
— E vocês aí? — O sujeito de gola rulê se dirige a Brian e Nick.
Eles também mostram as armas.
— São só vocês três? — O homem de gola rulê tem sotaque do norte. Os cabelos louros
cortados rente à cabeça exibem manchas grisalhas e ele tem o pescoço de lutador e o peito largo de
estivador. A enorme barriga porcina se pendura sobre o cinto.
— Só — afirma Philip e, basicamente, é a pura verdade. Ele deixou Penny amarrada a uma
árvore, nas sombras de uma nogueira, a 100 metros da barricada. Philip a amarrou com uma grande
quantidade de cordas e ainda pôs uma bandana em volta da boca da filha, para evitar que ela fizesse
qualquer barulho. Ficou mortificado ao amordaçá-la, mas até que saiba com quem está lidando, o
melhor é mantê-la escondida.
— O que aconteceu com você? — pergunta o de gola rulê para Brian, apontando para os
ferimentos dele.
— Ele teve um encontro feio com os Mordedores — explica Philip.
O cara de gola rulê abaixa a espingarda.
— Vocês são de Atlanta?
— Não, senhor. Somos de uma cidade pequena chamada Waynesboro.
— Viram a Guarda Nacional por lá?
— Não, senhor.
— E estão viajando sozinhos?
— Estamos. — Philip põe a arma no cinto. — A gente só precisa descansar um pouco e
depois a gente se manda.
— Vocês têm comida?
— Não.
— Cigarros?
— Não, senhor. — Philip mostra os companheiros. — Se a gente pudesse dormir debaixo de
um teto, a gente promete que não vai incomodar ninguém. Vocês estariam de acordo?
Por um momento, os dois trabalhadores trocam um olhar, como se estivessem
compartilhando uma piada entre si. Aí, o homem negro solta uma gargalhada.
— Meus caros, vocês estão em pleno Velho Oeste... Ninguém se importa com o que vocês
fazem.
*
Parece que a afirmação do homem negro foi um eufemismo.
Durante o resto do dia, Philip, Brian e Nick tomam pé da região e não é exatamente um
paraíso rural. Cerca de sessenta habitantes se juntaram no setor seguro do lado norte da cidade, a
maioria permanecendo reservada, comendo o que consegue encontrar, tão paranoicos e
desconfiados uns dos outros que mal saem das casas. Eles moram em lojas vazias e apartamentos
abandonados e não contam com nenhuma liderança organizada. Chega a ser surpreendente que
qualquer um deles tenha tomado sequer a iniciativa de construir um muro. Em Woodbury, é cada
um por si: homens, mulheres e crianças.
O que é perfeito para Philip, Brian e Nick. Depois de vasculhar toda a cidade, eles decidem
acampar num prédio de dois apartamentos, no limite sul da zona de segurança, próximo ao
desabitado distrito comercial. Alguém manobrou carrocerias de caminhão e ônibus escolares vazios,
formando uma fila ao longo da periferia da cidade e criando um bastião improvisado para manter os
Mordedores afastados.
Por enquanto, o lugar parece relativamente seguro.
Naquela noite, Brian não consegue dormir, então decide sair e explorar mais a cidade. Não é
fácil andar — as costelas ainda o incomodam e ele respira com dificuldade e chiando muito —, mas
a sensação de sair para espairecer é muito boa.
À luz da lua minguante, as calçadas estão nuas e desoladas, cortando o que um dia foi uma
típica cidadezinha de operários. O lixo voa de um lado para o outro por praças e playgrounds
desertos. Lojas que pertenciam aos negócios típicos de todas as cidades — o dentista local, uma loja
de rações e sementes, a Dairy Queen, a Piggly Wiggly — estão escuras e tapadas com tábuas. As
provas da “transformação” estão por toda parte, em terrenos como o do Ferro-Velho do Kirney,
onde os corpos foram depositados e incinerados há pouco tempo, ou do gazebo da comunidade na
Praça Robert E. Lee, onde as manchas de sangue de alguma batalha mortal ainda brilham como
piche sob o luar.
Brian não se surpreende ao descobrir que a área aberta no meio da cidade — que ele logo
viu de fora — era uma antiga pista de corrida com o chão de terra. Aparentemente, os moradores
têm combustível suficiente para manter os geradores funcionando 24 horas por dia; e, como Brian
logo descobre, frequentemente, na calada da noite, os enormes postes arqueados sobre a pista se
acendem sem qualquer razão aparente. No ponto mais distante da pista, Brian passa por uma
carroceria de caminhão que pulsa como um grande coração de aço com as vibrações abafadas dos
motores de combustão — os cabos saindo pelos fundos e ligados aos prédios vizinhos.
Na hora que o sol começa a surgir no leste, Brian decide que é melhor voltar para o prédio.
Ele atravessa um estacionamento deserto e então pega um atalho por uma viela cheia de lixo. Ele
chega à rua seguinte e passa por um grupo de homens idosos reunidos em volta de um barril de lixo
transformado em lareira, aquecendo as mãos ao fogo e compartilhando uma garrafa de Thunderbird.
— Olho vivo, garoto — avisa um dos homens quando Brian passa, e os outros dois riem,
sem muita intensidade. Os três são velhos, de cabelos grisalhos, artríticos e caducos, vestindo
casacos puídos do Exército da Salvação. Parecem estar de pé em volta daquele barril há séculos.
Brian para por ali. Ele está com o .38 de cano curto preso ao cinto sob o casaco, mas não
sente a menor vontade de exibi-lo.
— Há Mordedores por aqui?
— Mordedores? — pergunta um dos homens. Tem uma longa barba branca, e os olhos
enrugados cerram em confusão.
— Ele está falando daqueles troços mortos — diz o terceiro vadio, o mais gordo de todos.
— É, Charlie — diz o primeiro velho. — Lembra... aqueles montes de pus ambulantes que
comeram o Mike Amarelo... O motivo de a gente estar preso aqui, nesta cidade de merda.
— Eu sei de quem que ele está falando! — diz o caduco de barba. — Só não tinha ouvido
alguém chamar eles assim antes.
— Você é novo por aqui, filho? — O gordão examina Brian.
— Para falar a verdade... eu sou, sim.
O velho gordo abre um sorriso cheio de dentes verdes e apodrecidos.
— Bem-vindo à antessala do inferno.
— Não ouve esse cara, não, filho — diz o primeiro velho, passando um braço ossudo e
artrítico pelo ombro de Brian. Então, com uma voz baixa e cheia de muco, ele confidencia: — Por
aqui, não é dos mortos que você tem que ter medo... É dos vivos.
No dia seguinte, Philip manda Brian e Nick manterem o bico calado enquanto estiverem em
Woodbury, serem discretos, evitarem qualquer contato com os moradores e nem mesmo dar seus
nomes para as pessoas. Felizmente, o apartamento se presta muito bem ao papel de refúgio
temporário. Construído na década de 1950, com móveis no mínimo daquela época — azulejos
espelhados lascados numa parede, um sofá carcomido na sala e um grande aquário retangular ao
lado da TV, cheio de sujeira e corpinhos de peixinhos-dourados mortos e abandonados —, o lugar
tem três quartos e água corrente. O cheiro é rançoso, uma mistura de cocô de gato com peixe podre,
mas, como dizia o pai de Brian, “de cavalo dado não se olha os dentes”. Eles encontram latas de
conserva nas despensas de ambos os apartamentos e decidem ficar ali por algum tempo.
Para grande surpresa de Brian, os moradores da cidade os deixam em paz, como se fossem
fantasmas. Brian percebe que a notícia de que há novos moradores entre eles já se espalhou; mesmo
assim, é como se os Blake e Nick fossem meras aparições que tivessem baixado naquele
apartamento destruído. O que não está tão longe de ser verdade. Nick fica na dele, lê a Bíblia e não
fala muito. Philip e Brian, que ainda se estranham, também cuidam de suas vidas com o mínimo de
diálogo. Eles nem pensam em encontrar um veículo para continuar a viagem para o sul. Para Brian,
é como se tivessem desistido... ou de chegar até o litoral, ou de ter algum tipo de futuro, ou uns dos
outros.
Brian continua a se recuperar das feridas e Philip se dedica à obsessão em relação a Penny,
escapulindo para a nogueira sempre que tem uma chance.
Certa noite, na alta madrugada, Brian ouve a porta do apartamento abrir e fechar.
Ele fica ali na cama, apurando o ouvido por quase uma hora, quando finalmente ouve Philip
voltar no meio de uma confusão de passos arrastados e grunhidos. É a terceira noite seguida que
Philip sai de fininho do apartamento — provavelmente para dar uma olhada em Penny enquanto os
moradores da cidade estão dormindo —, mas, até essa noite, a volta sempre foi tão silenciosa e
discreta quanto a partida. Mas dessa vez Brian pode ouvir Philip respirando pesado na sala de estar,
murmurando alguma coisa que é abafada por rugidos aguados e o barulho de uma corrente.
Brian sai da cama e vai até a sala. Ele congela ao ver Philip arrastando Penny numa corrente,
conduzindo-a pelo chão como se fosse um cachorro adestrado.
Por um breve momento, Brian fica completamente atordoado. Tudo o que consegue fazer é
olhar para o cadáver de vestido enlameado andando de quatro, os pés espalhando sujeira por todo o
chão do apartamento, e torcer para que ela seja apenas uma visitante temporária e não — Deus os
livre — uma nova hóspede no apartamento.