Capitulo 9 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador
São muito poucos os carros de passeio em circulação — pelo menos nos Estados Unidos —
capazes de atingir uma velocidade significativa em marcha a ré. Em primeiro lugar, tem a questão
das marchas. A maioria dos carros, vans, picapes e utilitários esportivos que saem da linha de
montagem conta com cinco ou seis marchas para a frente, mas só uma para a ré. Em segundo lugar,
a maioria dos veículos tem suspensões dianteiras desenhadas para fazer o carro ir para a frente, e
não para trás. Isso evita que os motoristas alcancem grande velocidade de ré. E, em terceiro lugar,
ao andar para trás, você geralmente está olhando por cima do ombro, e fazer um carro andar em alta
velocidade desse jeito geralmente termina em espetaculares derrapagens.
Por outro lado, o veículo que Philip Blake comanda no momento é um Cadillac Escalade
Platinum, modelo 2011, com tração nas quatro rodas e barras de suspensão projetadas para qualquer
uso off-road que o supermecânico Calvin R. Donlevy, de Greencove Lane, quisesse empreender em
seu recanto da Geórgia Central (num momento mais alegre da vida). O automóvel pesa quase quatro
toneladas e tem cerca de 6 metros de comprimento, com um sistema eletrônico de controle de
estabilidade chamado StabiliTrak (característica de série em todos os modelos Platinum). O melhor
de tudo é que ele é equipado com uma câmera de ré que mostra as imagens num generoso monitor
de navegação embutido no painel.
Sem hesitar e com o sistema nervoso conectado à mão direita, Philip encaixa a marcha a ré e
gruda os olhos na trêmula imagem amarela que aparece na tela de navegação. A imagem mostra o
céu parcialmente nublado acima da linha do asfalto atrás dele: o alto do viaduto.
Antes que o regimento de zumbis tenha a chance de se aproximar 50 metros, o Escalade
parte como um foguete para trás.
A força da gravidade joga todo mundo para a frente — com Brian e Nick se contorcendo
para olhar pelo escuro vidro traseiro o viaduto que se aproxima —, enquanto o rabo do Escalade
trepida levemente e o carro ganha velocidade. Philip senta o pé. O motor ruge, mas ele nem se vira.
Mantém o olhar grudado na tela, a pequena imagem amarela mostrando o alto do viaduto se
aproximando cada vez mais.
Um pequeno erro de cálculo — uma mínima pressão no volante para qualquer lado — pode
fazer o Escalade derrapar. Mas Philip mantém a mão firme na direção, o pé no acelerador e os olhos
no monitor, enquanto o carro anda para trás cada vez mais rápido; o motor agora já é um verdadeiro
soprano de ópera, num tom próximo a dó sustenido. Na tela, Philip vê alguma coisa mudar.
— Ai, merda... Olha!
A voz de Brian se sobrepõe ao barulho do motor, mas Philip não precisa nem olhar. Na
pequena tela amarela, ele vê uma série de figurinhas escuras aparecendo a uns 100 metros de
distância, bem na direção deles, no alto do viaduto, como se fossem os paus de uma cerca. Eles se
movem devagar, numa formação desordenada, os braços abertos para receber o veículo que vai
direto para cima deles. Philip solta um grunhido de raiva.
Ele enfia as duas botas no pedal do freio e o Escalade derrapa e vai fritando os pneus até
parar repentinamente na ladeira.
Nessa hora, Philip percebe, assim como com os outros, que eles só têm uma chance, e a
janela dessa oportunidade está se fechando rapidamente. Os mortos-vivos que seguem na direção
deles, pela frente, ainda estão a uns 100 metros de distância, mas as hordas que cercam por trás, se
arrastando pelo alto do viaduto, saindo dos edifícios e dos estacionamentos em volta do Turner
Field, estão se aproximando com espantosa rapidez, considerando os movimentos lentos e pesados
que lhes são característicos. Philip vê, por um dos espelhos laterais, que uma rua adjacente chamada
Memorial Drive está acessível por entre dois trailers virados, mas o exército de zumbis que se
aproxima cada vez mais pelo retrovisor vai bloqueá-la em pouquíssimo tempo.
Ele toma uma decisão instantânea e afunda o pé no acelerador.
O Escalade rosna em marcha a ré. Todo mundo se segura. Philip acelera na direção da massa
de corpos se arrastando. No monitor, a imagem mostra colunas de zumbis esticando as mãos,
excitados, as bocas babando, à medida que crescem cada vez mais na tela.
Na câmera, já dá para ver a Memorial Drive e Philip mete o pé no freio.
A traseira do Escalade derruba uma fila de mortos-vivos com o barulho nojento e abafado de
batidas de tambor, quando Philip põe a alavanca de novo em Drive e sua bota pisa o acelerador até
o fim. Todos se encolhem nos bancos quando o veículo parte para a frente e Philip faz uma forte
curva para a esquerda, tirando um fino dos dois trailers.
Fagulhas voam pelos ares quando o utilitário raspa numa proteção lateral, entra pela brecha
e foge pela rua relativamente desobstruída e graças a Deus livre de zumbis que é a Memorial Drive.
Nem um minuto se passa antes de Brian ouvir o som de alguma coisa arranhando. É um
barulho rouco, molhado e insistente, que vem de baixo do chassi. Os outros também ouvem. Nick
olha para trás.
— Que diabo de barulho é esse?
— Alguma coisa ficou presa debaixo do carro — responde Brian, tentando ver a lateral do
carro pela janela. Mas não consegue para enxergar nada.
Philip está mudo, as mãos grudadas no volante, o queixo tenso e decidido.
Nick olha pelo espelho lateral.
— Uma daquelas coisas ficou presa debaixo do carro!
— Mas que ótimo — diz Brian, se remexendo no banco. Ele percebe pequenas gotas de
sangue escorrendo pelo vidro de trás. — O que é que nós vamos...
— Deixa ele pegar carona — responde Philip sem emoção e sem tirar os olhos da rua. —
Em alguns minutos, vai ter virado suco.
Eles ainda percorrem uns seis quarteirões, batendo em alguns trilhos de trem e entrando
ainda mais na cidade, antes de encontrar algo mais do que alguns destroços isolados e cadáveres
ambulantes. As ruas que passam por entre os prédios estão cobertas de destroços, restos de
explosões, carros queimados cheios de esqueletos carbonizados, vidros quebrados e pilhas de lixo e
de detritos acumuladas nas frentes das lojas. Em algum lugar do caminho, o barulho de algo
arranhando cessa, embora ninguém tenha visto o que aconteceu com o clandestino.
Philip decide pegar uma rua que corta a cidade de norte a sul e leva direto ao centro, mas, ao
dobrar à direita, tendo que driblar um caminhão de entrega virado no meio de um cruzamento, ele
pisa no freio. O Escalade para com força.
Eles ficam ali por alguns momentos, com o motor ligado. Philip não se mexe, as mãos ainda
grudadas no volante, forçando os olhos a ver em meio às sombras distantes dos altos edifícios que
assomam à frente.
A princípio, Brian não consegue ver qual é o problema. Ele estica o pescoço para olhar a rua
apinhada de lixo que se estende por vários quarteirões. Pelo vidro escuro, vê arranha-céus dos dois
lados da avenida de quatro pistas. O lixo gira com o vento de setembro.
Nick também estranha a súbita parada.
— Qual é o problema, Philip?
Philip não responde. Só fica olhando fixo para a frente naquele silêncio desconfortável, os
dentes trincados e mexendo o maxilar.
— Philip...?
Nenhuma resposta.
Nick se vira para o para-brisa e encara a rua. Seu rosto fica tenso. Agora ele sabe o que
Philip vê. E fica muito quieto.
— Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo? — pergunta Brian, se inclinando
para a frente para enxergar melhor.
Por um momento, tudo o que consegue divisar é o imenso desfiladeiro de arranha-céus e
muitos quarteirões de asfalto cheios de lixo. Mas logo percebe que o que está vendo é o retrato em
natureza-morta de uma cidade desolada que começa a se transformar rapidamente num organismo
gigante, que reage à invasão de uma bactéria estrangeira. O que Brian vê pelo vidro escuro do carro
é tão tenebroso que ele começa a mexer a boca sem dizer nada.
Naquele único momento de assombro entorpecedor, a mente de Brian Blake faz um
flashback a uma ridícula memória de infância; é a loucura do momento que toma conta do cérebro.
Uma vez, a mãe levou ele e Philip ao circo Barnum & Bailey na cidade de Athens. Os meninos
deviam ter 13 e 10 anos, respectivamente, e adoraram os números perigosos, os tigres saltando
pelos arcos incandescentes, o algodão-doce, os elefantes, os números menores, o engolidor de
espadas, o alvo humano, os engolidores de fogo, as mulheres barbadas e o encantador de serpentes.
Mas a lembrança que mais ficou na memória de Brian — e na qual ele pensa justamente naquele
momento — é a do carro dos palhaços. Naquele dia em Athens, no auge do show, um carrinho
patético foi até o centro do picadeiro. Era um sedã que parecia saído de um desenho animado, com
as janelas pintadas, mais ou menos do tamanho de um furgão, que corria bem próximo do chão, e
era pintado com cores fluorescentes. Brian se lembra muito claramente de como morreu de rir com
os palhaços saindo aos montes do carro, um depois do outro, e como no começo isso que parecia
engraçado, depois ficou meio estranho e acabou parecendo simplesmente grotesco, porque os
palhaços não paravam de sair: seis, oito, dez, vinte, grandes, pequenos, eles simplesmente não
paravam de sair do carro, como se fosse um caixote mágico de palhaços pré-fabricados. Mesmo
com 13 anos, Brian ficou embasbacado com o número, certo de que tinha que haver algum truque,
provavelmente um alçapão escondido debaixo da serragem sob o carro, mas isso não importava
porque o número em si era hipnotizante.
Aquele mesmo fenômeno — ou pelo menos uma cópia perversa dele — estava se
desenrolando agora diante de seus olhos, numa avenida urbana nos rincões do centro de Atlanta. Por
um instante, Brian fica olhando quieto e boquiaberto, tentando transformar aquele espetáculo
grotesco em palavras.
— Vamos voltar, Philip. — A voz de Brian soa oca e esganiçada até para os próprios
ouvidos, enquanto ele olha as inúmeras colunas de mortos-vivos se erguendo em todas as esquinas à
sua frente. Se a horda que eles encontraram havia pouco, ao chegar à cidade, era um regimento do
exército romano, aquilo ali... era o império todo.
Até onde a vista alcançava, pelo estreito canal formado pelas quatro pistas da avenida, os
mortos-vivos emergem dos prédios, de trás de carros, do meio dos destroços, das sombras das
ruelas, das vitrines quebradas, dos pórticos de mármore dos prédios públicos, das árvores de
decoração e do que sobrou dos cafés de rua. Dá para vê-los até a linha do horizonte, onde o ponto
em que a rua desaparecia se misturava com as sombras dos arranha-céus, as silhuetas esfarrapadas
surgindo como um enxame de insetos de movimentos lentos, acordados da escuridão de uma pedra
caída. A quantidade de mortos-vivos desafiava a lógica.
— Nós temos que sair daqui — diz Nick, a voz enferrujada agora com um tom esganiçado.
Philip, estoico e calado, está com os dedos agarrados ao volante.
Nick olha nervoso por cima do ombro.
— A gente tem que voltar.
— Ele tem razão, Philip — diz Brian, pousando a mão suavemente no ombro de Penny.
— Qual é o problema? O que você está fazendo? — Nick olha para Philip. — Por que não
dá meia-volta?
Brian olha para a parte de trás da cabeça do irmão.
— São muitos, Philip. Há muitos deles. São muitos.
— Meu Deus do céu, a gente tá fodido... fodido — fala Nick, estarrecido pela visão
escabrosa que se forma no caminho deles. Os mais próximos estão a cerca de meio quarteirão, como
a ponta de um tsunami. Parecem funcionários de escritório de ambos os sexos, ainda vestidos com a
roupa de trabalho que parece rasgada, puída e mergulhada na graxa... e se arrastam daquele jeito,
como sonâmbulos rosnantes.
Atrás deles, e por muitos quarteirões, inúmeros outros perambulam pelas calçadas e no meio
da rua. Se existe “hora do rush” no inferno, não deve chegar nem aos pés daquilo. Pela ventilação
do Escalade e pelas janelas, a sinfonia desafinada de cem mil gemidos causa um calafrio na nuca de
Brian e ele se inclina para a frente e dá um tapinha no ombro do irmão.
— A cidade está perdida, Philip.
— É isso mesmo. Ele tem razão. Este lugar já era. A gente tem que voltar — balbucia Nick.
— Só um instante. — A voz de Philip está fria como o gelo. — Segura aí.
— Vamos lá, Philip — diz Brian. — A cidade agora é deles.
— Eu mandei segurar aí.
Brian olha fixamente para a nuca do irmão e um calafrio percorre sua espinha. Ele percebe
que o que Philip quer dizer com segura aí não é “segura aí um instantinho que eu preciso pensar um
pouco” ou “segura aí um instantinho para ver se eu tenho uma ideia”.
O que Philip Blake quer dizer com segura aí é...
— Todo mundo está com cinto de segurança? — A pergunta é retórica, o que deixa a pele de
Brian totalmente gelada.
— Philip, você não vai...
Philip enfia o pé no pedal e o Escalade mostra as garras. Ele arremete o carro direto na
direção da horda, interrompendo os comentários de Brian e fazendo todos grudarem nos bancos.
— PHILLY, NÃO!
O grito de Nick acaba sendo diluído por uma saraivada de baques surdos, como o bater de
um gigantesco tambor das selvas, enquanto o Escalade sobe na calçada e atropela mais de trinta
zumbis.
Tecidos e líquidos escorrem pelo carro.
Brian está tão fora de si que se joga no chão e se junta a Penny naquele lugar que ela chama
de longe.
Os menores são destruídos como patos num estande de tiro, explodindo debaixo das rodas e
deixando uma trilha de vísceras podres. Os maiores são atirados ao longe pelo para-choque e voam
pelos ares, batendo nas laterais dos prédios e se desfazendo como frutas maduras.
Os mortos parecem não ter a menor capacidade de aprendizagem. Até uma mariposa voa
para longe quando chega perto demais de uma chama. Mas a imensa sociedade de cadáveres
ambulantes de Atlanta aparentemente não tem a menor ideia de por que não consegue comer aquele
carro preto reluzente que rosna para eles — o mesmo trovão metálico que, instantes atrás,
transformou seus companheiros zumbis numa poça de sangue —, de modo que continua se
aproximando.
Debruçado sobre o volante, dentes trincados, os dedos completamente brancos, Philip usa os
limpadores de para-brisa, com jatos periódicos de solução detergente, para manter o vidro da frente
suficientemente limpo enquanto vai abrindo caminho para o norte, arremetendo as quatro toneladas
de ferro de Detroit por aquele mar revolto de zumbis. Com a velocidade variando entre 50 e 80
km/h, ele vai abrindo caminho em direção ao centro da cidade.
Às vezes, está literalmente cortando a multidão, tão densa que parece que abre uma trilha em
uma floresta espessa de frutas de sangue — os braços decepados e os dedos curvados como galhos
de árvores agarrando-se às janelas laterais, enquanto o Escalade avança em meio àqueles
excrementos ambulantes. Outras vezes, o carro atravessa breves trechos de ruas limpas, com uns
poucos zumbis se arrastando numa calçada ou no meio-fio, e isso dá a oportunidade para Philip
acelerar e jogar o carro um pouco para a direita para atingir mais alguns, e depois à esquerda para
matar outros, aí ele tem que enfrentar mais um grupo que bloqueia a rua inteira e essa
provavelmente é a parte mais divertida, porque é aí que a merda toda literalmente voa.
É quase como se as vísceras estivessem caindo do céu, como chuva, em vez de estarem
subindo por debaixo das rodas, ou escorrendo pela lataria, ou esguichando da grade frontal,
enquanto o Escalade vai triturando os corpos. A matéria líquida se esparrama pelos vidros,
ininterruptamente, com o ritmo de um gigantesco cata-vento, um caleidoscópio colorido, um
arco-íris de tecidos humanos — vermelho-sangue-de-boi, verde-lodo-de-lago, amarelo-ocre e
preto-piche. Para Philip, é quase lindo.
O carro ruge ao dobrar uma esquina e arremete contra mais uma horda de zumbis que vem
pela rua.
O mais estranho é a repetição contínua do espocar de tecidos e órgãos semelhantes — alguns
reconhecíveis, outros nem tanto. Entranhas voam em todas as direções, esparramando-se sobre o
para-brisa e escorrendo pelo capô. Pequenos pedaços de dentes periodicamente se acumulam nos
limpadores de para-brisa e uma outra coisa, uma coisa cor-de-rosa, como as pequenas pérolas das
ovas de peixe, é pescada pelo capô.
Philip encara um rosto morto depois do outro, todos passando num flash pela janela — num
momento estão visíveis, no outro já se foram — e agora ele está em outra dimensão, outro lugar que
não aquele utilitário, não atrás do volante, mas dentro da horda, dentro da cidade dos zumbis,
abatendo fileiras deles, devorando aqueles filhos da puta. Philip é o pior monstro de todos, e vai
atravessar aquele oceano de merda, mesmo que tenha que destruir o mundo inteiro.
Brian percebe o que está acontecendo sem precisar sequer olhar. Dez minutos excruciantes
depois de começarem a arremeter contra o mar de zumbis, depois de avançar por quase 23
quarteirões, o Escalade começa a derrapar e a girar.
A força centrípeta prende Brian no chão e ele ergue a cabeça, para olhar por cima do banco,
na hora que o utilitário derrapa de lado sobre os fluidos de 50 mil cadáveres. Ele não tem tempo de
gritar ou fazer nada a respeito. Só pode aguentar firme e segurar Penny contra o banco, à espera do
impacto inevitável.
Com as rodas totalmente escorregadias com tanta gosma, o carro gira 360 graus, com a
traseira moendo os últimos cadáveres que ainda estão perdidos por ali. A cidade vira um borrão do
lado de fora da janela e Philip luta com o volante, tenta endireitá-lo, mas os pneus estão
aquaplanando sobre uma camada de intestinos, sangue e outros dejetos.
Brian solta um grito estrangulado — em parte de alerta, em parte só um ganido inarticulado
—, enquanto o carro desliza na direção de uma fileira de lojas.
Nos angustiantes momentos antes da batida, Brian vê uma série de vitrines de lojas
alquebradas: bustos sem chapéu de manequins carecas, mostradores de joalherias vazios, fios
rasgados saindo de assoalhos soltos, tudo borrado por trás das vitrines destruídas. O que fica é uma
vaga impressão de tudo isso, já que a visão de Brian é distorcida pelo rodopio violento do carro.
E então a lateral direita do Escalade colide com uma das vitrines.
A batida deixa em Brian aquela sensação de que o tempo parou. A vidraça se esfacela, o
barulho do vidro quebrado é igual ao de uma onda batendo num quebra-mar, enquanto o Escalade
arromba as grades antirroubo e entra de lado nas escuras sombras do Centro Goldberg de Joias de
Atlanta.
Balcões e mostruários explodem em todas as direções, uma chuva reluzente e prateada de
entulho, enquanto a força gravitacional atira todos os passageiros para a direita. Os airbags do
Escalade vão se abrindo com pequenas explosões — grandes e pesados balões de nylon que enchem
o interior do carro, antes que ele seja totalmente destruído — e Nick é jogado de lado contra o
tecido branco. Philip é lançado para cima de Nick enquanto Penny desliza pelo chão do banco
traseiro na direção de Brian.
O utilitário segue derrapando de lado de dentro da loja vazia por uma eternidade.
E finalmente para depois de bater com força numa pilastra bem no meio da loja, jogando
todo mundo contra a parede de airbags. Por alguns momentos, ninguém se mexe.
Entulhos brancos como plumas chovem no ar escuro e empoeirado da joalheria e o barulho
de alguma coisa caindo atrás deles interrompe o breve silêncio. Brian olha pelo vidro traseiro
quebrado e vê a frente da loja, com uma pilha de traves e vigas caídas bloqueando o buraco da
janela e uma nuvem de poeira atrapalhando a visão da rua.
Philip está se revirando no banco, o rosto todo cinza e consumido pelo pânico.
— Querida? Queridinha? Você está bem? Fala comigo, filhinha! Você está bem?
Brian olha para a menina, que ainda está no chão, meio zonza e talvez em estado de choque,
mas fora isso sem ferimentos.
— Ela está bem, Philip. Ela está bem — diz Brian, apalpando a nuca da menina à procura de
um sinal de sangue ou de algum ferimento. Mas aparenta estar bem.
— E o resto de vocês, tudo bem? — Philip olha em volta das nuvens de poeira, naquele
interior escuro. Um pequeno raio de sol que entra pela loja é a única fonte de luz. Na penumbra,
Brian pode ver as fisionomias dos outros dois homens: suadas, paralisadas de terror, os olhos
brilhando.
Nick levanta o polegar.
— Eu estou bem.
Brian também diz que está bem.
Philip já abriu a porta do motorista e está lutando para se desvencilhar do airbag.
— Peguem tudo o que der para carregar — grita ele —, principalmente todas as armas e
munições. Entenderam?
Sim, eles entenderam, e agora Brian e Nick estão saindo do utilitário. Durante o próximo
minuto, Brian faz uma série de observações — a maioria, aparentemente, já calculada por Philip —,
começando pela frente da loja.
A julgar pelo coral de gemidos e de milhares de passos se arrastando, parece mais do que
claro para Brian que a horda de zumbis está cercando o local do acidente. O Escalade está acabado,
a frente totalmente destruída, os pneus furados e a lataria inteira lambuzada de entranhas.
Os fundos da loja vão dar num corredor. Estreito, escuro e constituído de placas de gesso,
ele pode ou não levar a uma saída. Não há tempo para investigar. Tudo o que têm a fazer é pegar as
coisas, as mochilas e as armas. Ainda zonzos pela batida, tontos de pânico, totalmente esfolados, os
ouvidos zunindo, Brian e Nick pegam uma espingarda cada um e Philip pega o máximo de armas
brancas que consegue armazenar no corpo, uma machadinha em cada lado do cinto, a Ruger e mais
três cartuchos extras.
— Vamos lá, menina. A gente tem que fugir — diz Brian para Penny, mas a menina parece
letárgica e confusa. Ele tenta tirá-la do interior destruído do carro, mas ela ainda se agarra ao banco
de trás.
— Leva ela no colo — diz Philip, que deu a volta pela frente do utilitário.
— Vamos lá, bonitinha. Você pode vir de cavalinho — diz Brian para ela.
Relutante, Penny salta do carro e Brian a coloca nas costas.
Rapidamente, os quatro escapam pelo corredor dos fundos da joalheria.
Estão com sorte. Logo depois da porta de vidro de uma salinha nos fundos, eles encontram
uma discreta porta de aço. Philip a destranca, entreabre alguns centímetros e olha do outro lado. O
cheiro é inacreditável: um ranço de gordura enegrecida, que faz Brian se lembrar da excursão que
fez no sexto ano ao matadouro Turner, perto de Ashburn. O cheiro no chão do abatedouro era igual
àquele. Philip ergue a mão, fazendo sinal para todo mundo parar.
Sobre o ombro de Philip, Brian pode ver um corredor longo, escuro e estreito, cheio de
caminhões de lixo entulhados até não poder mais. Mas é o conteúdo das caçambas que fica marcado
com mais força no cérebro de Brian: braços humanos pálidos pendurados nas laterais, pernas
ulcerosas estraçalhadas, mechas de cabelo penduradas e poças de sangue velho e coagulado
embaixo dos caminhões.
Philip faz sinal para os outros.
— Todo mundo atrás de mim, e tratem de fazer exatamente o que eu mandar — ordena,
enquanto destrava o mecanismo de segurança da Ruger (oito cartuchos .22 prontos para entrar em
ação) e vai em frente.
Os outros o seguem.
O mais rápido e o mais silenciosamente possível, caminham no meio das sombras e do fedor
de um beco que mais parece um matadouro abandonado, na direção de uma rua lateral visível de
uma das saídas do beco. Sobrecarregado pelo peso da mochila no ombro e da menina às suas costas,
Brian manca entre Philip e Nick — os 30 quilos de Penny nunca pesaram tanto quanto agora. Nick,
que vem cobrindo a retaguarda, carrega a Marlin calibre .20 nos braços. Brian tem uma pistola só
dele alojada abaixo da mochila, mesmo que não tenha a menor ideia de como usar aquela coisa.
Eles chegam ao fim do beco e estão prestes a entrar na rua lateral completamente deserta
quando Philip, sem querer, pisa na mão de alguém que desponta de debaixo de uma lata de lixo.
A mão — ligada a um zumbi cuja bateria não foi inteiramente gasta — imediatamente se
recolhe para baixo do contêiner. Philip leva um susto e recua um passo.
— CARA! — grita Nick, quando a mão volta a sair do lixo e agarra o tornozelo de Philip.
Philip cai no chão, a Ruger sai rodopiando pelo asfalto.
O morto-vivo — um mendigo barbado e de rosto cinzento, vestindo trapos ensanguentados
— engatinha na direção de Philip com a agilidade de uma aranha gigante.
Philip rasteja até onde está a arma. Os outros tentam sacar as suas, Brian tentando encontrar
a pistola ao mesmo tempo em que procura equilibrar a menina que leva nas costas. Nick engatilha o
cano da Marlin.
O morto-vivo agarra a perna de Philip e abre a mandíbula com o barulho mortal de uma
dobradiça enferrujada, enquanto Philip tenta sacar a machadinha.
O zumbi está prestes a morder um pedaço da panturrilha de Philip quando o cano da
espingarda de Nick encosta na base do crânio do monstro.
A explosão atravessa o cérebro do zumbi, mandando metade do rosto dele pelas alturas, num
esguicho de sangue e massa encefálica, o eco da espingarda reverberando pelo desfiladeiro de vidro
e de aço.
— Agora é que a gente se fodeu — afirma Philip, se levantando com dificuldade e pegando
a Ruger.
— Qual é o problema? — pergunta Brian, ajustando o peso da menina nas costas.
— Ouve só.
No frágil silêncio, eles escutam a onda de gemidos se modificar de repente, alterando o
rumo como se fosse uma mudança de vento, as massas de zumbis atraídas pela explosão da
espingarda.
— Então, a gente tem que voltar para a loja — grita Nick, numa voz tensa e estridente. — A
joalheria tem que ter um segundo andar.
— Tarde demais — diz Philip, conferindo a Ruger e olhando a culatra. Ele tem quatro balas
de ponta oca na agulha e três cartuchos com oito balas cada um nos bolsos de trás. — Aposto que
eles já inundaram a loja.
— Então, o que você sugere?
Philip olha para Nick e para o irmão.
— Com que velocidade você acha que pode correr com esse peso todo?
*
Eles seguem num ritmo moderado, com Philip à frente, Brian capengando atrás dele e Nick
fechando a retaguarda, passando por vitrines destruídas e petrificadas e pilhas de corpos humanos
destroçados, queimados pelos poucos sobreviventes que restaram.
Brian não tem muita certeza, mas parece que Philip está desesperadamente procurando uma
saída segura numa das ruas — um vão livre, uma escada de incêndio, qualquer coisa —, mas acaba
se desconcentrando por causa de um número cada vez maior de zumbis ambulantes que parecem
estar em cada esquina.
Philip estoura o primeiro espécime, que está a uns cinquenta passos de distância, mandando
um projétil bem no meio da testa do zumbi, que desaba como um temporal. O segundo o surpreende
a uma distância menor, saindo de um portal escuro, e Philip o abate com o segundo tiro. Mais
zumbis vão se materializando das varandas e das vitrines estilhaçadas. Nick faz bom uso do rifle e
de vinte anos de experiência caçando javalis para matar pelo menos uma dúzia deles, em dois
quarteirões.
Os tiros ecoam no céu como trovões supersônicos na estratosfera.
Eles dobram uma esquina e correm por uma rua menor de tijolos, talvez um marco do
período pré-Guerra Civil, por onde um dia passaram cavalos e carruagens, mas agora ladeada por
condomínios e escritórios lacrados com tábuas. A boa notícia é que eles parecem estar se afastando
da região mais congestionada, encontrando menos mortos-vivos a cada quarteirão.
A má notícia é que agora estão encurralados. Sentem a cidade se fechar em volta deles,
engolindo-os completamente numa garganta de aço e de vidro. A essa altura, o sol já começa a se
por e as sombras lançadas pelos enormes arranha-céus começam a se alongar.
Philip vê alguma coisa no horizonte — talvez a uma quadra e meia dali — e instintivamente
se abaixa sob os destroços de um toldo rasgado.
Os outros se agacham com ele junto à janela tapada de uma antiga lavanderia e se escondem
nas sombras para recuperar o fôlego.
Brian está ofegante de tão cansado, enquanto Penny se agarra sonolentamente às suas costas,
como um macaco traumatizado.
— O que é? Qual é o problema? — pergunta Brian, percebendo que Philip está esticando o
pescoço, tentando ver alguma coisa a distância.
— Me diz que eu estou vendo coisas — replica Philip.
— O quê?
— O edifício cinza ali à direita — continua Philip, apontando para o norte. — Está vendo? A
umas duas quadras daqui? Está vendo a porta?
A distância, um prédio de apartamentos de três andares se sobressai numa fila de edifícios de
dois andares em ruínas. É uma imensa pilha de tijolos brancos e de varandas do período do
pós-Guerra; o maior edifício do quarteirão, e seu topo se ergue além das sombras, refletindo o sol
frio e pálido com o amontoado de antenas e exaustores.
— Meu Deus do céu. Estou vendo, sim — murmura Brian, ajoelhando e equilibrando Penny
nas costas doloridas. A menina se agarra forte aos ombros dele, desesperada.
— Não é miragem, Philly — comenta Nick, com um traço de admiração na voz.
Todos olham fixamente para um vulto humano no horizonte, longe demais para saber se é
homem ou mulher, adulto ou criança, mas lá está... acenando para eles.