Capitulo 14 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador
Philip se levanta sobressaltado, inspirando com dificuldade. Ele se ergue na cama, pisca os
olhos e os aperta para enxergar na fraca luz da manhã. Tem alguém ao pé da cama. Não. São duas
pessoas. Agora ele consegue ver: uma grande e uma pequena.
— Bom dia, flor do dia — cumprimenta April, com a mão em torno do ombro de Penny.
— Meu Deus! — Philip se recosta na cabeceira da cama, com o pijama e as calças de
moletom. — Que horas são agora?
— Quase meio-dia.
— Meu Deus do céu — balbucia Philip, se recompondo. Todo o corpo musculoso está
coberto por uma camada de suor frio. O pescoço dói e a boca está com gosto de caixa de areia para
gatos. — Eu não acredito.
— Você precisa ver uma coisa, pai — diz a menina, com os olhos arregalados cheios de
animação. A visão da filha tão contente manda uma espécie de onda de alívio por todo o corpo de
Philip, espantando da mente febril os últimos resquícios do sonho.
Ele se levanta e se veste, mandando as duas se acalmarem.
— Me dá só um minuto para eu me ajeitar — fala, numa voz rouca e regada a uísque,
enquanto passa os dedos pelos cabelos sebentos.
*
Elas o levam até o terraço. Quando saem pela porta de incêndio e mergulham para o ar frio e
a luz, Philip tem que proteger os olhos. Mesmo o dia estando escuro e carregado, Philip está de
ressaca e a luz faz seus olhos latejarem. Ele aperta os olhos na direção do céu e vê as nuvens que
prenunciam uma tempestade entrando na região, vindas do norte.
— Parece que vai chover — atesta.
— O que é muito bom — diz April, acenando para Penny. — Mostre por quê, querida.
A menininha pega a mão do pai e o arrasta pelo terraço.
— Olhe só, pai, eu e April fizemos um canteiro para poder plantar coisas.
Ela lhe mostra uma pequena horta improvisada no meio do terraço. Demora um instante para
Philip perceber que o canteiro é constituído por quatro carrinhos de mão que tiveram as rodas
removidas e então foram unidos com fita adesiva. Uma camada de 15 centímetros de terra preenche
cada um dos quatro carrinhos e algumas mudas verdes que ele não consegue identificar foram
transplantadas para lá.
— Isso é muito bom — declara Philip, dando um abraço na filha. Olha para April. — Muito
bom mesmo.
— Foi ideia de Penny — responde April, com um brilho de orgulho nos olhos. Ela aponta
para uma série de baldes. — E também vamos coletar água.
Philip estuda o rosto bonito e levemente machucado de April Chalmers, os olhos azuis, o
cabelo louro despenteado que cai por cima do colarinho do suéter encardido. Ele simplesmente não
consegue tirar os olhos dela. E mesmo quando Penny começa a falar alegremente das coisas que
pretende plantar — pés de algodão-doce, arbustos de chiclete —, Philip não consegue evitar ler as
entrelinhas: a maneira como April se ajoelha ao lado da menina, ouvindo com atenção e com a mão
pousada nas costas dela, o olhar afetuoso no rosto da mulher, a facilidade com que as duas se
entrosam, o sentimento de ligação... tudo isso sugere algo mais do que uma simples luta pela
sobrevivência.
Philip mal se permite pensar na palavra, e mesmo assim ela vem na mesma hora, naquele
precipício assolado pelo vento, de supetão: família.
— Com licença!
A voz desagradável vem da porta de incêndio atrás deles, do outro lado do terraço. Philip se
vira. Ele vê Tara na porta, vestindo uma das roupas havaianas manchadas e naquele humor que é
marca registrada. Ela segura um balde. Está com o rosto fechado e os olhos ainda mais delineados e
azedos do que de costume.
— Eu estaria atrapalhando muito se pedisse um pouquinho de ajuda?
April se levanta e vira para ela.
— Eu disse que ia ajudar num minutinho.
Philip percebe que Tara andou tirando água da privada. Ele pensa em apartar a discussão,
mas acaba desistindo.
— E isso foi há meia hora. Enquanto isso, eu estava pegando água, e você aqui,
desperdiçando tempo no jardim de infância.
April suspira.
— Tara, se acalme um pouco, vai... É só um segundo. Eu já vou ajudar.
— Tudo bem. Como você quiser! — Tara se vira carrancuda e desce as escadas com raiva e
fazendo barulho, deixando pelo caminho uma vibração amarga.
April olha para baixo.
— Eu peço desculpas. Ela ainda está tentando lidar com... você sabe... as coisas.
Pela expressão de derrota no rosto de April, fica claro que ela teria que gastar muita energia
para explicar o fastio que acomete a irmã. Philip não é burro. Ele sabe que é complicado e tem a ver
com inveja e rivalidade entre irmãs, e talvez até com o fato de April estar superando o período de
luto com uma pessoa que não é Tara.
— Você não tem que se desculpar — garante Philip. — Eu é que queria falar uma coisa.
— Sim?
— Eu só queria que você soubesse o quanto fico grato pela maneira como trata a minha
filha.
April sorri.
— Ela é uma grande garota.
— Sim, senhora... ela é... e você também não é tão má.
— Que bom. Muito obrigada! — Ela se inclina e dá um beijinho na bochecha de Philip. Não
é nada de mais, só um beijinho rápido. Mas que causa uma boa sensação.
— Agora eu tenho que voltar antes que minha irmã me dê um tiro.
April vai embora, deixando Philip extasiado e sonhando ao vento.
Em matéria de beijo, não foi nada de especial. Sarah, a falecida mulher de Philip, era
campeã em beijos. E, bem, Philip tinha conhecido prostitutas nos anos após a morte de Sarah que
haviam se dedicado no departamento de beijos. Até as putas têm sentimentos e, no início do
programa, Philip perguntava se elas se incomodariam muito se ele desse alguns beijos, só por
decência, para fingir que havia um pouco de amor na relação. Mas o selinho de April serve mais
como uma entrada, um aperitivo do que está por vir. Philip nem chamaria de provocação. E também
não diria que é o tipo de beijo platônico que uma irmã daria no irmão. Ele está no meio do limbo
irresistível entre esses dois extremos. Da perspectiva de Philip, é uma batida na porta, um teste para
ver se alguém responde.
Naquela tarde, Philip espera a chuva cair, mas ela não vem. Eles já estão em meados de
outubro — não faz a menor ideia do dia — e todo mundo espera as tradicionais tempestades que
varrem a região central da Geórgia nessa época do ano, mas alguma coisa as vem mantendo a
distância. A temperatura está caindo e o ar chega a zumbir com a umidade latente, mas a chuva
ainda não chegou. Talvez a seca tenha alguma coisa a ver com a praga. Mas, por alguma razão, o
céu instável, com a coroa de nuvens carregadas parece refletir a tensão estranha e inexplicável que
vai se formando dentro de Philip.
Mais tarde no mesmo dia, ele pede a April para acompanhá-lo numa rápida saída até a rua.
Dá trabalho convencê-la — apesar de o número de zumbis ter caído dramaticamente desde a
última vez em que saíram. Philip diz a April que precisa de ajuda para procurar um Home Depot nas
redondezas, ou uma Lowes que possa ter uns geradores disponíveis. O tempo está ficando cada vez
mais frio, especialmente à noite, e eles logo vão precisar de energia para sobreviver. Ele diz que
precisa de alguém que conheça a região.
E também diz que quer mostrar a ela as rotas seguras que Nick andou traçando. Nick se
oferece para acompanhar, mas Philip diz que é melhor que ele fique em casa e vigie o lugar, junto
com Brian.
April está disposta a sair, e quer ir, mas tem sérias dúvidas sobre a ponte trêmula e
improvisada. E se começar a chover enquanto eles estiverem nas escadas? Philip garante que é
moleza, especialmente para um peso pena como ela.
Eles pegam os casacos, as armas — dessa vez, April leva uma das Marlins — e se preparam
para a expedição. Tara está espumando de raiva por causa dos dois, com asco daquilo que chama de
“uma perda de tempo burra, imatura, perigosa e típica de gente retardada”. Philip e April a ignoram
com educação.
— Não olhe para baixo!
Philip já passou da metade da ponte de escadas sobre o beco dos fundos. April está 3 metros
atrás dele, se agarrando à própria vida. Olhando para ela por cima do ombro, ele ri consigo mesmo.
Colhões enormes tem a garota.
— Eu estou bem — responde ela, engatinhando com os dedos bem firmes e o maxilar
trincado. O vento bagunça os cabelos dela. Lá embaixo, a 10 metros de distância, dois cadáveres
ambulantes olham em volta como patetas, procurando no ar a origem daquelas vozes.
— Você já está quase lá — incentiva Philip, ao chegar do outro lado.
Ela engatinha os últimos 6 metros. Ele a ajuda a descer na escada de incêndio. As grades de
ferro rangem sob o peso dos dois.
Eles encontram a janela aberta e entram na antiga sede da Stevenson & Sons, Contabilidade
e Planejamento Imobiliário. Os corredores do escritório estão mais frios e mais escuros que da
última vez que Philip andou por ali. A chegada da tempestade trouxe o crepúsculo para a região
mais cedo do que de costume.
Eles atravessam os corredores escuros.
— Não se preocupe — garante Philip, enquanto pisam em cima de cacos de vidro e
formulários amassados de impostos. — Esse é o lugar mais seguro do mundo, no momento.
— O que já não inspira muita segurança — rebate ela, acariciando a espingarda e tocando
nervosamente no tambor.
Vestida de calça jeans e uma camisa rasgada, April cobriu as pernas e os braços com fita
isolante. Ninguém mais faz isso. Philip um dia lhe perguntou por que e ela disse que tinha visto um
adestrador de animais fazer na TV, uma última linha de defesa para uma mordida não rasgar a pele.
Eles atravessam o lobby e encontram as escadas de acesso logo atrás das máquinas de
comida destruídas.
— Olhe só isso — diz Philip, enquanto sobe o único lance de escadas para a porta sem
placa. Faz uma pausa, antes de abri-la. — Você se lembra do Capitão Nemo?
— Quem?
— Daquele filme Vinte Mil Léguas Submarinas? Aquele capitão meio doido, que tocava
órgão no submarino enquanto as lulas gigantes passavam pelas janelas panorâmicas?
— Nunca assisti.
Philip sorri para ela.
— Pois agora vai ver.
*
A última coisa que April espera é que algo além de violência horrível venha lhe tirar o
fôlego, mas é exatamente isso o que acontece quando ela sai atrás de Philip e sobe na passarela de
pedestres. April para logo no portal e fica boquiaberta.
Ela já esteve em outras passarelas — talvez até naquela mesma —, mas, por algum motivo,
naquela noite, naquele espaço e naquela luz, vê-la se estender sobre o cruzamento, 10 metros acima
da rua, e se ligar ao segundo andar da Dillard’s, parece quase um milagre. Pelo teto de vidro, os
raios desenham veias no céu, costurando as nuvens de tempestade. Pelas paredes transparentes, as
sombras escuras da cidade se fundem com as dos zumbis ambulantes. Atlanta parece um enorme
tabuleiro de brinquedo, perdida no mais absoluto caos.
— Eu entendo o que você quis dizer. — A voz de April vem num murmúrio enquanto ela
aprecia aquilo tudo, sentindo uma mistura esquisita de emoções: vertigem, medo, excitação.
Philip caminha até o meio da ponte, parando numa parede e soltando a mochila do corpo.
Com o queixo, ele aponta para o sul.
— Quero que você veja uma coisa — diz ele. — Venha cá.
Ela vai até ele, encostando a arma e a mochila na parede de vidro.
Philip aponta para as marcas que Nick deixou nos veículos abandonados. Ele explica a teoria
das “zonas de segurança” e comenta como Nick ficou esperto.
— Eu acho que ele realmente fez um ótimo trabalho — conclui Philip.
April concorda.
— A gente pode usar esses esconderijos, depois que encontrar o tal gerador de que todo
mundo fala.
— Exatamente, garota.
— Nick é um cara legal.
— Com certeza.
A escuridão sufocante toma conta da cidade e, nas sombras azuladas da passarela, o rosto
áspero de Philip parece ainda mais assustador para April. Com o bigode preto, fino e longo de Fu
Manchu e os olhos cercados de rugas de sorriso, ele lembra a April de uma mistura de Clint
Eastwood mais novo e... quem mais? Seu pai quando era jovem? Será por isso que ela sente essas
pontadas de atração pelo caipira grande e sem jeito? Será que April está tão retardada que se sente
atraída por um homem só porque ele é uma cópia do pai? Ou será que esse ridículo amor platônico
tem alguma coisa a ver com todo o estresse da luta pela vida num mundo de repente condenado à
extinção? Pelo amor de Deus, esse é o cara que arrebentou o crânio do pai dela. Mas talvez isso
também não seja justo. Aquele não era David Chalmers. O espírito dele, como diz a música, já tinha
se esvaído. Sua alma havia partido muito antes de ele ter saído da cama e tentado jantar a filha mais
velha.
— Eu tenho que dizer — continua Philip, olhando para os vultos maltrapilhos que, como
vira-latas, perambulam pelas ruas à procura de restos de comida —, que se conseguir acertar
algumas coisas, a gente vai poder ficar muito tempo naquele prédio.
— Acho que sim. Tudo o que a gente tem que fazer é encontrar um jeito de colocar um
pouco de Valium no mingau da Tara.
Philip ri — uma risada boa e limpa —, o que revela um lado dele que April não tinha visto.
Ele olha para ela.
— A gente tem uma oportunidade de fazer tudo isso dar certo. A gente pode fazer mais do
que simplesmente sobreviver. E eu não falo só de arranjar um gerador.
April olha nos olhos dele.
— O que quer dizer?
Ele se vira para ela.
— Eu já estive com muitas garotas, mas nunca encontrei alguém como você. Dura como um
prego... mas o carinho que você demonstra pela minha filha...? Eu nunca vi Penny se afeiçoar tanto
a alguém como se afeiçoou a você. Caramba, você salvou a nossa vida, tirando a gente da rua. Você
é uma mulher muito especial, sabia?
De repente, April sente a pele ficar vermelha e quente, nota um arrepio, a barriga treme,
então vê que Philip está olhando para ela de um jeito totalmente diferente. Agora ela sabe que ele
vinha pensando o mesmo. E olha para baixo, constrangida.
— Seus padrões não devem ser altos — murmura.
Ele estende a mão e toca suavemente no contorno do queixo dela.
— Pois eu sou o cara mais exigente que conheço.
Um trovão ecoa do lado de fora do vidro, fazendo a passarela balançar e April pular.
Philip a beija na boca.
Ela recua.
— Não sei, Philip... Quero dizer... Não sei se isso... sabe...
No espaço de um instante, todo o tipo de pensamento passa pela cabeça de April. Se ela
levar a relação a um novo patamar, o que vai acontecer com Tara? Como isso vai destruir toda a
dinâmica no apartamento? Vai complicar ainda mais as coisas? Como vai afetar a segurança de todo
mundo, as chances de sobrevivência e o futuro (se é que existe um)?
A expressão de Philip a traz de volta para a Terra. Do jeito que ele está olhando para ela, o
olhar quase vidrado de emoção, a boca seca de desejo.
Ele se inclina e a beija de novo e dessa vez ela se vê jogando os braços em volta dele e
aceitando o beijo, sem perceber que as gotículas de chuva começam a pingar no vidro acima dela.
April sente o corpo todo entorpecer no abraço forte de Philip. Os lábios se abrem e a
eletricidade toma conta do corpo dela, enquanto eles exploram as línguas um do outro, o gosto de
café e de chiclete de hortelã e o cheiro almiscarado de Philip tomando os sentidos dela. Os mamilos
de April se enrijecem debaixo do suéter.
Um flash de raio azul transforma o anoitecer num dia brilhante e prateado.
April perde o controle de si mesma. Aliás, perde o controle de tudo. Está com a cabeça
girando. Não percebe a chuva batendo no teto de vidro. Nem se dá conta de que Philip está
delicadamente baixando os dois para o chão da passarela. Com os lábios colados e se tocando
sensualmente, as mãos grandes de Philip acariciam os seios de April e ele a apoia com cuidado na
parede de vidro. Antes que April se dê conta do que está acontecendo, Philip está em cima dela.
A tempestade desce em toda sua fúria. A chuva bate forte no teto. Soam trovões, raios se
acendem como eletricidade estática naquela atmosfera ansiosa, enquanto Philip levanta o suéter de
April, passando pela barriga nua e expondo o sutiã dela à luz azul.
Dedos vigorosos abrem os cintos. Mais um trovão ecoa. April sente o toque urgente do
membro de Philip se aninhando entre as pernas dela. Mais um raio se acende. As calças jeans já
desceram até a metade e os peitos estão livres.
A ponta de uma unha roça a barriga dela e, de repente, como se um interruptor estivesse se
acendendo dentro de April, acompanhado pelo estrondo de um único trovão, ela pensa: ESPERA.
BUUUUUM!
ESPERA!
Uma imensa onda de desejo carrega Philip Blake numa corrente portentosa.
Ele mal consegue ouvir a voz de April vinda de algum lugar distante, pedindo: Para, espera,
escuta, escuta só, isso é demais, eu ainda não estou pronta, por favor, por favor, para agora. Para. O
cérebro de Philip não registra nada disso conforme ele nada com desejo, paixão, dor, solidão e uma
necessidade desesperada de sentir alguma coisa, porque agora todo o seu corpo está ligado a seu
membro e toda a emoção represada está passando por ele.
— Meu Deus, estou implorando para você parar! — suplica a voz distante, o corpo de April
se enrijecendo.
Philip cavalga a mulher arfante sob ele, como se estivesse surfando uma onda de espumas
brancas, sabendo que por dentro ela o deseja, que ela o ama, apesar do que está falando. Então ele
continua se enfiando dentro dela, de novo e de novo, em meio a grandes raios claros como
magnésio, a energia mais crua, preenchendo-a, tomando-a como sua, alimentando-a,
transformando-a, até que ela fica entorpecida embaixo dele, entorpecida e agora calada.
A suave explosão branca de prazer irrompe como um foguete dentro de Philip.
Ele sai de cima dela e deita no chão ao lado da mulher, olhando para a chuva que cai, sem se
preocupar com as almas sombrias e asquerosas que estão a 10 metros deles, no chão, iluminadas
pelos raios como figuras silenciosas num filme mudo.
Ele considera o silêncio de April como um sinal de que talvez, apenas talvez, tudo acabe
bem. Enquanto a tempestade se transforma numa simples chuva forte, com o barulho de jato
distante tomando conta da passarela, os dois voltam a se vestir e ficam deitados lado a lado por
muito tempo, olhando para a cortina de chuva que despenca em cima do teto.
Philip está em estado de choque, o coração acelerado, a pele fria e pegajosa. Ele se sente
como um espelho quebrado, como se um caco da alma tivesse se partido e o que estivesse vendo
fosse o rosto de um monstro. O que ele acabou de fazer? Ele sabe que fez algo errado, mas é quase
como se fosse outra pessoa.
— Eu acho que me empolguei um pouco — fala ele, finalmente, depois de vários minutos
de um silêncio terrível.
April não diz uma palavra. Ele olha para ela e vê o rosto da garota no escuro, refletindo as
sombras líquidas da chuva que escorre pelos dois lados da passarela. Ela parece estar
semiconsciente, como se sonhando acordada.
— Desculpe por isso — continua ele, e as palavras parecem vazias para o próprio Philip. Ele
olha mais uma vez para April, tentando ter uma ideia de como ela está se sentindo. — Você está
bem?
— Estou.
— Tem certeza?
— Tenho.
A voz dela parece mecânica, totalmente sem cor, quase inaudível sobre o barulho da chuva.
Philip está prestes a dizer mais alguma coisa quando um enorme trovão interrompe os pensamentos.
O barulho ecoa pela armação de ferro da passarela, com uma vibração violenta que leva Philip a se
encolher.
— April...
— Sim.
— A gente devia voltar.
A viagem de volta é feita toda em silêncio. Philip segue alguns passos atrás de April pelo
salão deserto, depois sobem pela escada e passam pelos corredores vazios e cheios de papel. Volta e
meia, Philip pensa em falar alguma coisa, mas acaba não falando. Acha que é melhor deixar tudo se
assentar. Deixar April digerir o que aconteceu. O que quer que ele diga, só vai piorar as coisas. Ela
segue à frente, com a arma no ombro, parecendo um soldado cansado que volta de uma patrulha
rigorosa. Eles chegam ao último andar da empresa de contabilidade e encontram a janela aberta, a
chuva entrando pelo vidro quebrado. Trocam apenas poucas palavras — “você primeiro” e “cuidado
com o degrau” —, enquanto Philip a ajuda a descer a escada de incêndio totalmente alagada. O
vento e a chuva massacrantes, que caem em cima deles enquanto rastejam pela traiçoeira passarela
improvisada, são quase uma bênção para Philip. Eles o envolvem, o mantêm acordado e lhe dão a
esperança de que talvez possa vir a consertar qualquer estrago que tenha feito naquela noite àquela
mulher.
Quando conseguem chegar ao apartamento — os dois molhados até os ossos, exaustos e
entorpecidos —, Philip está confiante de que vai conseguir dar um jeito em tudo.
Brian está com Penny no escritório transformado em quarto, colocando-a na cama. Nick está
na sala, fazendo um mapa das zonas de segurança.
— E aí, como foi? — pergunta ele, levantando o olhar. — Vocês estão parecendo dois ratos
afogados. Encontraram algum Home Depot?
— Hoje, não — responde Philip, indo para o quarto, sem parar nem para tirar os sapatos.
April não diz nada. Nem sequer olha para Nick enquanto se dirige para o corredor.
— Olhem só para vocês — reclama Tara, saindo da cozinha com cara de rabugenta e um
cigarro aceso pendurado no canto da boca. — Exatamente o que eu pensei. Uma burrice total!
Ela fica ali, com as mãos na cintura, enquanto a irmã desaparece sem dizer uma palavra no
quarto que fica no final do corredor. Tara olha duro para Philip e então bate em retirada atrás da
irmã.
— Eu vou dormir — diz Philip secamente para Nick, indo para o quarto.
Na manhã seguinte, Philip acorda e rola na cama, logo antes do amanhecer. A chuva
continua castigando as ruas lá fora. Ele pode ouvi-la tamborilando na janela. O quarto está escuro,
frio e úmido e tem cheiro de mofo. Ele passa um bom tempo sentado na ponta da cama, olhando
para Penny, que dorme na cama do outro lado do quarto, com o corpo todo enroscado em posição
fetal. As lembranças disformes de um sonho ainda se prendem ao cérebro meio zonzo de Philip,
bem como a sensação nauseante de não saber onde terminam os pesadelos e onde começa o
episódio com April da noite anterior.
Se ele só tivesse sonhado com os acontecimentos que se passaram na passarela de pedestres,
em vez de realmente tê-los vivido. Mas a face dura e brutal da realidade retorna a ele naquele quarto
escuro, numa série de flashes, como se estivesse vendo outra pessoa perpetrar o crime. Philip segura
a cabeça, tentando expulsar a sensação de horror e de culpa da mente.
Passando os dedos pelos cabelos, ele se convence de que o melhor é ter esperança. Ele pode
resolver tudo com April, dar um jeito de seguir em frente, colocar uma pedra em cima disso, pedir
desculpas, se redimir.
Ele olha para Penny dormindo.
Nas duas semanas e meia desde que o grupo de Philip uniu forças com os Chalmers, Philip
viu a filha sair da concha. No começo, percebeu pequenos detalhes: a maneira como Penny
começou a gostar de preparar aqueles jantares horríveis e a maneira como ela se iluminava quando
April entrava no quarto. E, a cada dia que passava, a garota ficava mais tagarela, lembrando de
coisas do período antes da “transformação”, fazendo comentários sobre as mudanças bruscas do
tempo e perguntando sobre a “doença”. Será que os animais também ficam doentes? Será que ela
passa? Será que Deus está furioso com eles?
O peito de Philip arde de emoção quando olha para a filhinha dormindo. Tem que haver um
jeito de proporcionar uma vida a essa garota, constituir uma família, um lar — mesmo no meio de
todo o pesadelo sem fim —, tem que haver um jeito.
Por um rápido momento, Philip imagina uma ilha deserta e uma cabana aninhada no meio de
um monte de palmeiras. A praga está a milhões de anos-luz de distância. Imagina April e Penny nos
balanços, brincando no meio de uma horta. Ele se vê sentado na varanda dos fundos, saudável,
bronzeado de sol e olhando alegremente para as duas mulheres de sua vida compartilhando
momentos de felicidade. Imagina tudo isso enquanto vê a filha dormir.
Ele se levanta e vai até ela, ajoelhando-se e passando a mão de leve no cabelo macio da
menina. Ela precisa tomar um banho. O cabelo está sem brilho e gorduroso e o corpinho começa a
cheirar mal. De alguma maneira, o cheiro atinge Philip, que sente uma pontada no estômago. Os
olhos ficam marejados. Ele nunca amou ninguém a não ser essa garota. Até Sarah, a quem adorava,
vinha em segundo lugar. Seu amor por Sarah — como o de todas as pessoas casadas — era
complicado, fluido e condicional. Mas na primeira vez que viu a menininha, um pacotinho
recém-nascido, há sete anos e meio, aí sim ele aprendeu o que é o amor.
Significa ter medo e se sentir vulnerável pelo resto da vida.
Do outro lado do quarto, uma coisa chama a atenção de Philip. A porta está entreaberta. E
ele se lembra de tê-la fechado antes de ir dormir. Aliás, se lembra perfeitamente. Agora, ela está uns
15 centímetros entreaberta.
No início, isso não causa uma grande impressão ou preocupação. Talvez ele tenha se
esquecido, sem querer, de passar o trinco e a porta acabou se abrindo sozinha. Ou talvez ele tenha
ido fazer xixi no meio da noite e se esqueceu de fechar. Ou talvez Penny tenha ido fazer xixi e se
esquecido de fechar. Caramba, Philip pode até ser sonâmbulo sem saber. Mas então, exatamente
quando os olhos estão prestes a voltar para a filha, ele percebe mais uma coisa.
Alguns objetos sumiram do quarto.
O coração de Philip começa a bater mais forte. Ele deixou a mochila — a que trazia quando
chegou à casa, duas semanas atrás — encostada num canto da parede, mas agora ela não está mais
lá. E a pistola também sumiu. Ele deixou a Ruger .22 em cima da cabeceira com os últimos
cartuchos ao lado. A munição também se foi.
Philip põe-se de pé.
Ele olha em volta. A luz do amanhecer está começando a iluminar o quarto, os vidros da
janela tomados por lágrimas de chuva, os reflexos fantasmagóricos da água molhando o exterior do
vidro. Suas botas não estão no lugar onde ele as largou. Ele deixou no chão, ao lado da janela.
Agora não estão mais lá. Quem iria querer ficar com as botas dele? Philip se obriga a se acalmar.
Tem que haver uma explicação bem simples. Não há motivo algum para agitação. Mas o que mais
lhe preocupa é o sumiço da arma. Ele decide entender uma coisa de cada vez.
Silenciosamente, e com todo o cuidado para não acordar Penny, Philip atravessa o quarto e
sai pela porta entreaberta.
O apartamento está quieto e silencioso. Brian cochila na sala, no sofá-cama. Philip vai até a
cozinha, liga o fogareiro de propano e prepara para si mesmo um café instantâneo com um pouco da
água da chuva que caiu num balde. Joga um pouco de água fria no rosto e se obriga a ficar calmo,
respirando fundo algumas vezes.
Quando o café está quente, ele pega a xícara e segue o corredor até o quarto de April.
A porta também está entreaberta.
Ele olha lá dentro e vê que o quarto está vazio. Sua pulsação se acelera.
— Ela não está aí — diz uma voz.
Ele se vira e fica cara a cara com Tara Chalmers, que segura a Ruger, o cano erguido e
apontado diretamente para Philip.