Capitulo 13 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


Philip abre a porta com um pontapé. Velas acesas caíram no chão. O tapete queima em
alguns lugares. O ar esfumaçado vibra com os gritos. Um borrão de movimentos pincela a escuridão
e passam-se alguns nanossegundos resfolegantes até que Philip se dê conta do que está vendo em
meio às sombras trêmulas.
A mesa de cabeceira virou — a fonte do barulho de algo se quebrando — e foi parar a
centímetros de Tara, que está no chão, rastejando com um instinto animal, tentando
desesperadamente se livrar dos dedos mortos agarrados às pernas dela.
Dedos mortos?
No início, e só por um instante, Philip imagina que alguma coisa entrou pela janela, mas
então ele vê a forma murcha de David Chalmers — completamente transformado — no chão, em
cima das pernas de Tara, enfiando as unhas amareladas no corpo dela. O rosto cadavérico do velho
agora está lívido, da cor de limo, os olhos cobertos pelo branco cor de gelo da catarata. Ele solta um
grunhido cavernoso, vindo da garganta.
Tara consegue se livrar e pôr-se de pé, então se atira de lado contra a parede.
Nessa hora, várias coisas acontecem ao mesmo tempo: Philip se dá conta do que está
ocorrendo e também de que deixou a arma na cozinha, e que ele tem pouquíssimo tempo para
acabar com a ameaça.
Este é o ponto: o simpático tocador de bandolim já não existe mais, e isso que está à frente
dele, esse amontoado de tecidos mortos se levantando e dando um uivo longo, estrangulado e cheio
de baba, é uma ameaça. Mais do que as chamas correndo pelo tapete, mais do que a fumaça — que
já está formando uma névoa perigosa no quarto —, aquela coisa que se materializou no santuário
deles é a maior ameaça no momento.
Uma ameaça a todos na casa.
No mesmo instante, antes que Philip tenha sequer uma chance de se mexer, os outros
também chegam, se amontoando na entrada do quarto. April solta um grito angustiado — não
exatamente alto, mais um gritinho de dor, como um animal recebendo um tiro fatal. Ela tenta
empurrar os outros e entrar no quarto, mas Brian a segura. April se debate nos braços dele.
Tudo isso acontece em menos de um segundo, na hora em que Philip vê o taco.
No meio de toda a comoção da noite anterior, April havia deixado o taco de aço autografado
por Hank Aaron no cantinho ao lado da janela. E agora ele está ali, brilhando à luz das labaredas, a
uns 5 metros de Philip. Não dá tempo de calcular a distância, nem de mapear a manobra na cabeça.
Tudo o que ele tem tempo para fazer é avançar pelo quarto.
A essa altura, Nick já se virou e saiu correndo pelo apartamento, atrás da arma. Brian tenta
tirar April do quarto, mas ela é forte, está desesperada e já está gritando.
Philip só precisa de uns poucos segundos para cobrir a distância entre a porta e o taco.
Mesmo assim, nesse exíguo espaço de tempo, aquela coisa que outro dia fora David Chalmers
avança para cima de Tara. Antes que a mulher robusta consiga cair na real e fugir, o morto-vivo já
está em cima dela.
Os dedos frios e cinzentos apertam meio que sem jeito a garganta dela. Tara se debate com
as costas na parede, tentando se esquivar, tentando empurrar aquela coisa. As mandíbulas podres se
abrem e bafejam o hálito fétido no rosto dela. Dentes pretos preparam o bote. A coisa avança na
direção da curva pálida e carnuda da jugular.
Tara dá um gritinho de horror, mas antes que os dentes tenham uma chance de entrar em
contato com a pele, o taco desce.
Até aquele momento — especialmente para Philip —, o ato de acabar com um morto-vivo
tinha se tornado uma ação quase banal, tão mecânica e obrigatória como amarrar um porco para o
abate. Mas aquela situação pareceu totalmente diferente. Foram precisos apenas três golpes firmes.
O primeiro — um golpe duro na região temporal anterior do crânio de David Chalmers —
faz o zumbi paralisar e evita que ele continue o ataque ao pescoço de Tara. Ela desliza para o chão,
numa mistura de lágrimas e muco.
O segundo golpe atinge a lateral do crânio, agora que a coisa, involuntariamente, se volta
contra quem a ataca, e o aço temperado do taco arrebenta o osso parietal e parte da cavidade nasal,
liberando esguichos de matéria cor-de-rosa no ar.
O último e derradeiro golpe destrói todo o hemisfério esquerdo da cabeça, na hora em que o
troço está caindo — e o som é como o de uma cabeça de repolho sendo esmagada por uma prensa.
O monstro em que David Chalmers se transformou aterrissa todo molhado em cima de uma das
velas derrubadas, com fios de baba, sangue e matéria cinzenta pegajosa atingindo as chamas e
chamuscando no chão.
Philip se ergue acima do corpo, sem fôlego, as mãos ainda segurando o taco. Quase que
como uma pontuação sonora para aquele horror, um bipe agudo começa a soar. Alarmes de incêndio
movidos a bateria em todo o primeiro andar estão estrilando e Philip precisa de um segundo para
identificar que som é aquele nos ouvidos. Ele solta o taco ensanguentado.
E é aí que ele percebe a diferença. Dessa vez, depois desse extermínio, ninguém se mexe.
April fica olhando da porta. Brian solta o braço dela, também embasbacado. Até Tara, apoiada na
parede do outro lado do quarto, acometida por lágrimas de repulsa e agonia, fica num estado quase
catatônico.
O estranho é que, em vez de estarem olhando para aquele monte de sangue no chão, todos
olham fixamente para Philip.
Finalmente, eles apagam todos os focos de incêndio e arrumam o quarto. Embrulham o
corpo e o transferem para o corredor, onde vai ficar seguro até o enterro.
Felizmente, Penny viu muito pouco da cena no quarto. Mas ela ouviu o suficiente para
fazê-la se retrair ainda mais em sua concha muda e invisível.
Aliás, por bastante tempo, ninguém tem muito o que dizer também e aquele silêncio
desagradável se prolonga por todo o restante do dia.
As irmãs parecem estar em algum tipo de estado de choque, apenas limpando tudo
mecanicamente, sem falar uma com a outra. As duas choraram até não poder mais. Mas continuam
encarando Philip. Ele quase pode sentir, como dedos frios na nuca. Mas o que elas esperavam? O
que elas queriam que ele fizesse? Deixar o monstro comer Tara? Queriam que Philip tentasse
negociar com aquela coisa?
Ao meio-dia do dia seguinte, eles fazem um funeral improvisado, numa parte do quintal
protegida por uma cerca de segurança. Philip fez questão de cavar a cova pessoalmente, recusando
até mesmo a ajuda de Nick. Isso tomou várias horas. A argila da Geórgia é resistente nessa parte do
estado. No meio da tarde, Philip está ensopado de suor e pronto.
As garotas cantam a música favorita de David — “Will the Circle Be Unbroken” — à beira
do caixão, o que leva Nick e Brian às lágrimas. O som é de partir o coração, especialmente
conforme se eleva ao céu azul e se mistura com o onipresente coral de grunhidos que vem do outro
lado da cerca.
Mais tarde, todos se sentam na sala, dividindo as bebidas que pegaram de um dos
apartamentos (e que guardaram para sabe lá Deus que ocasião). As irmãs contam histórias do pai, da
infância dele, do início da carreira na Barstow Bluegrass Boys Band e do tempo em que ele foi DJ
da rádio WBLR, em Macon. Falam da personalidade dele, da generosidade, de como era
mulherengo e da devoção a Jesus Cristo.
Philip deixa-as falar e fica só escutando. É bom voltar a ouvir a voz delas de novo, e a
tensão do dia parece estar arrefecendo um pouco. Talvez tudo isso seja parte do processo de se
despedir do pai, ou talvez elas só precisem de um tempo para se acostumar.
Mais tarde naquela noite, Philip está sozinho na cozinha, enchendo o copo com os últimos
dedos de uísque de malte moído, quando April entra.
— Olha... Eu queria falar com você... sobre tudo o que aconteceu...
— Esquece — responde Philip, olhando para o líquido caramelo no copo.
— Não. Eu devia ter falado alguma coisa antes, mas acho que estava numa espécie de
choque.
Ele olha para ela.
— Eu lamento que tenha sido daquele jeito. Lamento mesmo. E sinto muito por você ter
visto.
— Você fez o que tinha que ser feito.
— Obrigado por dizer isso. — Philip acaricia o ombro dela. — Eu simpatizei com seu pai
desde o começo. Era uma figura. Viveu uma vida boa e longa.
Ela morde a bochecha por dentro e Philip pode ver que está lutando para não chorar.
— Eu achei que estivesse preparada para a perda dele.
— Ninguém está.
— É, mas desse jeito... Ainda estou tentando digerir tudo.
Philip assente.
— É mesmo muito desagradável.
— Quer dizer... a gente não tem... ninguém tem um ponto de referência para uma merda
dessas.
— Eu entendo o que você quer dizer.
Ela olha para as mãos, que estão trêmulas. Talvez a lembrança de Philip arrebentando a
cabeça do pai ainda esteja presente.
— Eu acho que tudo o que eu queria dizer é que... eu não culpo você pelo que fez.
— Muito obrigado.
Ela olha para a bebida.
— Será que tem mais um pouco daquele vinho barato?
Ele ainda encontra um pouco numa garrafa e serve para ela. Passam um bom tempo bebendo
em silêncio. Finalmente, Philip diz: — E sua irmã?
— O que tem ela?
— Ela não me parece... — Ele deixa a frase no ar, sem saber exatamente que palavras usar.
April concorda.
— ... capaz de perdoar?
— Algo assim.
April dá a ele um sorriso amargo.
— Ela ainda me culpa por ter roubado o dinheiro do almoço dela, no Ensino Fundamental
em Clark’s Hill.
Nos dias seguintes, aquela nova mistura de famílias se solidifica, à medida que as irmãs
Chalmers passam pelo processo de luto, às vezes brigando por qualquer coisinha, às vezes se
calando diante de todos, às vezes se enfurnando no quarto por longos períodos de choro e
desolação.
April parece estar lidando com a transição melhor do que a irmã. Ela tira as coisas do pai e
passa para o quarto principal, dando a Philip o quarto que anteriormente lhe pertencera. Philip
prepara um lugarzinho agradável para Penny, com prateleiras e alguns livros de desenho que ele
encontrou no andar de cima.
A menina está se apegando a April. Elas passam várias horas juntas, explorando os andares
de cima, jogando e dando um jeito de transformar as magras provisões em criativos jantares
cozinhados nas chamas do álcool em gel, como carne seca cheia de nervos, caçarola de pêssego e
passas e uma surpresa de vegetais em lata (a surpresa sendo, infelizmente, mais um pouco de carne
seca).
Gradativamente, as hordas de mortos-vivos vão se afastando da vizinhança, deixando para
trás só uns poucos retardatários, o que dá aos Blake e a Nick a chance de testar os limites de suas
missões de reconhecimento até os edifícios mais próximos. Philip percebe que Brian está ficando
mais ousado, disposto a se aventurar de vez em quando para fora do prédio, em rápidas expedições.
Mas é Nick quem realmente parece estar gostando do lugar.
Nick se instala sozinho num apartamento conjugado no segundo andar (o 2F), no extremo
leste do corredor. Ele encontra livros e revistas nos outros apartamentos e arrasta mais alguns
móveis para o seu flat. Passa um tempo na varanda, desenhando as ruas vizinhas num papel,
mapeando a vizinhança e pensando bastante no que aconteceu com a raça humana.
Ele também termina a passarela improvisada entre os dois prédios vizinhos.
A estreita ponte é feita de compensado e escadas unidos com corda e fita isolante (além de
muitas orações). A passarela parte dos fundos do edifício, cobre os 8 metros de uma viela e se liga
ao alto de uma escada de incêndio no terraço mais próximo.
A conclusão da passarela representa uma virada para Nick. Juntando toda sua coragem, um
dia ele vai se equilibrando na estrutura absolutamente precária e, exatamente como previsto,
consegue chegar até a esquina sudeste do quarteirão sem precisar colocar os pés no chão. De lá, ele
vê que dá para passar pela passarela normal de pedestres até a loja de departamentos. Quando volta
à noite com um monte de mantimentos da Dillard’s, a casa o recebe como um herói de guerra.
Ele leva nozes e balas de qualidade, roupas quentes, sapatos novos e material de escritório
chique, canetas caras, um fogareiro desmontável, lençóis de cetim e de 300 fios e até uns bichinhos
de pelúcia para Penny. Até Tara fica um pouco menos rabugenta ao ver cigarros europeus
embrulhados em plástico. E Nick está fazendo mais uma coisa nesses voos solos — uma coisa que,
no início, ele guarda só para si.
No aniversário de uma semana da morte de David Chalmers, Nick convence Philip a
acompanhá-lo numa missão de reconhecimento, para poder revelar ao amigo o que vinha fazendo.
Philip não fica particularmente empolgado em atravessar a ponte feita de escadas — diz que tem
medo de se quebrar com o peso dele, mas do que Philip realmente tem medo é de altura. Nick o
convence, apelando para a curiosidade.
— Você tem que ver isso, Philly — atiça ele, no terraço. — Toda essa região é uma
verdadeira mina de ouro, cara. Eu te juro que é perfeita.
Com enorme relutância, Philip toma coragem e se obriga a atravessar a ponte, engatinhando
atrás de Nick, reclamando o tempo todo — e totalmente apavorado por dentro. Ele não se atreve a
olhar para baixo.
Eles chegam ao outro lado, descem pela escada de incêndio e então entram no edifício
vizinho por uma janela aberta.
Nick conduz Philip pelos corredores desertos de um escritório de contabilidade, os chãos
cheios de formulários e documentos esquecidos e muitas folhas caídas.
— Estamos quase chegando — diz Nick, conduzindo Philip por uma escada e por um salão
desolado, cheio de móveis revirados.
Philip está mais do que atento aos ecos dos passos, pisando em cima dos escombros. Ele
sente todos os pontos cegos e espaços vazios com o plexo solar e ouve cada estalo e cada tique
como se alguma coisa pudesse saltar para cima deles a qualquer momento. A mão permanece no
cabo da pistola calibre .22, aninhada nas calças jeans.
— É logo ali, ao lado da garagem — diz Nick, apontando para uma alcova nos fundos do
salão principal.
Depois de uma esquina e passando por uma máquina de comida virada, sobem um pequeno
lance de escadas. Depois, passam por uma porta de aço comum e, quase sem aviso prévio, um
mundo inteiro se abre para Philip.
— Minha mãe do céu — maravilha-se Philip, enquanto segue atrás de Nick pela passarela.
Ela é suja, tem lixo espalhado, cheiro de urina e o blindex grosso e reforçado está tão cheio de
imundície que chega a distorcer a paisagem que os cerca. Mas a vista é espetacular. A passarela é
bem iluminada e a sensação é que dá para se ver a quilômetros de distância.
Nick também para.
— Legal, né?
— Cara, é legal para cacete! — Dez metros acima da rua, com o vento batendo na armação,
Philip pode olhar para baixo e ver alguns zumbis perambulando por ali, como peixes exóticos vistos
pelo chão de um navio de vidro. — Se não fosse por esses filhos da puta, eu mostraria isso aqui a
Penny.
— E o que eu queria te mostrar é aquilo. — Nick vai até o extremo sul da passarela. — Está
vendo aquele ônibus? A mais ou menos meia quadra daqui?
Philip vê um enorme ônibus prateado da Rede Metropolitana de Transportes de Atlanta, no
meio-fio.
— Olha em cima da porta da frente do ônibus, do lado do espelho, à direita. Está vendo
aquela marca? — diz Nick.
Com certeza, Philip pode ver um símbolo feito à mão em cima da entrada dos passageiros:
uma estrela de cinco pontas rabiscada rapidamente com colorjet vermelho.
— E isso que eu estou vendo é o quê?
— Uma zona de segurança.
— Uma o quê?
— Eu fiquei indo e vindo entre aquela rua e esta daqui — conta Nick, com o orgulho
inocente de um garoto que mostra ao pai um brinquedo que ele mesmo fez. — Tem uma barbearia
ali, limpinha, segura como um banco, e a porta está destrancada. — Aponta mais para o fim da rua.
— Tem uma espécie de semirreboque ali parado, em bom estado, com uma bela e forte... como é
que se chama mesmo?... porta de sanfona?... nos fundos.
— E o que tudo isso significa, Nicky?
— São zonas de segurança. Lugares em que você pode se esconder. Se estiver buscando
mantimentos e se encontrar em apuros, ou alguma coisa desse tipo. Eu encontro essas zonas cada
vez mais longe na rua. Colocando marcas para não as perder depois. Eu encontrei todo tipo de
esconderijo, você não vai acreditar.
Philip olha para ele.
— E você foi seguindo até o fim daquela rua sozinho?
— É. Sabe como é...
— Porra, Nick, você não devia vir até aqui sem ter ninguém na retaguarda.
— Philly...
— Não, não... Não vem com essa de “Philly” para cima de mim. Eu estou falando sério.
Você tem que tomar mais cuidado. Está me entendendo? Estou falando sério.
— Tudo bem, tudo bem. Você tem razão. — Nick dá um tapinha simpático no braço de
Philip. — Eu vou me lembrar disso.
— Ainda bem.
— Mas você tem que admitir que isso tudo é o máximo. Considerando o tipo de situação em
que a gente está.
Philip dá de ombros, olhando para baixo pelo vidro imundo e vendo os peixes carnívoros
circulando.
— É. Acho que sim.
— Podia ser bem pior, Philly. Nós não estamos num edifício alto. É plano o suficiente para
ver tudo o que está em volta. Tem bastante espaço para a gente se espalhar pelo edifício, um monte
de lojas perto. Eu acho até que a gente pode encontrar um gerador num lugar desses, talvez até fazer
ligação direta num carro para levá-lo até o prédio. Eu acho que a gente pode ficar por aqui, Philly...
sei lá... por muito tempo. — Nick pensa um pouco mais. — Eu diria até... indefinidamente.
Philip olha pelo vidro imundo para aquela necrópole de edifícios vazios e para os monstros
esfarrapados entrando e saindo de vista.
— Atualmente, tudo é indefinido, Nicky.
Naquela noite, Brian volta a tossir. O tempo está ficando mais frio e mais úmido a cada dia
que passa e cobrando caro do sistema imunológico dele. Depois que escurece, a temperatura no
apartamento parece congelar. De manhã, fica um verdadeiro frigorífico e o chão lembra uma pista
de patinação nas solas dos pés cobertos de meias de Brian. Ele passou a usar três suéteres e um
cachecol de lã que Nick arranjou na Dillard’s. Com as luvas sem dedos, a cabeleira revolta e os
olhos vazios de Edgar Allan Poe, Brian está começando a se parecer com um pobretão de um
romance de Charles Dickens.
— Acho que este lugar é muito bom para Penny — comenta Brian com Philip naquela noite,
na varanda do segundo andar. Os irmãos tomam uma bebida depois do jantar (mais vinho barato) e
olham para os desolados arranha-céus. O vento frio da noite bagunça os cabelos e o fedor dos
zumbis mal se esconde sob o cheiro de chuva.
Brian olha fixamente para as distantes silhuetas dos edifícios escuros, como se estivesse
num transe. Para alguém que mora nos Estados Unidos do século XXI, é quase incompreensível ver
uma imensa metrópole totalmente às escuras. Mas é exatamente isso o que os Blake estão vendo:
prédios no horizonte tão mortos e tão escuros que mais parecem uma cordilheira de montanhas
numa noite sem luar. Volta e meia, Brian acha que viu um pequeno lampejo de fogo, ou uma luz
piscando naquela imensa escuridão. Mas pode perfeitamente ser só a imaginação.
— Acho que April é o que mais está fazendo bem à Penny — comenta Philip.
— É. Ela é muito boa para a menina. — Brian vem simpatizando com April e percebe que
Philip também pode estar gostando dela. Nada deixaria Brian mais feliz do que ver Philip encontrar
um pouco de paz agora, um pouco de estabilidade com uma namorada.
— Mas a outra é um porre, né? — pergunta Philip.
— Tara? É. Essa vive emburrada.
Nos últimos dias, Brian procurou evitar Tara — uma verdadeira úlcera ambulante, sempre
paranoica, irascível, ainda chorando de dor pelo pai. Brian acha que ela vai acabar superando isso.
Acha que é uma pessoa decente.
— A mulher não se toca que eu salvei a porra da vida dela — declara Philip.
Brian solta uma saraivada de tosse seca. Então diz: — Era sobre isso que eu queria falar com
você.
Philip olha para ele.
— Sobre o quê?
— O velho se transformar daquele jeito? — Brian mede as palavras com cuidado. Sabe que
não é a única pessoa que se preocupa com isso. Desde que David Chalmers voltou do mundo dos
mortos e tentou devorar a filha mais velha, Brian vem ruminando sobre o fenômeno, as implicações
do que aconteceu e as regras desse mundo novo e selvagem e talvez até o prognóstico para toda a
raça humana. — Pensa só, Philip. Ele não foi mordido, foi?
— Não. Não foi.
— Então, por que virou zumbi?
Por um momento, Philip apenas encara Brian e a escuridão parece aumentar em volta deles.
A cidade parece se estender até a eternidade, como a paisagem de um sonho. Brian sente a pele toda
arrepiada, como se o simples fato de colocar isso em palavras — de falar em voz alta — tivesse
soltado o gênio do mal de uma garrafa. E eles nunca, nunca mais vão conseguir colocar o gênio de
volta.
Philip bebe um pouco do vinho. Na escuridão, seu rosto está triste e contraído.
— Tem muita coisa que a gente não sabe. Talvez ele já tivesse se infectado com alguma
coisa antes, ou talvez tenha entrado em contato com isso o suficiente para que a coisa começasse a
agir no sistema. Ele já ia morrer mesmo.
— Se esse for o caso, então todos nós...
— Ei, professor, dá um tempo! Todo mundo aqui está saudável e vai continuar assim.
— Eu sei. Eu só estava dizendo... que talvez a gente devesse pensar em tomar mais
precauções.
— Que precauções? Eu estou com todas elas bem aqui. — E toca na coronha da Ruger .22,
na parte de trás do cinto.
— Eu falo de se limpar melhor, de esterilizar as coisas.
— Com o quê?
Brian solta um suspiro e olha para o céu pesado da noite, um aglomerado de nuvens tão
escuras quanto um novelo de lã preta. As chuvas de outono estão se aproximando.
— Nós temos água nos banheiros de cima. Temos filtros, gás liquefeito e acesso a produtos
de limpeza logo ali na rua. Sabonetes, limpadores e tudo.
— Nós já estamos filtrando a água, meu caro — diz Philip.
— Eu sei, mas...
— E a gente está se lavando com aquela coisa que o Nicky encontrou.
A tal coisa é um chuveiro de acampamento que Nick achou na seção de esportes da
Dillard’s. Mais ou menos do tamanho de um cooler pequeno, tem um tanque dobrável de 20 litros e
um chuveirinho que funciona a bateria. Faz cinco dias que eles desfrutam do luxo periódico de
tomar um rápido banho, reciclando a água o máximo possível.
— Eu sei, eu sei... Eu só estava dizendo que talvez seja melhor sermos neuróticos com
limpeza no momento. Só isso. Até a gente descobrir mais.
Philip olha duro para ele.
— E se não houver mais nada para descobrir?
Brian não tem resposta para isso.
A única resposta vem da cidade, zumbindo sinistramente para eles, com um vento podre e
um enorme e silencioso “foda-se”.
*
Talvez seja a alarmante mistura de ingredientes pouco simpáticos que April e Penny
prepararam para o jantar — uma mistureba de aspargos e carne enlatados e batatas fritas amassadas,
cozidas sobre um fogareiro de propano — que parece pesar como uma âncora no fundo do
estômago de Philip. Ou talvez seja o efeito acumulado de todo aquele estresse, aquela raiva e das
noites insones. Ou talvez tenha sido a conversa que teve com o irmão na varanda. Mas, seja lá qual
for a causa, depois que se deita e mergulha num sono difícil, Philip tem um sonho lúgubre, com
riqueza de detalhes.
Ele sonha em seus novos aposentos (o antigo quarto de April era aparentemente o escritório
da casa de alguém — enquanto tiravam as coisas do antigo dono, Philip e April encontraram caixas
de cosméticos da Mary Kay, formulários e amostras de maquiagem). Mas agora, deitado na cama
queen encostada na parede, Philip se contorce, semi-inconscientemente, entrando e saindo de um
verdadeiro filme de horror. É o tipo de sonho que não tem forma. Não tem começo, meio ou fim. Só
fica girando em círculos, numa espécie de eixo de terror.
Ele se vê de volta à casa em que morava quando criança, em Waynesboro — um pequeno
bangalô desbotado na Farrel Street —, no quarto dos fundos que compartilhava com Brian. No
sonho, Philip não é mais criança. Já é adulto e, de alguma maneira, a praga viajou no tempo até a
década de 1970. O sonho é tão vivo que parece até ser em três dimensões. Lá está o papel de parede
cor de lírio branco, os pôsteres do Iron Maiden, a escrivaninha rabiscada, e Brian está em algum
lugar da casa, fora da vista, chorando, e Penny também está ali, no quarto ao lado, chorando e
chamando pelo papai. Philip corre pelos corredores, que se transformam num labirinto sem fim. O
gesso está rachando. A horda de zumbis está do lado de fora, tentando entrar. As janelas, fechadas
com tábuas, já estão tremendo. Philip tem um martelo nas mãos e tenta reforçar as janelas com
pregos, mas a cabeça do martelo se desprende e cai no chão. Barulho de coisas se quebrando. Philip
vê uma porta sendo arrombada e corre para lá, mas a maçaneta se desprende e fica em sua mão. Ele
procura por armas nas gavetas e nos armários, mas as portas se desprendem dos armários e o gesso
cai do teto. A bota de Philip abre um buraco no chão. As paredes estão desabando, o linóleo está
cedendo, as janelas se desprendem das esquadrias e Philip continua ouvindo a vozinha desesperada
de Penny gritando por ele: — PAPAI!
Braços esqueléticos penetram pelas esquadrias da janela, que vão se desfazendo. Dedos
nodosos e escurecidos a agarram.
— PAPAI?
Crânios brancos brotam do chão, como se fossem tenebrosos periscópios.
— PAPAI!
Philip solta um grito silencioso, enquanto o sonho se estilhaça como vidro.