Capitulo 8 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


Eles se escondem um tempo no escritório do posto de gasolina, debaixo do balcão do caixa e
ao lado de uma coluna de barras de chocolate e batatas-fritas.
Philip fecha a porta e rasteja até os outros nas sombras, vendo a parada de zumbis passar
pela rua, ultrapassando a loja, sem ter ideia de onde a caça está escondida, vagando estupidamente
com os olhos pequenos, como se fossem cachorros atrás de sons agudos demais para o ouvido
humano.
Do ponto onde estão, olhando pelas janelas reforçadas de malha de fibra de vidro, Brian tem
a chance de examinar o clérigo morto e os paroquianos esfarrapados que passam atabalhoadamente
diante do posto de gasolina. Como foi que todos os crentes dessa igreja se transformaram? Será que
se reuniram como cristãos amedrontados depois da praga, agarrando-se uns aos outros em busca de
apoio e conforto? Será que ouviram sermões incendiários dos pregadores sobre o Apocalipse de São
João? Será que os pastores cantaram furiosamente as parábolas de advertência: “E o quinto anjo
tocou a trombeta e vi uma estrela que do céu caíra sobre a terra. E foi-lhe dada a chave do poço do
abismo!”
E como foi que o primeiro deles virou zumbi? Foi alguém na última fileira que teve um
infarto? Terá sido um ritual de suicídio? Brian imagina uma daquelas senhoras negras — com o
corpo entupido de colesterol, as mãos inchadas e enluvadas se abanando — de repente contorcendo
o imenso corpo ao primeiro sinal de um ataque cardíaco. E minutos depois, ou talvez em uma hora,
ou algo assim, a mulher se levanta com o rosto porcino tomado por uma nova religião, uma fé
selvagem e peculiar.
— Fiéis de merrrda! — grunhe Philip do outro lado do caixa. Então se vira para Penny e
engole em seco. — Desculpe o palavreado, meu amorzinho.
Eles exploram a oficina. O lugar é seguro e bem-conservado, frio, mas limpo, com o chão
varrido, as prateleiras em ordem, o ar frio tomado pelo cheiro de borracha nova e a fragrância até
que agradável de combustível e fluidos. Eles percebem que podem passar a noite ali, mas é só
quando vão investigar o imenso pátio da oficina que fazem a descoberta mais impressionante de
todas.
— Puta merda, é um tanque! — grita Brian, de pé no cimento frio, apontando a lanterna para
a belezinha preta estacionada num canto, debaixo das cobertas de lona.
Os outros se reúnem em volta daquele único veículo parado no meio da escuridão. Philip
retira as lonas. É o último modelo do Cadillac Escalade, em excelente estado, a pintura ônix
brilhando na luz amarela.
— Provavelmente era do dono disso aqui — arrisca Nick.
— Recebemos um presente de Natal antecipado — declara Philip, chutando um dos enormes
pneus com a bota toda enlameada. O utilitário de luxo é enorme, com grandes para-choques feitos
sob medida, gigantescos faróis verticais e imensas e reluzentes rodas cromadas. O tipo de
automóvel que integraria a frota de uma agência secreta do governo, os vidros escuros sinistros
refletindo o facho da lanterna.
— E não tem ninguém dentro, né? — Brian joga a lanterna sobre os vidros escurecidos.
Philip saca a .22 do cinto, abre a porta e aponta o cano para o interior vazio e completamente
limpo, com acabamentos de madeira, bancos de couro e um painel que mais parece de um avião.
— Aposto um dólar que as chaves estão em alguma gaveta por aí — diz Philip.
A situação toda com o policial e o pessoal da igreja parece ter jogado Penny num estupor
ainda maior. Naquela noite, ela dorme em posição fetal, no chão da oficina, toda enrolada nos
cobertores e com o dedão na boca.
— Não a vejo fazer isso há um bom tempo — observa Philip, ali perto, sentado num saco de
dormir com o que restou do uísque. Ele está de camiseta sem mangas e calças jeans sujas, as botas
ao lado. Toma mais um gole e enxuga a boca.
— Fazer o quê? — Brian está sentado de pernas cruzadas, enrolado no casaco
ensanguentado, do outro lado da menininha, tomando o cuidado de não falar alto demais. Nick
cochila em cima de uma bancada, dentro de um saco de dormir. A temperatura caiu para cerca de 4
graus.
— Chupar o dedão desse jeito.
— Ela está lidando com muita coisa.
— Nós também.
— É. — Brian olha para as próprias pernas. — Mas a gente vai sair dessa.
— Sair e chegar aonde?
Brian olha para ele.
— Ao centro de refugiados. Onde quer que seja... a gente vai encontrar.
— Ah, claro. — Philip esvazia a garrafa e a coloca de lado. — A gente vai encontrar esse
lugar e aí o sol vai nascer de manhã e todos os órfãos vão achar uma casa para morar e os Braves
vão ganhar o campeonato.
— Tem alguma coisa te incomodando?
Philip balança a cabeça.
— Meu Deus, Brian! Abre o olho!
— Você está puto comigo?
Philip se levanta e alonga o pescoço dolorido.
— Por que diabos eu estaria puto com você, amigo? É sempre igual. Nada demais.
— O que você quer dizer com isso?
— Nada... Vai dormir. — Philip caminha até o Escalade, se ajoelha e procura alguma coisa
embaixo do chassi.
Brian se levanta, com o coração acelerado. Está meio tonto. A garganta inflamada melhorou
e ele parou de tossir depois de alguns dias de descanso e recuperação na casa de Wiltshire, mas ele
ainda não está se sentindo totalmente melhor. E quem está? Ele vai até o irmão e fica atrás dele.
— O que você quer dizer com “é sempre igual”?
— É o que é — murmura Philip, olhando embaixo do utilitário.
— Você está puto por causa do policial?
Philip se levanta lentamente, se vira e fica frente a frente com o irmão.
— Eu já mandei você dormir.
— Desculpa se para mim não é tão fácil matar alguém que um dia foi um ser humano.
Philip agarra Brian pela gola da camiseta, dá meia-volta com ele e o prensa contra a lateral
do Escalade. O impacto quase faz Brian perder o ar. O barulho acorda Nick e até Penny se remexe.
— Escuta aqui — rosna Philip, num tom rascante e ameaçador; ele parece sóbrio e bêbado
ao mesmo tempo. — Da próxima vez que você tirar uma arma da minha mão, trate de fazer bom
uso dela. Aquele policial era inofensivo, mas quem sabe o que vai acontecer na próxima vez? E não
sou eu quem vai cuidar de você com nada além das minhas bolas nas mãos, está entendendo?
Captou?
Brian faz que sim com a cabeça, a garganta totalmente seca de terror.
— S-sim.
Philip aumenta a pressão na camisa de Brian.
— É melhor você superar essa postura de veadinho que foi protegido a vida inteira, começar
a andar com as próprias pernas e rachar algumas cabeças de zumbis, porque as coisas ainda vão
piorar muito antes de melhorar!
— Entendi.
Philip ainda não solta o irmão. Seus olhos estão faiscando de raiva.
— Nós vamos sobreviver a esse pesadelo, e vamos fazer isso nos transformando em
monstros piores que eles, está me entendendo? Agora não existem mais regras! Não existe filosofia,
não existe misericórdia, não existe perdão, agora somos só nós e eles e tudo o que eles querem fazer
é devorar a gente! E por isso nós é que vamos devorar a porra dos zumbis! A gente vai mastigar eles
e depois cuspir no chão e nós vamos sobreviver a essa situação, ou então eu vou destruir toda a
droga desse mundo! Você entendeu o que eu falei? ENTENDEU O QUE EU FALEI?
Brian faz que sim loucamente.
Philip o larga e sai de perto.
A essa altura, Nick está acordado e sentado, e acompanha tudo de olhos esbugalhados.
Penny também está de olhos arregalados e chupa furiosamente o dedão, vendo o pai disparar
enraivecido pela oficina. Ele vai até as imensas portas reforçadas, faz uma pausa e fica olhando a
noite pelas barras horizontais, com os punhos nodosos bem fechados.
Do outro lado da oficina, ainda grudado à lateral do Escalade, Brian Blake trava uma batalha
silenciosa para não chorar como um veadinho que foi protegido a vida inteira.
Na manhã seguinte, na fresta de luz que entrou pela oficina, eles tomam um café às pressas
com barra de cereais e água mineral e então derramam três galões de 20 litros de gasolina no tanque
do Escalade. Eles encontram as chaves em uma das gavetas do escritório e carregam todas as coisas
na mala do utilitário. Os vidros escuros estão cobertos de orvalho. Brian e Penny se acomodam no
banco de trás, enquanto Nick fica na porta da garagem esperando o sinal de Philip. Como não há
energia — aparentemente em toda a parte —, eles são obrigados a abrir a porta automática com a
manivela manual.
Philip se posiciona atrás do volante do Escalade e o liga. O enorme motor V-8 6.2 começa a
rugir. O painel se acende. Philip passa a marcha e segue em frente, fazendo sinal para Nick.
Nick puxa a porta mais próxima da oficina e as ripas relincham enquanto a porta vai
subindo. A luz e o ar do dia explodem no para-brisa enquanto Nick corre até a porta do passageiro e
se acomoda no banco do carona. A porta bate com força.
Philip faz uma rápida pausa, olhando para o painel.
— Qual é o problema? — pergunta Nick com a voz trêmula, ainda um tanto nervoso de
questionar qualquer coisa que Philip faça. — A gente não devia sair logo?
— Só um segundinho — responde Philip, esticando a mão para abrir uma gaveta.
Dentro de uma caixa de mapas, ele encontra mais de vinte CDs cuidadosamente organizados
pelo antigo proprietário — Calvin R. Donlevy, da Greencove Lane S.E., 601 (segundo os
documentos encontrados no porta-luvas).
— Lá vamos nós — diz Philip, dando uma geral nos discos. Aparentemente, Calvin R.
Donlevy da Greencove Lane é fã de rocks clássicos, a julgar por todos os CDs de Led Zeppelin,
Black Sabbath e Jimmy Hendrix na coleção.
— Uma musiquinha para ajudar a me concentrar.
Imediatamente um disco do Cheap Trick entra e Philip engata a marcha.
A força gravitacional dos 450 cavalos empurra todos contra o banco, enquanto o vasto
Escalade cruza rugindo a abertura, mal passando pela porta sem arranhar na armação de metal. A
luz do dia entra no interior do carro. A guitarra de introdução do hino “Hello There” sai pelo
surround system Bose 5.1, enquanto eles avançam pelo estacionamento em direção à rua.
O vocalista do Cheap Trick pergunta se todas as senhoras e senhores estão prontos para
curtir um rock.
Philip faz o carro rugir dobrando a esquina e parte para o norte, pela Maynard Terrace. A rua
fica mais larga. As casas de classe baixa viram um borrão dos dois lados do veículo. Um zumbi
perdido, num casaco rasgado, surge à direita e Philip lança o carro contra ele.
Mal dá para ouvir o baque asqueroso por cima do motor do carro (e da estrondosa bateria do
Cheap Trick). No banco de trás, Brian se abaixa ainda mais, sentindo o estômago embrulhar e
preocupado com Penny. Ela se encolhe no banco ao lado dele, olhando fixamente para a frente.
Brian estica o braço, passa o cinto de segurança em volta dela e tenta sorrir para a menina.
— Tem que ter uma rampa de entrada mais para o norte — diz Philip por cima da barulheira,
mas o som da voz dele é quase que totalmente abafado pela música e pelo rugido do motor. Dois
outros mortos-vivos aparecem à esquerda, um homem e uma mulher totalmente esfarrapados, talvez
até mendigos, se arrastando na calçada, e Philip alegremente faz o carro cantar e acaba com os dois,
como se fossem pinos de boliche molhados.
Uma orelha decepada fica grudada ao para-brisa e Philip liga o limpador.
Eles chegam ao ponto mais ao norte da Maynard Terrace e a rampa de entrada está logo à
frente. Philip freia com força. O Escalade guincha e para na frente de um engavetamento de seis
carros ao pé da rampa, com um punhado de mortos-vivos cercando o local do acidente como urubus
preguiçosos.
Philip engata a ré. Pisa o pedal até o fim, ao som estrondoso da música. A força
gravitacional empurra todos para a frente. Brian segura Penny no banco.
Com um giro no volante o Escalade roda 180 graus e segue pela McPherson Avenue, que
corre paralela à rodovia.
Em dois minutos, eles atravessam 1,5 quilômetro de terreno, com o baixo e a bateria ditando
o ritmo da escabrosa destruição de mortos andarilhos, que são lentos demais para desviarem do
caminho e acabam sendo atingidos pelos enormes para-choques e jogados no ar como gigantescos
pássaros doentes. Cada vez mais eles surgem das sombras, acordados pelo rugido estrondoso do
utilitário.
O queixo de Philip está totalmente tenso de mórbida determinação quando se aproximam de
mais uma rampa de acesso.
Ele freia na Faith Avenue, onde uma lanchonete do Burger Win está sendo consumida por
um incêndio fora de controle e toda a área se encontra encoberta por uma fumaça cinza. O bloqueio
nessa rampa é pior que na outra. Philip solta um palavrão estridente e então engata de novo a ré,
partindo como um raio para trás.
O Escalade derrapa e arranca para uma rua lateral adjacente. Mais uma guinada no volante.
Mais uma vez o pé vai até o fundo. Agora eles estão queimando borracha outra vez, indo para o
oeste, desviando dos obstáculos no caminho e avançando em direção aos arranha-céus que
aparecem no horizonte, que vão ficando cada vez maiores, como vultos aparecendo no meio da
neblina.
O número crescente de ruas interditadas, destroços, carros estraçalhados e mortos-vivos
parece intransponível, mas Philip Blake não será detido. Ele está debruçado sobre o volante,
respirando profundamente, os olhos fixos no horizonte. Passa por um armazém da Publix que
parece ter sido bombardeado por uma ofensiva de guerra alemã, o estacionamento infestado de
mortos.
Philip aumenta a velocidade para abrir caminho entre um monte de zumbis no meio da rua.
Os jatos de bile que se esparramam pelo enorme capô do utilitário são espetaculares — uma
exibição lúgubre de tecidos mórbidos esguichando e tomando conta do para-brisa. Os limpadores
trabalham com toda a força para afastar os restos macabros.
No banco traseiro, Brian se vira para a sobrinha.
— Querida? — Ela não responde. — Penny?
O olhar perdido da menina está fixo no filme em Technicolor que se vê no para-brisa. Ela
não parece ser capaz de ouvir a voz de Brian por cima do som do rock’n’roll, do barulho do motor,
ou talvez tenha optado por não ouvi-lo, ou talvez esteja longe demais para escutar qualquer coisa.
Brian dá um tapinha de leve no ombro da sobrinha e ela volta o olhar para ele.
Então Brian estica o braço e escreve cuidadosamente uma única palavra no vidro embaçado
ao lado dela:
LONGE
Brian se lembra de ter lido em algum lugar que a região metropolitana de Atlanta tinha
quase seis milhões de habitantes. Lembra-se de ter se surpreendido com a cifra. Atlanta sempre lhe
pareceu uma espécie de minimetrópole, um mero símbolo do Progresso do Sul, isolada numa região
de feudos caipiras sem importância. As poucas vezes em que esteve pessoalmente na cidade lhe
deram a impressão de que era um gigantesco subúrbio. É verdade que tinha o seu desfiladeiro de
arranha-céus — a sede da Turner, da Coca-Cola, da Delta, os Falcons e tudo o mais —, mas parecia
ser uma irmã menor das grandes cidades do norte. Brian tinha ido uma vez a Nova York, para visitar
a família da ex-mulher, e aquele imenso formigueiro claustrofóbico e encardido é que parecera uma
cidade de verdade para ele. Atlanta lembrava mais o simulacro de uma cidade. Talvez uma parte
disso se devesse à própria história, que Brian se lembrava de ter aprendido numa pesquisa da
faculdade: durante a Reconstrução, depois que Sherman incendiou o lugar, os planejadores
decidiram fazer com que os antigos pontos históricos da cidade tivessem o mesmo destino do
pássaro dodô; e, nos 150 anos seguintes, Atlanta acabou sendo recheada de concreto e aço. Ao
contrário de outras cidades sulistas, como Savannah e Nova Orleans — às quais o sabor do Velho
Sul ainda permeia —, Atlanta se dedicou a ser uma exibição do mais perfeito expressionismo
moderno. Olha só, mamãe, parecia dizer, nós somos cosmopolitas, progressistas, legais. Não temos
nada a ver com aqueles caipiras de Birmingham. Mas Brian sempre achou que Lady Atlanta “se
exibia demais”. Para Brian, Atlanta sempre pareceu uma cidade de mentira.
Até hoje.
No decorrer dos tenebrosos 25 minutos seguintes, enquanto Philip ziguezagueava sem parar
pelas desoladas ruas secundárias da cidade e por terrenos baldios que corriam paralelamente à
estrada, abrindo caminho em direção ao coração da cidade, Brian vê a verdadeira Atlanta como se
fosse uma rápida apresentação de fotos de medicina legal do lado de fora dos vidros escuros do
utilitário hermeticamente fechado. Vê becos sem saída entupidos de destroços, montes de lixo
pegando fogo, conjuntos habitacionais saqueados e abandonados, janelas quebradas por toda a
parte, lençóis manchados pendurados do lado de fora dos edifícios com pedidos desesperados de
socorro. Isso é realmente uma cidade, uma necrópole primitiva, superpopulosa e com o fedor da
morte. E o pior de tudo é que eles ainda nem chegaram ao centro.
Aproximadamente às 10h22 da manhã no fuso horário da Região Central dos Estados
Unidos, Philip Blake consegue encontrar a Capital Avenue, uma ampla avenida de seis pistas que
passa pelo Turner Field e leva até o centro. Ele desliga o som estéreo, e o silêncio ecoa nos ouvidos
deles, enquanto viram na Capital Avenue e seguem lentamente para o norte.
A avenida está atulhada de carros abandonados, mas há espaço suficiente para o Escalade
driblá-los. As torres dos arranha-céus agora estão tão próximas — mais à esquerda — que parecem
brilhar na neblina como as velas de um navio de resgate.
Ninguém pronuncia uma palavra conforme passam por oceanos de cimento dos dois lados
da rua. Os estacionamentos do estádio estão quase totalmente vazios. Uns poucos carrinhos de golfe
aparecem virados aqui e ali. Trailers de comida estão nos cantos, fechados e cobertos de pichações.
Uns poucos mortos-vivos, bem distantes, andam por aquele território nu e cinzento, na luz de um
dia frio de outono.
Parecem vira-latas prestes a morrer desnutridos.
Philip abaixa o vidro da janela e começa a escutar. O vento assobia. Tem um cheiro esquisito
— uma mistura de borracha queimada, fios derretidos e alguma coisa oleosa difícil de identificar,
como sebo apodrecido — e algo faz um barulho repetido à distância, fazendo o ar vibrar como se
fosse um imenso motor.
Uma revelação faz o estômago de Brian se revirar. Se os campos de refugiados estivessem
abertos em algum lugar do oeste — em algum lugar dos ventrículos da cidade —, não haveria
carros de emergência ali? Com placas? Postos de controle? Pessoal de resgate armado em algum
lugar? Helicópteros da polícia? Não haveria alguma indicação — agora que estavam tão próximos
do centro — de que a ajuda estava por perto? Até então, em toda a viagem até a cidade, eles só
viram uns poucos sinais potenciais de vida. Na Glenwood Avenue, pensaram ter visto uma moto
passar rapidamente, mas não tinham como ter certeza. Depois, na Sydney Street, Nick disse que viu
alguém sair correndo por uma porta, mas não podia garantir.
Brian tira esses pensamentos da cabeça quando vê um imenso emaranhado de avenidas
formando um trevo, 400 metros mais à frente.
Um enorme emaranhado de grandes vias marca a face leste do perímetro urbano de Atlanta
— o lugar onde a rodovia Interestadual 20 se encontra com as de número 85, 75 e 403 — e agora lá
estava, banhado pelo sol frio como um campo de batalha abandonado, entupido de destroços e de
carros destruídos. Brian sente o Escalade começando a subir uma ladeira íngreme.
A Capital Avenue se ergue sobre enormes pilares acima do entroncamento. Philip sobe a
ladeira devagar, serpenteando no meio daquela pista de obstáculos composta de carros
abandonados, a cerca de 25 km/h.
Brian sente alguém lhe dando um tapinha no ombro e vê que Penny está tentando chamar
sua atenção. Ele se vira e olha para ela.
Ela se inclina e cochicha alguma coisa para ele. Parece “esqueci”.
Brian olha para ela.
— Você se esqueceu?
Ela faz que não com a cabeça e cochicha de novo. Dessa vez, Brian entende.
— Não dá para esperar um minuto, querida?
Philip ouve a frase e olha pelo retrovisor.
— Qual é o problema?
— Ela quer fazer xixi.
— Ai, não — responde Philip. — Desculpe, meu amor, mas você vai ter que cruzar as
pernas por mais alguns minutos.
Penny cochicha para Brian que tem muito mesmo que fazer xixi. Brian informa ao irmão.
— Ela precisa ir, Philip. Está muito apertada.
— Espera só mais um pouquinho, meu amor.
Eles estão se aproximando do alto do morro. De noite, a vista dessa parte da cidade, quando
o motorista atravessa a Capital Avenue, é maravilhosa. Em certo momento, a uns 100 metros dali, o
Escalade vai passar pela sombra de um imenso edifício a oeste. De noite, é a partir desse ponto que
dá para ver a luminosa constelação das luzes da cidade, proporcionando uma visão extraordinária da
cúpula do capitólio à frente e das reluzentes catedrais de arranha-céus ao fundo.
Passam pela sombra do edifício e veem a cidade se estender à frente, em toda a sua glória.
Philip pisa forte no freio.
O Escalade dá um rugido e para.
Eles ficam ali por um momento interminável, sem conseguir dizer uma palavra.
A rua à esquerda passa pela frente do antigo e venerado prédio de mármore do capitólio. É
uma via de mão única que vai na direção errada, totalmente apinhada de carros abandonados. Mas
não é por isso que todo mundo está embasbacado. O motivo pelo qual eles não conseguem dizer
uma palavra — um silêncio que dura só um segundo, mas parece demorar uma eternidade — é por
causa do que veem seguindo na direção deles pela Capital Avenue, vindo do norte.
Penny faz xixi nas calças.
O comitê de recepção, tão portentoso quanto o exército romano e tão desastrado como um
enxame de aranhas gigantes, vem da Martin Luther King Drive, a pouco mais de uma quadra dali.
Os zumbis saem das sombras frias dos edifícios públicos que bloqueiam o sol e são tantos que o
olho humano precisa de um instante para simplesmente se acostumar com o que está vendo. De
todos os tipos e tamanhos e em todos os estágios de deterioração, eles saem de portas e janelas, de
becos e de praças cobertas de árvores, de todo e qualquer cantinho e lotam a rua com a profusão de
uma banda de música desorganizada, atraídos pelo barulho, pelo cheiro e pela chegada de um novo
automóvel cheio de carne fresca.
Velhos e jovens, brancos e negros, homens e mulheres, ex-empresários, donas de casa,
funcionários públicos, trapaceiros, crianças, bandidos, professores, advogados, enfermeiras,
policiais, lixeiros e prostitutas, todos os rostos uniformemente pálidos e em decomposição, como
um pomar sem fim de frutas mirradas apodrecendo no sol — mil pares de olhos cinza-chumbo
vidrados unicamente no Escalade, mil sistemas primitivos e ferinos de rastreamento fixos,
esfomeados, nos recém-chegados.
No decorrer daquele momento único de silêncio cavernoso, Philip percebe uma série de
coisas com a velocidade de uma sinapse neural.
Ele percebe que pode sentir o cheiro característico da horda chegando pela janela aberta e
provavelmente até pelo sistema de ventilação do carro: aquele cheiro horrível e rançoso, que parece
uma mistura de bacon e bosta. Porém, mais do que isso, ele percebe que o estranho trovejar que
ouviu mais cedo, quando baixou a janela — aquele zumbido que pairava no ar, igual à vibração de
um milhão de fios de alta tensão —, era o som de uma cidade repleta de mortos-vivos.
O grunhido coletivo da massa, que agora caminha como um gigantesco organismo
multifacetado na direção do Escalade, faz um calafrio percorrer a pele de Philip.
Tudo isso leva à percepção final que atinge Philip na testa com a força de um martelo de
ferro. Ele se dá conta — tendo em vista o movimento quase em câmera lenta que se desenrola
diante dele — de que a ideia de encontrar um centro de refugiados na cidade, para não falar de
alguém ainda vivo, está rapidamente se tornando algo tão prudente quanto um garoto procurando
um pônei no meio de um monte de bosta de cavalo.
Naquele microssegundo de terror — aquele minúsculo soluço de quietude fria —, Philip
percebe que o sol provavelmente não vai mais nascer no dia seguinte e que os órfãos vão continuar
sendo órfãos e os Braves nunca mais vão ser campeões de coisa nenhuma.
Antes de engatar a marcha, ele se vira para os outros numa voz encharcada de amargura e
desafia: — Levanta a mão quem ainda acha que vai encontrar o tal campo de refugiados!