Capitulo 15 - The Walking Dead - A Ascensão do Governador


— Muito bem... Vai com calma, irmã. — Philip não se mexe. Só fica ali parado, congelado
no corredor, com a mão livre levantada e o café na outra mão, meio de lado, como se fosse
oferecê-lo a ela. — Seja lá qual for o problema, a gente pode dar um jeito.
— Será...? — Tara Chalmers fuzila Philip com o olhar, os olhos pintados faiscando. — Você
acha mesmo?
— Olha... Eu não sei o que está acontecendo.
— O que está acontecendo — responde ela, sem um pingo de medo ou de nervosismo — é
uma troca de comando aqui.
— Tara, seja lá o que você estiver pensando...
— Deixa eu esclarecer uma coisa. — A voz dela é firme e sem qualquer emoção. — Eu
quero que você cale a porra dessa boca e faça o que eu digo, ou eu vou te matar aqui mesmo. Não
pense que eu não sou capaz.
— Isso aqui não é...
— Põe essa xícara no chão.
Philip obedece e põe a xícara no chão.
— Muito bem, irmã. Como quiser.
— E pare de me chamar de irmã.
— Sim, senhora.
— Agora nós vamos pegar o seu irmão, o seu amigo e a sua filha.
Philip está quicando de adrenalina. Ele não acha que Tara tenha coragem de fazer qualquer
mal a ele, e pensa em tentar agarrar a arma — a distância entre ele e o cano da Ruger é só de uns 2
ou 3 metros —, mas resiste à tentação. É melhor obedecer por enquanto e tentar fazer ela falar.
— Posso dizer uma coisinha?
— SE MEXE!
Aquele grito repentino quebra o silêncio, alto o suficiente não só para acordar Brian e Penny,
mas provavelmente para ser ouvido também no segundo andar, onde Nick — que costuma acordar
cedo — provavelmente já está de pé. Philip dá um passo em direção a ela.
— Se você me desse uma pequena chance de...
A Ruger solta um estampido.
O tiro passa longe — talvez de propósito, talvez não —, comendo um pedaço da parede a 45
centímetros do ombro esquerdo de Philip. O barulho que a arma faz é absurdo naquele espaço
exíguo, e os ouvidos de Philip ainda estão zumbindo quando percebe que uma partícula do gesso da
parede ficou presa em seu rosto.
Ele mal consegue ver o rosto de Tara através da fumaça azul da pólvora. Não sabe se ela está
sorrindo ou fazendo uma careta. No momento, é difícil dizer.
— A próxima vai na sua cara — diz ela. — Agora você vai se comportar direito ou não?
Nick Parsons ouve o tiro logo depois de abrir a Bíblia para a leitura matinal. Sentado na
cama, recostado na cabeceira, ele dá um pulo quando ouve o barulho e a Bíblia voa das mãos.
Estava aberta no livro do Apocalipse, capítulo 1, versículo 9, na parte em que João diz para a
congregação: “Eu, João, que também sou vosso irmão e companheiro na aflição, e no reino, e
paciência de Jesus Cristo.”
Pulando da cama, ele vai até o armário, onde a espingarda Marlin devia estar encostada num
dos cantos — só que ela não está lá. O pânico faz um calafrio passar por toda a coluna de Nick, que
se vira e procura pelo quarto inteiro tudo o que está faltando. A mochila... foi-se. As caixas de
cartuchos para a espingarda... idem. As ferramentas, a picareta, as botas e o mapa... tudo
desaparecido.
Pelo menos ainda tem as calças jeans devidamente dobradas em cima de uma cadeira. Ele as
pega com força e atravessa como um raio o quarto. Percorre o conjugado. Dispara pela porta. Pelo
corredor. Desce um lance de escadas e chega ao primeiro andar. Acha que ouviu o som de uma voz
raivosa, mas não tem certeza. Corre direto para o apartamento dos Chalmers. A porta está
destrancada e ele entra.
— O que aconteceu? O que aconteceu? — repete Nick, quando chega na sala de estar
fazendo barulho. Ele vê uma coisa que não faz o menor sentido. Vê Tara Chalmers com a Ruger
apontada para Philip e Philip com uma expressão estranha no rosto, e Brian de pé a alguns metros
com Penny agarrada a ele, e os braços em volta da menininha para protegê-la. E o mais esquisito de
tudo: Nick vê todas as coisas deles empilhadas no chão, na frente do sofá.
— Para lá — diz Tara, brandindo a arma e mandando Nick ir para onde estão Philip, Brian e
Penny.
— O que houve?
— Não interessa. Faça o que eu estou mandando.
Nick obedece devagar, mas está com a cabeça tomada pela confusão. Em nome de Deus, o
que foi que aconteceu? Quase que sem querer, Nick olha para Philip, procurando respostas nos
olhos do grandão, mas, pela primeira vez desde que Nick o conhece, Philip parece envergonhado,
quase inexpressivo entre frustração e indecisão. Nick olha para Tara.
— Cadê a April? O que aconteceu?
— Não importa.
— O que você está fazendo? Que ideia é essa de botar todas as nossas coisas numa...
— Nicky — interrompe Philip —, deixe isso para lá. A Tara vai dizer o que ela quer que a
gente faça. E nós vamos obedecer e tudo vai dar certo.
Philip diz isso para Nick, mas, conforme fala, está olhando para Tara.
— Escute o seu amigo, Nick — diz Tara, que também se dirige a Nick, mas sem desviar a
atenção de Philip. Seus olhos quase brilham de desprezo, raiva, vingança e alguma coisa mais: algo
incompreensível para Nick, algo que ele acha perturbadoramente íntimo.
Agora é a vez de Brian fazer uma pergunta: — E o que você quer que a gente faça,
exatamente?
Tara ainda não tira os olhos de Philip ao responder: — Que vão embora.
A princípio, Nick acha que fora uma afirmação retórica. Em suas orelhas ainda zonzas, não
parece que ela esteja mandando eles fazerem alguma coisa, e sim querendo deixar algo bem claro.
Mas essa impressão inicial — e qualquer pensamento mais otimista — imediatamente vai a nocaute
pela expressão no rosto de Tara.
— Caiam na estrada.
Philip a encara.
— Na minha terra, isso se chama assassinato.
— Pode chamar do que quiser. Pegue essa merda toda e vá embora.
— Você vai expulsar a gente daqui sem armas.
— Eu vou fazer muito mais do que isso. Eu vou subir no terraço com uma daquelas
espingardas de pombos de alto calibre para me certificar de que vocês vão mesmo embora.
Depois de um longo e tenebroso momento de silêncio, Nick olha para Philip.
E, finalmente, Philip desvia o olhar da garota decidida e rechonchuda que aponta a pistola.
— Pegue as suas coisas — diz para Nick. Então se volta para Brian. — Tem uma capa de
chuva na minha mochila. Ponha na Penny.
A quantidade de tempo necessária para eles se vestirem e se prepararem para sair é mínima
— só alguns minutos, com Tara Chalmers montando guarda como se fosse uma sentinela de pedra
—, mas dá a Brian tempo suficiente para pensar furiosamente no que pode ter acontecido.
Amarrando as botas e colocando a capa em Penny, ele percebe que todas as indicações apontam
para a existência de um triângulo doentio. Só a ausência de April já fala muito. Assim como o ódio
de Tara, descontrolado e vingativo. Mas o que teria causado isso? Não pode ter sido alguma coisa
que Philip tenha feito ou dito. Como ele poderia ter ofendido tanto aquela mulher?
Por um doido instante, a mente de Brian volta à maluca da ex-mulher. Volúvel, compulsiva,
pirada, Jocelyn fazia coisas assim. Desaparecia por semanas sem deixar vestígios. Uma vez,
enquanto Brian estava na escola noturna, chegou a colocar todas as coisas dele na escada do prédio
em que moravam, como se ela estivesse tirando uma mancha da vida. Mas aquilo ali... Era
diferente. As irmãs Chalmers não tinham dado nenhum sinal de serem malucas ou irracionais.
Contudo, o que mais incomoda Brian é a maneira como o irmão está se comportando. Por
baixo da superfície de raiva contida e de frustração, Philip Blake parece quase que conformado,
talvez até sem esperança. Isso é uma pista e é importante. O problema é que não dá tempo de
descobrir mais nada.
— Vamos lá, para a estrada — diz Philip, passando a alça da mochila pelo ombro. Ele
também já vestiu o casaco de brim, com as manchas pretas e oleosas do início da viagem bem
visíveis, e se encaminha para a porta.
— Espere! — pede Brian e se vira para Tara. — Pelo menos, deixe a gente levar um pouco
de comida. Para Penny.
Ela simplesmente o encara e diz: — Eu já estou deixando vocês saírem daqui vivos.
— Vamos lá, Brian. — Philip para na porta. — Acabou.
Brian olha para o irmão. Tem alguma coisa naquele rosto calejado e enrugado que atiça
Brian. Philip é da família, sangue do seu sangue. E eles percorreram um longo caminho.
Sobreviveram a muitos apertos para morrer agora, como cães sem dono abandonados no
acostamento de uma estrada. Brian sente algo estranho crescer na base da coluna, enchendo-o de
uma força inesperada.
— Muito bem — diz ele. — Se é assim que tem que ser...
Não termina a frase; não há mais nada a dizer. Simplesmente passa o braço em volta de
Penny e a apressa até a porta, para seguir o pai.
*
A chuva é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Ela chicoteia os rostos deles,
quando saem pela frente do prédio, mas enquanto se agacham sob as árvores esquálidas da entrada
para estudar o território, percebem que a tempestade aparentemente assustou os Mordedores das
ruas. Os esgotos estão transbordando, as ruas têm correnteza de inundação e as nuvens estão baixas
e carregadas.
Nick força os olhos para ver a distância e percebe que, para o sul, as ruas estão relativamente
livres.
— Por ali é melhor! A maioria das zonas de segurança está para lá!
— Muito bem, então vamos para o sul — diz Philip e se vira para Brian. — Você pode
carregá-la nas costas de novo? Estou contando com você, amigo. Proteja ela.
Brian limpa o rosto e responde ao irmão pondo o polegar para cima.
Virando-se para a menina, Brian está prestes a colocá-la nas costas, mas para abruptamente.
Por um rápido instante, ele olha espantado para a menininha. Ela também está colocando o polegar
para cima. Brian olha para o irmão e os dois percebem o que aconteceu sem que uma palavra fosse
pronunciada.
Penny Blake está ali de pé, esperando, batendo o queixo em desafio. Seus olhinhos suaves
piscam na chuva e o olhar no rosto parece com o que a falecida mãe costumava mostrar quando não
tinha paciência com as besteiras dos homens. Finalmente, a menina diz: — Eu não sou nenhum
bebê... A gente já pode ir?
Eles caminham até a esquina, abaixados, escorregando na calçada, a chuva sempre
atrapalhando os avanços. Ela bate no rosto e nas roupas deles e também nas juntas, quase que
imediatamente. É uma chuva gelada e enervante de outono, sem sinais de que vai espairecer.
Mais à frente, alguns zumbis maltrapilhos e cadavéricos se aglomeram perto de um ponto de
ônibus abandonado, os cabelos sebentos como lodo colados nos rostos mortos. Parecem esperar um
ônibus que nunca chegará.
Philip conduz o grupo pela esquina até chegarem debaixo de um toldo. Nick aponta o
caminho para a primeira zona de segurança: o ônibus municipal entupido de naftalina, meia quadra
ao sul da passarela de pedestres. Um rápido gesto de mão de Philip e todos correm pelas vitrines das
lojas, na direção do ônibus.
— Eu acho que a gente devia voltar — resmunga Nick enquanto se senta no chão do ônibus
e procura alguma coisa na mochila. A chuva faz um som meio surdo de metralhadora no teto do
ônibus. Nick encontra uma camiseta, tira-a da mochila e limpa a água do rosto. — Nós estamos
falando de uma garota, de quem podemos perfeitamente retomar o lugar. Eu voto por voltar lá e
colocá-la para fora.
— Você acha que a gente pode retomar o apartamento, né? — Philip está na cabine do
motorista, vasculhando os compartimentos, vendo se o motorista deixou alguma coisa. — Por acaso
você tem algum colete à prova de balas nessa mochila?
O ônibus — uma carcaça de 10 metros de comprimento, com assentos modelados voltados
um para o outro dos dois lados — tem o mau cheiro das secreções fantasmagóricas de seus
ex-passageiros, como pelo de cachorro molhado. Nos fundos do ônibus, descansando na penúltima
poltrona, com Penny na cadeira ao lado, Brian está todo trêmulo de moletom e calças jeans
molhados. Ele sente um mau presságio, e não é só por causa da exposição à selvageria urbana e
tempestuosa de Atlanta.
O mau pressentimento de Brian tem mais a ver com o mistério sobre o que aconteceu no
edifício na noite anterior. Ele não pode parar de pensar no que se passou exatamente entre as 17
horas (quando Philip e April partiram em missão) e a manhã seguinte (quando, de repente, tudo
explodiu na cara deles). Pela tensão grave na voz do irmão e a determinação fria no rosto dele, fica
cada vez mais claro para Brian que isso agora já não adianta mais. A prioridade imediata é a
sobrevivência do grupo. Mas Brian não consegue parar de pensar no assunto. O mistério diz
respeito a algo mais profundo, alguma coisa que fica incomodando Brian e que ele não consegue
transformar em palavras.
Um raio se acende do lado de fora do ônibus, brilhando como o flash de uma câmera.
— A gente tinha uma atmosfera boa naquele lugar — continua Nick, a voz tristonha e
irregular. Ele se levanta, se apoiando numa alça de mão. — Aquelas armas eram nossas, cara. E
todo o trabalho que nós tivemos? Tudo aquilo é nosso, tanto quanto é delas.
— Senta, Nick — ordena Philip, secamente. — Eu não quero que nenhuma dessas pústulas
ambulantes veja a gente aqui.
Nick se abaixa.
Philip está sentado no banco do motorista, as molas guinchando. Ele vê uma caixa de mapas
no painel, mas não acha nada de útil. As chaves estão na ignição. Philip gira a chave, mas não
obtém nada além de um clique seco.
— Eu não vou mais repetir. Para nós, aquele lugar acabou.
— Mas por quê? Por que a gente não pode retomar o apartamento? A gente pode dominar
aquela puta gorda. Nós três juntos?
— Deixe para lá, Nick — responde Philip e até Brian, que está lá nos fundos do ônibus,
percebe o tom gélido de advertência na voz de Philip.
— Eu só não entendo — reclama Nick, baixinho — como é que uma coisa dessas pode ter
acontecido...
— Bingo! — Finalmente, Philip encontrou algo de útil. Uma barra de aço de 1,20 m, com a
largura e a textura de uma pequena viga de ferro, está fixa com presilhas sob a janela lateral do
motorista. Com um gancho numa das pontas, é bem provável que a vara seja usada para alcançar a
porta de sanfona, do outro lado da cabine (e fechá-la manualmente). Agora, enquanto Philip a agita
na penumbra, ela parece uma excelente arma improvisada. — Isso já serve — murmura.
— Como é que isso foi acontecer, Philly? — insiste Nick, se agachando quando mais um
raio ilumina a cabine.
— PORRA!
E de repente Philip bate com a vara de ferro no painel, mandando estilhaços de plástico
pelos ares e fazendo todo mundo pular. Ele bate outra vez, quebrando o rádio de comunicação. E
bate mais uma vez e depois mais outra com toda a força, arrebentando os controles e quebrando a
caixa com o dinheiro das passagens, moedas voam pelos ares. E continua a quebrar o painel até
ficar totalmente destruído.
Finalmente, com as veias saltando para fora do pescoço e o rosto consumido de raiva, ele se
vira para Nick Parsons e enterra o olhar no amigo.
— Será que você poderia calar a porra da sua boca?!
Nick só fica olhando para ele.
Nos fundos do ônibus, sentada ao lado de Brian, Penny Blake desvia o olhar e vê, pela
janela, a chuva suja escorrendo em pequenos riachos pelo vidro. Sua fisionomia se enrijece, como
se ela estivesse resolvendo um complicado problema matemático, complexo demais para a idade.
Enquanto isso, lá na frente, Nick está congelado de pavor.
— Fica calmo, Philly. Eu só estava... pensando em voz alta, sabe como é? Eu não estava
falando sério. É só que eu me acostumei àquele lugar.
Philip lambe os lábios. O fogo no olhar fica mais brando. Ele inspira profundamente e solta
um suspiro doloroso. Põe a vara na cadeira do motorista.
— Olha... Me desculpa... Eu entendo como você se sente. Mas assim é melhor. Sem
eletricidade, aquele apartamento vai ser um verdadeiro freezer no meio de novembro.
Nick continua olhando para baixo.
— É... Eu acho que entendi.
— Desse jeito é melhor, Nicky.
— É claro.
Nessa hora, Brian diz a Penny que volta logo e sai da poltrona.
Ele anda pelo corredor, abaixado, acocorado sob o nível das janelas, até se juntar a Nick e ao
irmão.
— Qual é o plano, Philip?
— A gente vai encontrar um lugar onde possa fazer uma fogueira. Não dá para fazer uma
fogueira dentro de um apartamento.
— Nick, quantas “zonas de segurança” além desta aqui você mapeou?
— O suficiente para sair desta parte da cidade, com um ou dois golpes de sorte.
— Mesmo assim, mais cedo ou mais tarde a gente vai ter que encontrar um carro — opina
Brian.
— Não diga — resmunga Phillip.
— Você acha que este ônibus tem gasolina?
— Provavelmente, óleo diesel.
— Mas não interessa qual é o combustível. A gente não tem como puxar.
— Nem como armazenar — lembra Philip.
— E nem como transportar — acrescenta Nick.
— E aquela barra de ferro? — Brian aponta para a barra sobre o banco do motorista. —
Você acha que ela é pontuda o suficiente para perfurar o tanque de combustível?
— Deste ônibus? — Philip olha para a barra. — Acho que sim. Mas para que isso vai servir?
Brian engole em seco. Ele tem uma ideia.
Um por um, eles saem rapidamente pela porta de sanfona e de volta para a chuva que se
transformou numa garoa fria. O dia está meio encoberto. Philip carrega a barra de ferro e Nick, as
três garrafas de Miller Light que Brian encontrou debaixo das poltronas. Brian mantém Penny junto
dele — há vultos escuros visíveis em todas as direções, os mais próximos talvez a um quarteirão de
distância — e o tempo está passando.
Volta e meia, os raios deixam a cidade da cor do magnésio, iluminando os mortos que vêm
dos dois lados da rua. Alguns dos Mordedores perceberam seres humanos dando a volta
rapidamente no ônibus e agora esses zumbis se aproximam com um objetivo mais definido, naquele
passo lerdo.
Philip sabe onde fica o tanque de combustível, graças à experiência como motorista de
caminhão.
Ele se agacha ao lado do enorme pneu dianteiro e rapidamente apalpa embaixo do chassi,
procurando a base do tanque, enquanto a chuva escorre pelo queixo. O ônibus tem dois
reservatórios separados, cada um contendo 400 litros de combustível.
— Rápido, cara. Eles estão vindo! — Nick se ajoelha ao lado de Philip, com as garrafas.
Philip enfia a ponta da barra de ferro no fundo do tanque dianteiro, mas ela só consegue
amassar o reservatório. Ele dá um grito de raiva com toda a força e volta a enfiar a vara no tanque.
Dessa vez, a ponta perfura a cápsula do tanque e um filete de um líquido amarelo e viscoso
começa a esguichar por cima dos braços e das mãos de Philip. Nick se aproxima e enche
rapidamente a primeira garrafa de 350 ml.
Um trovão ecoa no céu, seguido pelo clarão de mais um raio. Brian olha por cima do ombro
e vê um regimento completo de mortos-vivos — agora mais perto, no clarão que iluminou o dia, a
apenas 25 metros de distância —, muitos dos rostos perfeitamente visíveis à luz branca do raio.
Um deles não tem o maxilar, outro caminha com os intestinos despontando de um buraco
enorme no estômago.
— Rápido, Nick! Rápido! — Brian já está com pedaços de uma camisa rasgada prontos
numa das mãos e o isqueiro na outra. Ele se mexe nervoso ao lado de Penny, que está fazendo o
possível para ser corajosa, cerrando os punhos e mordendo os lábios, enquanto fica de olho no
exército de cadáveres ambulantes que se aproxima.
— Aqui tem uma, vai. VAI! — Nick passa a primeira garrafa de gasolina para Brian. Ele põe
o trapo na garrafa e então a vira rapidamente de cabeça para baixo, até o trapo ficar ensopado. É um
movimento que demora só alguns segundos, mas Brian pode sentir que o tempo está se esgotando e
a presença de centenas de Mordedores cada vez mais próxima. O isqueiro produz um fogo que o
vento apaga rapidamente.
— Vamos lá, cara... Vamos. Vamos! — Philip se vira para a horda que se aproxima,
erguendo a barra de ferro. Atrás dele, Brian protege com as mãos o pavio e finalmente consegue
acendê-lo. O trapo pega fogo, as chamas passando pelo lado da garrafa, alimentando-se de
combustível.
Brian joga o coquetel molotov na vanguarda da legião.
A garrafa se estilhaça a 1,5 metro dos zumbis mais próximos e explode numa bola de fogo
amarela, o som ecoando na neblina. Vários cadáveres recuam diante daquele clarão e do calor
inesperado, alguns deles batendo nos colegas, derrubando-os como se fossem peças de dominó. Em
geral, a imagem dos monstros tropeçando uns nos outros deveria ser quase que engraçada, mas no
momento não.
Agora, Philip pega a segunda garrafa e enfia o trapo dentro.
— Passa o isqueiro! — Brian passa o Bic para ele. — Agora se manda! — ordena Philip,
pondo fogo no trapo e jogando a garrafa incendiária no exército de monstros vindos da direção
contrária.
Dessa vez, a garrafa aterrissa bem no meio deles, pondo fogo no meio das tropas e
incendiando pelo menos uma dúzia de Mordedores com a ferocidade de um ataque de napalm.
Brian nem olha para trás enquanto recolhe Penny do chão e vai atrás de Nick, numa corrida
desabalada até a barbearia.
Brian, Penny e Nick já estão no meio do caminho até a próxima zona de segurança quando
percebem que Philip está ficando para trás.
— Que diabo ele está fazendo? — A voz de Nick é desesperada e estridente, enquanto ele se
esconde na porta de mais uma loja tapada por tábuas.
— E eu sei lá! — responde Brian, se agachando na porta com Penny e olhando para o irmão.
A 100 metros dali, Philip está gritando frases obscenas e desarticuladas para os monstros e
brandindo a barra de ferro contra um atacante. O zumbi em chamas se aproxima dele em meio às
fagulhas e à fumaça.
— Ai, meu Deus! — Brian protege o rosto de Penny. — Abaixa. ABAIXA!
A distância, Philip Blake se afasta da multidão com o isqueiro levantado numa das mãos e o
ferro ensanguentado na outra, com uma espécie de violência viking tomando conta dele, toda a
raiva reprimida aparecendo numa série de gestos exuberantes e exagerados.
Ele faz uma parada e taca fogo numa poça de combustível que escorre de debaixo do ônibus,
depois se vira e corre com a velocidade de um atacante com o campo livre à frente.
Atrás dele, a poça de combustível pega fogo e se alastra, as chamas azuis se dirigindo para a
enorme carroceria de aço. Philip transpõe cerca de 50 metros de asfalto molhado, arrebentando as
cabeças de uma meia dúzia de Mordedores pelo caminho, enquanto o fogo sobe pelo lado do
ônibus.
Um baque grave e subsônico se ergue por cima da chuva e dos gemidos dos zumbis. Philip
não consegue ver Brian e os outros no meio da neblina à frente.
— PHILIP! AQUI!
O grito de Brian é um farol e Philip mergulha na direção daquele som, exatamente quando a
explosão faz a terra tremer e uma tarde cinza e escura se transforma na própria superfície do sol.
Nenhum deles consegue ver direito. São todos lançados contra uma porta dentro do recinto
coberto de tábuas, protegendo os rostos dos destroços flamejantes — pedaços do ônibus, estilhaços
de metal e uma chuva de cacos de vidro — que passam voando pela porta. Brian consegue ver um
pouco do reflexo pela vitrine de uma loja do outro lado da rua: a explosão, a meia quadra de
distância, mandou um ônibus de 20 toneladas pelos ares, num enorme e horrível cogumelo de fogo,
a força da explosão destruindo a carroceria, a onda de ferro quente atravessando uma multidão de
zumbis com o brilho violento de uma supernova. Inúmeros corpos são varridos pela onda,
incinerados pelo fogo, alguns deles despedaçados pelos estilhaços que voam pelos ares, as partes
mortas dos corpos voando pelo céu da tempestade, como uma revoada de pássaros tentando fugir.
Um pedaço incendiado do para-lama cai a 5 metros de distância da porta.
Todo mundo pula com o barulho daquele escombro, os olhos arregalados de susto.
— Puta que o pariu! PUTA QUE O PARIU! — exclama Nick, protegendo o rosto com as
mãos. Brian abraça Penny com força, sem dizer uma palavra, momentaneamente paralisado.
Philip enxuga o rosto com as costas da mão e olha em volta da porta, assustado como um
sonâmbulo que acabou de acordar.
— Muito bem. — Ele olha por cima do ombro e então para Nick. — Onde fica a tal
barbearia?