Capitulo 21 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


— Que diabos você está fazendo? — pergunta Brian ao irmão, enquanto a menina morta
lança as garras no ar com uma fome implacável. Os olhos leitosos estão fixos em Brian.
— Vai dar tudo certo — responde Philip, puxando a filha para a sala dos fundos.
— Você não está pensando em...
— Cuide da porra da sua vida.
— Mas e se alguém...
— Ninguém me viu — diz ele, abrindo com força a porta da lavanderia.
É um pequeno cômodo claustrofóbico com chão de linóleo e paredes de cortiça, com uma
lavadora e uma secadora de roupas quebradas e cocô de gato entranhado nas falhas do assoalho.
Philip arrasta a coisa que baba e gorgoleja até um canto e prende a coleira nos canos de água ali
expostos. Tudo isso ele faz com a mão firme, mas gentil, de um domador de animais.
Brian acompanha tudo do corredor, horrorizado com o que está vendo. Philip espalhou
lençóis pelo chão e os prendeu com fita adesiva nas quinas da máquina de lavar, para evitar que a
coisa que foi Penny se machuque ou faça barulho. Fica óbvio que ele vinha se preparando para a
ocasião. Vinha pensando nisso há muito tempo. Philip prende uma coleira de couro feita por ele
mesmo — confeccionada com um cinto e pedaços da coleira — em volta da cabeça de Penny e a
prende aos canos.
Ele faz tudo isso com o cuidado de um enfermeiro que prepara uma cadeira de rodas para
uma criança aleijada. Com um separador de aço, ele mantém o monstrinho a distância e
cuidadosamente prende a corrente na parede. E, por todo esse tempo, aquilo que um dia foi uma
menina fica rosnando, se debatendo e puxando a coleira.
Brian só encara. Ele não consegue se decidir se deve se virar, chorar ou gritar. Tem a
sensação de que surpreendeu alguma coisa perturbadoramente íntima e, por um rápido instante, a
mente dele faz um flashback para quando tinha 18 anos e estava visitando o asilo de Waynesboro
para dar adeus à avó, prestes a falecer. Ele nunca se esquecerá do olhar do enfermeiro. Quase que de
hora em hora, aquele enfermeiro tinha que limpar merda do traseiro da velha e a fisionomia dele,
enquanto fazia isso com os parentes presentes, era tenebrosa: uma mistura de nojo, profissionalismo
estoico, pena e desprezo.
Aquela mesma expressão esquisita contorce o rosto de Philip Blake conforme ele afivela a
coleira em volta da cabeça do monstrinho, com cuidado de evitar a zona de perigo formada pelas
mandíbulas da menina. Ele canta para ela com ternura, enquanto mexe na fivela — uma canção de
ninar desafinada, que Brian não consegue identificar.
Finalmente, Philip se dá por satisfeito com a área que montou. Ele acaricia com delicadeza o
cocuruto da cabeça da coisa que foi Penny e lhe dá um beijo na testa. Os dentes da menina tentam
mordê-lo, passando longe da jugular por centímetros.
— Eu vou deixar a luz acesa, querida — avisa Philip para a menina, em voz alta, como se
estivesse falando com um estrangeiro, antes de calmamente se virar e sair da lavanderia, trancando
a porta atrás de si.
Brian fica parado no corredor, com o sangue correndo gelado pelo corpo.
— Você quer conversar sobre isso?
— Vai dar tudo certo — repete Philip, evitando olhá-lo nos olhos, enquanto sai, direto para o
quarto.
O pior é que a lavanderia fica ao lado do quarto de Brian e, a partir daquele momento, ele
começa a ouvir, toda noite, a coisa que foi Penny gemendo, afiando as garras, puxando as correntes.
É uma lembrança constante... do quê? Do Juízo Final? De loucura? Brian nem encontra palavras
para dizer o que ela representa. O cheiro é mil vezes pior que urina de gato. E Philip passa um bom
tempo trancado lá dentro com a menina morta, fazendo Deus sabe o quê, e isso aumenta ainda mais
a distância entre eles. Ainda lidando com o choque e o luto, Brian se vê dividido entre a pena e a
repulsa. Ele ainda ama o irmão, mas isso também já é demais. Nick não faz qualquer comentário
sobre o assunto, mas Brian pode ver que o espírito de Nick está alquebrado. Os silêncios ficam mais
extensos entre eles e Brian e Nick começam a passar mais tempo fora do apartamento, andando pela
zona de segurança e passando a conhecer melhor a dinâmica dos habitantes.
Com toda a discrição e caminhando pela periferia daquele pequeno enclave, Brian percebe
que a cidade está basicamente dividida em duas castas sociais. O primeiro grupo — que tem mais
poder — inclui todos aqueles que têm algum talento ou profissão que seja útil. Brian descobre que
esse grupo envolve dois operários, um maquinista, um médico, o dono de uma loja de armas, um
veterinário, um encanador, um barbeiro, um mecânico de automóveis, um fazendeiro, um
cozinheiro e um eletricista. O segundo grupo — que Brian chama de Dependentes — inclui os
doentes, os jovens e os trabalhadores de colarinho branco, que exerciam profissões administrativas
obscuras. São os gerentes de nível médio e o pessoal de escritório, os burocratas e executivos de
empresas que antes ganhavam salários de seis dígitos administrando as divisões das grandes
multinacionais — e agora só ocupam espaço, obsoletos como fitas cassete. Com os ecos das antigas
aulas de sociologia reverberando nos confins da cabeça, Brian se pergunta se essa tênue e frágil
comunhão de almas desesperadas pode algum dia virar algo parecido com uma comunidade.
O que pode jogar areia em tudo são três membros da Guarda Nacional que chegaram a
Woodbury vindos de uma Estação de Guarda próxima há duas semanas e começaram a querer
mandar nas pessoas. Essa pequena gangue desprezível — que Brian chama de Valentões — é
liderada por um ex-fuzileiro naval fanático, de cabelo rente e olhos azuis gelados que atende pelo
nome de Gavin (ou “o Major”, como seus subordinados o chamam). Leva poucos dias para Brian
entender que Gavin é um sociopata, com desejos de poder e de saquear o que puder. Talvez a praga
tenha feito Gavin assumir esse papel, mas ao longo da primeira semana em Woodbury, Brian fica
observando Gavin e os soldados arrancando mantimentos das mãos de famílias indefesas e se
aproveitando de várias mulheres sob a mira de um revólver, de noite, atrás da pista de corrida.
Brian guarda certa distância e mantém a cabeça abaixada e, enquanto faz todas essas
observações silenciosas sobre a hierarquia de Woodbury, ouve frequentemente o nome Stevens.
Pelo que consegue entender das conversas dispersas com os moradores da cidade, esse
senhor Stevens um dia foi um otorrinolaringologista que tinha um consultório num subúrbio de
Atlanta. Depois da transformação, Stevens partiu para um lugar mais seguro — aparentemente
sozinho, alguns acreditam que por causa de um divórcio. E o bom médico logo foi bater no grupo
de toscos sobreviventes de Woodbury. Vendo os maltrapilhos moradores acometidos por doenças,
malnutridos e muitos deles feridos, Stevens decidiu pôr os serviços à disposição da comunidade. E
desde então andou muito ocupado, trabalhando no antigo Centro Médico do Município de
Meriwether, a três quadras da pista de corrida.
Na tarde do sétimo dia em Woodbury, com o nariz ainda escorrendo e sentindo uma pontada
de dor toda vez que respira, Brian finalmente junta coragem para visitar o prédio cinza e atarracado
no extremo sul da zona de segurança.
*
— Você teve sorte — atesta Stevens, tirando uma radiografia do clipe sobre o painel de luz.
Ele aponta para uma imagem leitosa das costelas de Brian. — Nenhuma fratura séria... Só umas
fissuras pequenas na segunda, na quarta e na quinta costelas.
— Sorte, hein? — murmura Brian, sentado sem camisa na maca. A sala é uma deprimente
cripta de azulejos, no porão do centro médico, que um dia foi o laboratório de patologia, e agora
serve como sala de exame do Dr. Stevens. O ar cheira a mofo e a desinfetante.
— Admito que não é uma palavra que eu tenha usado muito nos últimos dias — responde
Stevens, virando-se para um armário de aço inoxidável, ao lado do painel de luz. É um homem alto,
esbelto e bem arrumado, de quase 50 anos, com óculos de grife de armação de aço que usa na ponta
do nariz. Veste um jaleco por cima da camisa social amarrotada e tem uma certa inteligência
cansada e professoral nos olhos.
— E esse chiado, na hora que eu respiro? — pergunta Brian.
O médico procura alguma coisa na prateleira de frascos plásticos.
— São os primeiros estágios de uma pleurisia, por causa das fissuras nas costelas —
responde, enquanto procura um remédio. — Eu pediria que você tossisse o máximo possível... Vai
doer, mas vai evitar que a secreção se acumule nos pulmões.
— E o meu olho? — A dor lancinante no olho esquerdo de Brian, que ele sente desde o
maxilar, piorou nos últimos dias. Toda vez que se olha no espelho, o olho parece estar mais
vermelho.
— Para mim, parece que está bem — diz o médico, tirando um frasco de comprimidos da
prateleira. — A mandíbula desse lado teve uma lesão feia, mas com o tempo isso vai passar. Eu vou
lhe dar um pouco de naproxeno para aliviar a dor.
Stevens passa o frasco para ele e fica com os braços cruzados sobre o peito.
Brian, quase que sem querer, põe a mão no bolso para pegar a carteira.
— Eu não sei se tenho...
— Os serviços prestados aqui não precisam ser pagos — diz o médico, com a sobrancelha
arqueada, meio que surpreendido pelo gesto de Brian. — Não há funcionários, não há infraestrutura,
não existe visita de acompanhamento e, além de tudo isso, não há sequer uma xícara decente de
café espresso ou um jornal para as pessoas lerem.
— Ah... então está bem. — Brian põe os comprimidos no bolso. — E o quadril?
— Sofreu uma lesão, mas fora isso está intacto — diz ele, apagando o painel e fechando o
armário. — Eu não me preocuparia com isso. Já pode pôr a camisa agora.
— Que bom... Obrigado.
— Você não é de falar muito, é? — O médico lava as mãos na pia e enxuga numa toalha
suja.
— Acho que não.
— Talvez seja melhor assim — responde o médico, embolando a toalha e jogando na pia. —
Provavelmente nem vai querer me dizer o seu nome.
— Bem...
— Está tudo bem. Deixa para lá. Eu vou colocar você no registro como o Boêmio das
Costelas Fissuradas. Você quer me contar como isso aconteceu?
Brian dá de ombros enquanto abotoa a camisa.
— Eu caí.
— Lutando contra os espécimes?
Brian olha para ele.
— Espécimes?
— Desculpe... termo técnico. Mordedores, zumbis, montes de pus, como quer que chamem
hoje em dia. Foi assim que você se feriu?
— É... mais ou menos.
— Quer uma opinião profissional? Um prognóstico?
— É claro.
— Dê o fora daqui enquanto pode.
— Por quê?
— Teoria do caos.
— Perdão?
— Entropia... Impérios desmoronam, estrelas se apagam... os cubos de gelo se dissolvem no
copo em que você bebe.
— Desculpe, mas eu não estou entendendo...
O médico chega os óculos mais para cima do nariz.
— Tem um crematório no segundo subsolo deste prédio... Nós incineramos mais dois
homens hoje, um deles era pai de dois filhos. Foram atacados no lado norte, ontem de manhã.
Reanimaram-se na noite passada. Mais Mordedores estão conseguindo entrar... a barricada é falha.
A teoria do caos é a impossibilidade de um sistema fechado se manter estável. Esta cidade está
condenada. Não tem ninguém no comando... Gavin e os seguidores estão ficando cada vez mais
ousados... e você, meu amigo, é só um punhado de serragem nesse sistema.
Por muito tempo, Brian não diz nada, fica só olhando para além do médico.
Finalmente, ele sai de cima da mesa e estende a mão para o médico.
— Eu vou me lembrar disso.
Naquela noite, meio zonzo pelos anestésicos, Brian Blake ouve uma batida na porta do
quarto. Antes de sequer ter a chance de se recompor e acender uma luz, a porta se abre e Nick enfia
a cabeça para dentro.
— Brian, você está acordado?
— Sempre — resmunga Brian, enquanto sai das cobertas e se senta na beira da cama. Só
algumas das paredes do apartamento têm eletricidade na fiação. O quarto de Brian não tem. Ele
acende uma lanterna e vê Nick entrando no quarto, totalmente vestido e com a fisionomia
completamente apavorada.
— Você tem que vir ver uma coisa — diz Nick, indo até a janela, olhando pelas persianas.
— Eu vi ontem à noite, foi a mesma coisa, mas eu não dei muita bola.
Ainda grogue, Brian vai se juntar a Nick na janela.
— O que é que nós estamos vendo?
Através da persiana, na escuridão do terreno baldio, pode-se divisar a silhueta de Philip
saindo do meio das árvores mais distantes. Na escuridão, ele parece um homem doente. Desde a
morte de Penny, perdeu peso, não dorme e mal come. Ele parece doente, destruído, como se as
calças jeans desbotadas fossem as únicas coisas que segurassem as pernas longas e esquálidas. Ele
está carregando um balde e anda com uma objetividade estranha, como se fosse um autômato ou um
sonâmbulo.
— O que tem no balde? — pergunta Brian baixinho, quase que só por perguntar.
— Exatamente. — Nick se coça, nervoso. — Ele trouxe o mesmo balde ontem à noite.
— Fique calmo, Nick. E fica aqui. — Brian desliga a lanterna. — Vamos ver o que acontece.
Alguns minutos mais tarde, o som da porta da frente se abrindo ecoa por toda a escuridão do
apartamento. Os passos arrastados de Philip podem ser ouvidos atravessando a sala e caminhando
pelo corredor.
O barulho da porta da lavanderia sendo aberta é seguido pelo som de Penny se agitando, a
corrente batendo e pelos gemidos esganiçados — aos quais Brian e Nick praticamente se
acostumaram. Então uma coisa chega aos ouvidos deles, algo que ainda não tinham escutado: o
baque molhado de algo caindo no azulejo... seguido pelos ruídos estranhos, animalescos e grudentos
de um zumbi se alimentando.
— Mas que merda ele está fazendo? — À meia-luz, o rosto de Nick é uma lua pálida de
terror.
— Meu Deus do céu — sussurra Brian —, ele não pode estar...
Brian nem tem a chance de concluir o raciocínio, porque Nick já está a caminho da porta,
esfumando de raiva e partindo na direção do corredor.
Brian vai atrás dele.
— Nick, não vai...
— Isso não pode estar acontecendo. — Nick parte pelo corredor, na direção da lavanderia.
Bate com força na porta. — Philip, o que está acontecendo?
— Vá embora!
O som da voz abafada de Philip está carregado de emoção.
— Nick... — Brian tenta se interpor entre Nick e a porta, mas é tarde demais.
Nick gira a maçaneta. A porta está destrancada. Ele entra na lavanderia.
— Ai, meu Deus.
A reação horrorizada de Nick chega aos ouvidos de Brian uma fração de segundo antes de
ele poder dar uma boa olhada no que está acontecendo lá dentro.
Brian entra no cômodo estreito e vê a menina morta comendo a mão de um ser humano.
A reação inicial de Brian não é de repulsa, nojo ou exasperação (que, para falar a verdade, é
exatamente o conjunto de emoções que passa pela fisionomia de Nick enquanto ele olha
embasbacado para a garota sendo alimentada). Em vez de tudo isso, Brian é acometido por uma
enorme tristeza. No começo, não diz nada, simplesmente fica olhando enquanto o irmão se agacha
diante do pequeno cadáver empertigado.
Ignorando a presença dos outros, Philip, com calma, tira uma orelha decepada do balde e
espera pacientemente até que a coisa que foi Penny termine de degustar a mão. Ela engole os dedos
de meia-idade com um apetite insaciável, saboreando os nós cabeludos como se fossem uma
preciosidade, com fios espumantes de saliva cor-de-rosa escorrendo dos lábios.
Ela mal pausa para engolir quando Philip coloca a orelha humana ao alcance dos dentes
enegrecidos, oferecendo aquele “docinho” à criança, com o cuidado e a preocupação de um padre
que entrega a hóstia a um membro da congregação. A coisa que foi Penny devora a cartilagem e as
dobras da pele humana com dedicação total.
— Estou fora daqui — é tudo o que Nick consegue dizer, dando meia-volta e saindo do
cômodo violentamente.
Brian entra e se agacha ao lado do irmão. Não ergue a voz. Não acusa Philip de nada. Brian
se afoga em mágoa e tudo o que consegue dizer nessa hora é: — Cara, o que está acontecendo?
Philip deixa a cabeça pender para o lado.
— Ele já estava morto... E o pessoal ia incinerá-lo mesmo... Eu encontrei o corpo num saco
plástico atrás da clínica... Ele morreu de alguma outra coisa... Eu só tirei uns pedaços... Ninguém
vai perceber...
A coisa que foi Penny termina de comer a orelha e fica rosnando, pedindo mais.
Philip lhe dá um pé decepado e ainda pingando sangue, com o osso serrado na altura do
tornozelo, como um pedaço lambuzado de marfim.
— Você acha que isso... — Brian procura as palavras certas — ...que essa é uma boa ideia?
Philip olha para o chão enquanto o ruído molhado e grudento da refeição toma conta da
lavanderia. A coisa continua roendo o osso, enquanto a voz de Philip fica uma oitava mais grave e
começa a falhar com emoção.
— Pense nele como uma espécie de doador de órgãos...
— Philip...
— Eu não consigo abandoná-la, Brian... Não dá... Ela é tudo o que eu tenho.
Brian respira profundamente e procura lutar contra as lágrimas.
— O problema todo... é que ela não é mais a Penny.
— Eu sei disso.
— Então por quê...
— Porque eu olho para ela e tento me lembrar... mas não dá... eu não consigo me lembrar...
não consigo me lembrar de nada, a não ser dessa pilha de merda que nós passamos... e dos canalhas
que atiraram nela... e ela é tudo o que eu tenho... — A dor e a tristeza que tingem sua voz ficam
maiores e se transformam em algo mais obscuro. — Eles a tiraram de mim... o meu mundo inteiro...
e agora as regras são outras... outras...
Brian não consegue mais respirar. Ele observa a coisa que foi Penny se deleitando com o
escabroso pé decepado. Desvia o olhar. Não aguenta mais. Seu estômago está revirado de nojo, a
boca está salivando. Ele pode sentir um calor subindo dentro dele e se põe de pé.
— Eu tenho que... Eu não consigo ficar aqui, Philip... Eu tenho que sair.
Batendo em retirada, Brian sai aos tropeços da lavanderia e chega até o meio do corredor,
onde se ajoelha e vomita.
Como estômago está relativamente vazio, o que sai é principalmente bile. Mas ela sai em
espasmos de agonia. Ele não para de vomitar e os ácidos mancham cerca de 2 metros do carpete
entre o corredor e a sala. As vísceras se contraem e imediatamente uma onda de suor frio se alastra
pelo corpo de Brian e provoca um surto de tosse. O surto prossegue por vários minutos, cada tosse
batendo dolorosamente nas costelas. Ele tosse sem parar, até que finalmente desmorona no chão.
A 5 metros dali, à luz da lanterna, Nick Parsons arruma a mochila. Ele coloca uma muda de
roupas, duas latas de feijão, cobertores, uma lanterna e um pouco de água mineral. Procura alguma
coisa em cima da mesa amontoada.
Brian consegue se sentar, enxugando a boca com as costas da mão.
— Você não pode ir embora, cara... Agora, não.
— O caralho que eu não posso — responde Nick, encontrando a Bíblia debaixo de uma
pilha de papeis de bala. Ele põe a Bíblia na mochila.
O barulho de Penny se alimentando continua vindo do corredor, o que aumenta ainda mais a
ansiedade de Nick.
— Estou implorando, Nick.
Nick fecha o zíper da mochila.
— Vocês não precisam de mim... — diz ele sem encarar Brian.
— Isso não é verdade. — Brian engole o gosto amargo da bile. — Eu preciso de você agora
mais do que nunca... eu preciso da sua ajuda... para tudo continuar de pé.
— De pé? — Nick levanta os olhos. Ele passa a mochila pelo ombro e caminha até onde
Brian está todo arrasado no chão. — As coisas já não estão de pé por aqui há muito tempo.
— Nick, escuta...
— Ele foi longe demais, Brian.
— Escuta. Eu entendo o que você está dizendo. Mas dê mais uma chance a ele. Talvez isso
aconteça uma vez só. Talvez... eu não sei... seja o luto. Só mais uma chance, Nick. Temos uma
chance muito melhor de sobrevivência se ficarmos juntos.
Por um longo e agonizante momento, Nick pensa em tudo isso. E aí, com um suspiro
cansado e exasperado em que ele parece desinflar o espírito, larga a mochila no chão.
No dia seguinte, Philip desaparece. Brian e Nick nem se preocupam em procurá-lo. Passam
a maior parte do dia dentro de casa, mal falando um com o outro, se sentindo, eles próprios, como
zumbis, indo do banheiro à cozinha e à sala de estar sem fazer barulho, onde se sentam olhando pela
janela tapada o céu tempestuoso, tentando encontrar uma resposta, uma maneira de sair da espiral
descendente.
Por volta das 17 horas, ouvem um zumbido estranho vir do lado de fora — um barulho que
parece o cruzamento entre uma serra elétrica e o motor de uma lancha. Com medo de que tenha
alguma coisa a ver com Philip, Brian vai até a porta dos fundos, escuta um pouco e então sai e dá
alguns passos pelo cimento rachado do pátio dos fundos.
O barulho agora está mais alto. A distância, no lado norte da cidade, uma nuvem de poeira se
ergue no céu cinza-escuro. O ronco dos motores se eleva e diminui ao vento e, com uma onda de
alívio, Brian percebe que é só alguém guiando carros de corrida na antiga pista de areia. E volta e
meia, o som de vivas se acende e ecoa ao vento.
Por um momento, Brian entra em pânico. Será que esses imbecis não percebem que a
barulheira vai atrair todos os Mordedores num raio de 80 quilômetros? Porém, ao mesmo tempo,
Brian se sente hipnotizado pelo barulho de serra que o vento traz. Como um sinal de rádio que cruza
os ares, ele toca alguma coisa dentro dele, uma saudade dos tempos anteriores à praga, uma série de
lembranças de domingos tranquilos, de uma boa noite de sono, de entrar na porra de uma loja e
comprar uma porra de caixa de leite.
Brian volta a entrar, põe o casaco e diz a Nick que vai dar uma volta.
A entrada para a pista de corrida é contígua à cerca principal, uma grade metálica alta que se
estende por entre duas pilhas de tijolos. Conforme se aproxima, Brian vê lixo e pneus velhos
espalhados pela parca bilheteria, que está coberta de tábuas pichadas.
O barulho atinge um nível de rachar os ouvidos — o ronco alto dos motores e do público
aplaudindo —, condimentado pelo cheiro de gasolina e de borracha queimando. O céu está
carregado por uma nuvem de poeira e fumaça.
Brian encontra um buraco na cerca e está prestes a entrar por lá, quando ouve uma voz.
— Ei!
Ele faz uma pausa, dá meia-volta e vê três homens de uniformes camuflados esfrangalhados
seguindo na direção dele. Dois dos homens têm cerca de 20 anos, com cabelos longos e sebentos e
rifles de assalto nos ombros, como se fossem patrulheiros. O mais velho — um valentão de cabelo
rente, com a roupa verde-oliva encimada por uma cartucheira a tiracolo — toma a frente,
obviamente no comando da situação.
— A entrada é quarenta paus, ou algum bem equivalente — diz o comandante.
— Entrada? — pergunta Brian, perplexo.
Ele vê um nome no bolso do homem mais velho: maj. gavin. Até agora, Brian só tinha visto
de relance o malévolo integrante da Guarda Nacional, mas agora, tão próximo, ele pode enxergar
um toque de loucura nos gelados olhos azuis do cara. O hálito dele cheira a uísque Jim Beam.
— São quarenta dólares para os adultos. Você é adulto, filho? — Os outros dois riem. — As
crianças entram de graça, claro, mas eu acho que você tem mais de 18 anos. Mesmo que só um
pouquinho.
Brian está confuso.
— Você está cobrando dinheiro das pessoas? Numa hora dessas?
— Você também pode propor uma troca, meu amigo. Tem alguma galinha? Umas revistas
Penthouse que você usa para bater punheta?
Mais risinhos.
Brian se enche de raiva.
— Eu não tenho quarenta dólares.
O sorriso desaparece do rosto do major, como se um interruptor tivesse sido desligado.
— Se é assim, tenha um bom dia.
— Quem é que fica com o dinheiro?
Isso chama a atenção dos outros dois guardas, que se aproximam. Gavin cola o nariz no de
Brian e fala, num grunhido macio e ameaçador: — É para os Comuns.
— Para os o quê?
— Os Comuns... A coletividade... Reformas comunitárias e pequenas coisas.
Brian sente um surto de raiva se apossar dele.
— Tem certeza que não é para a coletividade de vocês três?
— Desculpa — diz o major, num tom gélido —, eu não devo ter recebido o memorando que
diz que você é o novo prefeito da cidade. Vocês aí receberam algum memorando dizendo que este
pirralho é o novo prefeito de Woodbury?
— Não, senhor — diz um dos idiotas sebentos. — A gente não recebeu esse memorando.
Gavin saca uma .45 semiautomática do cinto e libera a trava de segurança, apontando o cano
para a têmpora de Brian.
— Você precisa estudar um pouco de dinâmica de grupo, meu filho. Você faltou às aulas de
natureza e sociedade na escola?
Brian não diz nada. Só encara fixamente os olhos do Major e uma lente vermelha desce
sobre a visão de Brian. Tudo fica vermelho. As mãos dele tremem, a cabeça gira.
— Diga ahhh — pede o Major.
— O quê?
— EU MANDEI VOCÊ ABRIR A PORRA DA BOCA! — ordena Gavin, e os outros dois
guardas põem os rifles de assalto em posição, os canos apontados para a cabeça de Brian.
Ele abre a boca e Gavin insere o cano frio da .45 entre os dentes de Brian como se fosse um
dentista vendo se o paciente tem cárie.
Alguma coisa se quebra dentro de Brian. O cano de aço tem gosto de moeda velha e óleo
estragado. O mundo inteiro fica num tom muito escuro de vermelho.
— Volte para onde você veio — diz o Major. — Antes que se machuque.
Brian faz que sim com a cabeça.
O cano é retirado da boca dele.
Andando como se estivesse num sonho, Brian se afasta lentamente dos homens da Guarda,
dá meia-volta e segue rapidamente pelo mesmo caminho que veio, agora passando por uma
invisível bruma grená.
Por volta das 19 horas, Brian está de volta ao apartamento, sozinho, ainda enfiado no casaco,
olhando pela janela tapada nos fundos da sala de estar, vendo o dia anoitecer, os pensamentos
parecendo ondas revoltas batendo num quebra-mar. Ele cobre os ouvidos. Os ruídos abafados da
minizumbi no quarto ao lado aumentam ainda mais o estupor — como a agulha de uma vitrola
repetindo o mesmo disco —, fazendo Brian ficar ainda mais ensimesmado.
No início, ele mal percebe o som de Nick voltando de sabe lá Deus onde, os passos
arrastados e o clique da porta do armário. Mas quando ouve os resmungos que vêm do corredor,
Brian sai do transe e vai ver o que é.
Nick está enfiado no armário, procurando alguma coisa. O casaco de nylon surrado está
úmido, o tênis enlameado, e ele sussurra algo baixinho: — “Ergo os olhos para os montes... de onde
virá o meu socorro?... Meu socorro vem de Javé... Que fez o Céu e a Terra.”
Brian vê Nick tirar a espingarda do armário.
— Nick, o que você está fazendo?
Nick não responde. Ele abre o pistão da arma e confere a culatra. Está vazia. Ele procura
como um louco pelo assoalho do armário e encontra a única caixa de munição que conseguiram
levar da villa até Woodbury. Continua sussurrando: — “Javé guarda-te de todo o mal... Ele guarda a
tua vida...”
Brian chega um passo mais perto.
— Nick, que diabo está acontecendo?
Ainda nenhuma resposta. Nick tenta colocar as balas com as mãos trêmulas e deixa uma
delas cair. Ela rola pelo chão. Com dificuldade, ele consegue colocar mais uma no compartimento
dos projéteis e fecha a arma com um estalo.
— “Sim, não dorme nem adormece o guarda de Israel...”
— Nick! — Brian agarra o ombro do outro e o faz olhar para ele. — Qual é a merda do seu
problema?
Por um instante, parece até que Nick vai girar a arma e explodir a cabeça de Brian — tal o
olhar de fúria que contorce o rosto dele. Então, Nick consegue se controlar, engole em seco, encara
Brian e diz: — Isso não pode continuar assim.
Então, sem dizer mais nada, Nick se vira e marcha pela sala, na direção da porta principal.
Brian pega o .38, coloca no cinto e sai correndo atrás de Nick.