domingo, 20 de outubro de 2013

Sansa - A Guerra dos Tronos

Sansa chegou ao torneio da Mão, com a Septã Mordane e Jeyne Poole, numa liteira com
cortinas de uma seda amarela tão fina que se conseguia ver através delas. Transformavam o
mundo inteiro em ouro. Para lá das muralhas da cidade, tinha sido erguida uma centena de
pavilhões junto ao rio, e a plebe chegou aos milhares para assistir aos jogos. O esplendor de tudo
aquilo tirou o fôlego de Sansa; as armaduras brilhantes, os grandes cavalos ornados com prata e
ouro, os gritos da multidão, os estandartes esvoaçando ao vento… e os próprios cavaleiros, acima
de tudo os cavaleiros.
– É melhor do que nas canções – ela sussurrou quando encontraram os lugares que o pai lhe
prometera, entre os grandes senhores e senhoras.
Sansa estava belamente vestida naquele dia, num vestido verde que lhe realçava o arruivado dos
cabelos, e estava consciente de que a admiravam e sorriam.
Viram os heróis de cem canções avançar, cada um mais fabuloso que o anterior. Os sete
cavaleiros da Guarda Real desceram ao campo, todos, menos Sor Jaime Lannister, com armaduras
de escamas da cor do leite e mantos tão alvos como neve recém-caída. Sor Jaime vestia também o
manto branco, mas por baixo brilhava em ouro da cabeça aos pés, com um elmo em forma de
cabeça de leão e uma espada dourada. Sor Gregor Clegane, a Montanha Que Cavalga, trovejou
como uma avalanche ao passar por eles. Sansa reconheceu Lorde Yohn Royce, que visitara
Winterfell dois anos antes.
– Sua armadura é de bronze, com milhares e milhares de anos, com runas mágicas gravadas que
o protegem do perigo – sussurrou para Jeyne. Septã Mordane indicou-lhes Lorde Jason Mallister,
vestido de índigo com relevos de prata e com as asas de uma águia no elmo. Abatera três dos
vassalos de Rhaegar no Tridente. As moças rebentaram em risinhos ao ver o sacerdote guerreiro
Thoros de Myr, com sua larga toga vermelha e a cabeça raspada, até que a septã lhes contou que
certa vez tinha escalado as muralhas de Pyke com uma espada em chamas na mão.
Havia outros competidores que Sansa não conhecia; pequenos cavaleiros dos Dedos, de Jardim
de Cima ou das montanhas de Dorne, cavaleiros livres jamais celebrados e homens recémnomeados
escudeiros, os filhos mais novos de grandes senhores e os herdeiros de Casas menores.
Homens mais jovens, muitos ainda não tinham realizado grandes feitos, mas Sansa e Jeyne
concordaram que um dia os Sete Reinos ressoariam ao som de seus nomes. Sor Balon Swann,
Lorde Bryce Caron, das Marcas. O herdeiro do bronze de Yohn, Sor Andar Royce, e o irmão mais
novo, Sor Robar, cujas placas de aço prateado traziam a mesma filigrana em bronze de antigas
runas que protegia o pai. Os gêmeos, Sor Horas e Sor Hobber, cujos escudos exibiam o símbolo do
cacho de uvas dos Redwyne, bordô sobre azul. Patrek Mallister, filho de Lorde Jason. Os seis Frey
da Travessia: Sor Jared, Sor Hosteen, Sor Danwell, Sor Emmon, Sor Theo, Sor Perwyn, filhos e
netos do velho Lorde Walder Frey, e também o filho bastardo, Martyn Rivers.
Jeyne Poole confessou-se assustada pelo aspecto de Jalabhar Xho, um príncipe exilado das Ilhas
do Verão que usava uma capa de penas em verde e escarlate por cima de uma pele escura como a
noite, mas quando viu o jovem Lorde Beric Dondarrion, com os cabelos como ouro vermelho e o
escudo negro atravessado por um relâmpago, anunciou-se pronta para se casar com ele naquele
momento.
Cão de Caça também integrava a lista de participantes, e igualmente dela constava o irmão do
rei, o atraente Lorde Renly de Ponta Tempestade. Jory, Alyn e Harwin competiam por Winterfell e
pelo Norte.
– Jory parece um pedinte ao lado dos outros – fungou Septã Mordane quando ele surgiu. Sansa
só podia concordar. A armadura de Jory era feita de metal azul-acinzentado sem distintivos ou
ornamentos, e um fino manto cinza pendia-lhe dos ombros como um trapo sujo. Mas saiu-se bem,
derrubando Horas Redwyne na primeira justa e um dos Frey na segunda. No terceiro encontro, fez
três passagens por um cavaleiro livre chamado Lothor Brune, cuja armadura era tão sem graça
como a sua. Nenhum dos homens caiu do cavalo, mas a lança de Brune era mais firme e seus
golpes, mais bem colocados, e o rei concedeu-lhe a vitória. Alyn e Harwin não estiveram tão bem;
Harwin foi desmontado ao primeiro golpe por Sor Meryn, da Guarda Real, ao passo que Alyn caiu
perante Sor Balon Swann.
A justa prolongou-se por todo o dia e entrou pelo crepúsculo, com os cascos dos grandes
cavalos de batalha batendo o terreno até transformá-lo num descampado irregular de terra revolta.
Uma dúzia de vezes Jeyne e Sansa gritaram em uníssono quando cavaleiros chocaram as lanças
com estrondo, explodindo-as em lascas, enquanto os plebeus gritavam por seus favoritos. Jeyne
cobria os olhos sempre que um homem caía, como uma menininha assustada, mas Sansa era feita
de material mais firme. Uma grande senhora sabia como se comportar em torneios. Até Septã
Mordane reparou em sua compostura e fez um aceno de aprovação.
O Regicida competiu brilhantemente. Derrotou Sor Andar Royce e Lorde Bryce Caron, das
Marcas, tão facilmente como se estivesse investindo sobre aros, e depois teve um duro encontro
com o experiente Barristan Selmy, que vencera os dois primeiros embates contra homens trinta e
quarenta anos mais novos.
Sandor Clegane e o imenso irmão, Sor Gregor, a Montanha, também pareciam imbatíveis,
derrotando adversário atrás de adversário num estilo feroz. O mais aterrador momento do dia
chegou durante a segunda justa de Sor Gregor, quando sua lança se ergueu e atingiu, sob o gorjal,
um jovem cavaleiro vindo do Vale, com tanta força que lhe trespassou a garganta, matando-o
instantaneamente. O jovem caiu a menos de três metros de onde Sansa se encontrava. A ponta da
lança de Sor Gregor quebrara-se no pescoço do jovem e o sangue de sua vida fluiu em lentas
golfadas, cada uma mais fraca que a anterior. Sua armadura brilhava de tão nova; uma brilhante
faixa de fogo corria pelo braço estendido onde o aço capturava a luz. Então, o sol se escondeu
atrás de uma nuvem, que desapareceu. O manto era azul, da cor do céu num dia límpido de verão,
ornamentado com uma borda de luas crescentes, mas quando o sangue o encharcou, o tecido
escureceu e as luas foram se tornando vermelhas, uma a uma.
Jeyne Poole chorou tão histericamente que Septã Mordane acabou por levá-la dali até que
recuperasse a compostura, mas Sansa ficou sentada, com as mãos fechadas sobre o colo,
observando com um estranho fascínio. Nunca antes tinha visto um homem morrer. Também devia
chorar, pensou, mas as lágrimas não vinham. Talvez tivesse gasto todas elas com Lady e Bran.
Disse a si mesma que seria diferente se tivesse sido Jory, Sor Rodrik ou seu pai. O jovem
cavaleiro do manto azul não era nada para ela, um estranho qualquer vindo do Vale de Arryn, cujo
nome esquecera assim que o ouvira. E agora o mundo também esqueceria seu nome, concluiu; não
haveria canções em sua honra. Era triste.
Depois de levarem o corpo, um rapaz com uma pá correu para o campo e atirou terra sobre o
local onde o jovem caíra, para cobrir o sangue. E então recomeçaram as justas.
Sor Balon Swann também caiu perante Gregor, e Lorde Renly, perante Cão de Caça. Renly foi
desmontado tão violentamente que pareceu voar para trás, para longe do adversário, com as pernas
para o ar. A cabeça bateu no chão com um crac audível que fez a multidão prender a respiração,
mas era apenas o chifre de ouro do elmo. Um dos galhos tinha se partido sob seu peso. Quando
Lorde Renly se pôs em pé, o público aplaudiu ruidosamente, pois o bonito irmão mais novo do Rei
Robert era muito popular. Entregou o chifre partido ao seu vencedor com uma reverência cortês.
Cão de Caça resfolegou e atirou a haste partida à multidão, onde a arraia-miúda desatou aos socos
e aos empurrões na disputa pelo pequeno bocado de ouro, até que Lorde Renly surgiu entre eles
para restaurar a paz. A essa altura Septã Mordane já regressara, sozinha. Jeyne sentira-se doente,
explicou; ajudara-a a voltar ao castelo. Sansa quase se esquecera de Jeyne.
Mais tarde, um pequeno cavaleiro com um manto xadrez caiu em desgraça ao matar o cavalo de
Beric Dondarrion e foi desclassificado. Lorde Beric mudou a sela para uma nova montaria, apenas
para ser derrubado logo a seguir por Thoros de Myr. Sor Aron Santugar e Lothor Brune investiram
três vezes sem resultado; Sor Aron caiu depois perante Lorde Jason Mallister, e Brune, perante o
filho mais novo de Yohn Royce, Robar.
No fim, restaram quatro: Cão de Caça; seu monstruoso irmão Gregor; Jaime Lannister, o
Regicida; e Sor Loras Tyrell, o jovem a quem chamavam Cavaleiro das Flores.
Sor Loras era o filho mais novo de Mace Tyrell, senhor de Jardim de Cima e Protetor do Sul.
Com dezesseis anos, era o mais novo cavaleiro em campo, mas naquela manhã, em suas primeiras
três justas, tinha derrubado três cavaleiros da Guarda Real. Sansa nunca vira ninguém tão belo.
Sua placa de peito estava primorosamente moldada e adornada como um buquê de mil flores
diferentes, e seu garanhão branco como a neve estava envolvido em uma manta de rosas
vermelhas e brancas. Depois de cada vitória, Sor Loras tirava o elmo, cavalgava devagar em torno
do alambrado, e por fim tirava uma única rosa branca da manta e a atirava a alguma bela donzela
que visse na multidão. Seu último encontro do dia foi com o Royce mais novo. As runas ancestrais
de Sor Robar pouca proteção providenciaram, pois Sor Loras quebrou-lhe o escudo e o arrancou da
sela, fazendo-o cair com um horrível estrondo. Robar ficou gemendo enquanto o vencedor fazia
seu circuito do campo. Por fim, chamaram uma liteira e levaram o vencido para sua tenda,
aturdido e imóvel. Sansa nem o viu. Só tinha olhos para Sor Loras. Quando o cavalo branco parou
na sua frente, pensou que seu coração arrebentaria.
Às outras donzelas dera rosas brancas, mas a que escolheu para ela era vermelha.
– Querida senhora – disse –, nenhuma vitória possui sequer metade de sua beleza – Sansa
recebeu a rosa timidamente, estupidificada pelo galanteio. Os cabelos do jovem eram uma massa
de grandes cachos castanhos, seus olhos eram como ouro líquido. Inalou a doce fragrância da rosa
e ficou agarrada a ela até muito depois de Sor Loras ter se afastado.
Quando Sansa acabou por finalmente olhar para cima, um homem estava em pé à sua frente,
sem desviar o olhar. Era baixo, com uma barba pontiaguda e um fio de prata nos cabelos, quase
tão velho como seu pai.
– A senhora deve ser uma de suas filhas – o homem lhe disse. Tinha olhos cinza-esverdeados
que não sorriam quando a boca o fazia. – Tem o jeito dos Tully.
– Sou Sansa Stark – ela disse, pouco à vontade. O homem usava um manto pesado, com
colarinho de peles, atado com um tejo de prata, e possuía as maneiras fáceis de um grande senhor,
mas ela não o conhecia. – Não tive a honra, senhor.
Septã Mordane foi rápida em vir em seu auxílio.
– Querida menina, este é o Senhor Petyr Baelish, do pequeno conselho do rei.
– Sua mãe foi em tempos passados a minha rainha da beleza – disse o homem calmamente. Seu
hálito cheirava a menta. – Tem os cabelos dela – Sansa sentiu os dedos dele no rosto quando lhe
afagou uma madeixa arruivada. De forma bastante abrupta, virou-se e afastou-se.
A essa altura, a lua já ia bastante alta e a multidão estava cansada, e o rei acabava de decretar
que os últimos três encontros seriam disputados na manhã seguinte, antes do corpo a corpo.
Enquanto os plebeus se dirigiam para suas casas, conversando sobre as justas do dia e os embates
da manhã seguinte, a corte deslocou-se até as margens do rio a fim de dar início ao festim. Seis
monumentais auroques estavam assando havia horas, girando lentamente em espetos de madeira,
enquanto os ajudantes de cozinha os untavam com manteiga e ervas até a carne começar a
crepitar. Mesas e bancos tinham sido montados fora dos pavilhões, e neles tinham sido colocadas
grandes pilhas de ervamel, morangos e pão fresco.
Sansa e Septã Mordane receberam lugares de grande honra, à esquerda do estrado elevado onde
o próprio rei se sentava com sua rainha. Quando Príncipe Joffrey se sentou à sua direita, Sansa
sentiu sua garganta apertar. Ele não lhe dirigira uma palavra desde aqueles terríveis eventos, e ela
não se atrevia a falar com ele. A princípio pensou que o odiava pelo que fizera a Lady, mas depois
de chorar até ficar sem lágrimas dissera a si mesma que não tinha sido obra de Joffrey, não
verdadeiramente. Fora a rainha quem fizera aquilo; era ela que devia odiar, ela e Arya. Nada de
mal teria acontecido se não fosse Arya.
Naquela noite não podia odiar Joffrey. Era bonito demais para ser odiado. Vestia um gibão de
um profundo tom de azul ornamentado com uma fileira dupla de cabeças de leão, e trazia em volta
da testa uma estreita coroa feita de ouro e safiras. Os cabelos eram tão brilhantes como metal.
Sansa olhou para ele e estremeceu, com medo de que a ignorasse ou, pior ainda, voltasse a ficar
detestável e a fizesse fugir da mesa chorando.
Mas, em vez disso, Joffrey sorriu e beijou-lhe a mão, belo e galante como qualquer príncipe das
canções, e disse: – Sor Loras tem bom olho para a beleza, querida senhora.
– Ele foi muito gentil – ela objetou, tentando permanecer modesta e calma, embora seu coração
cantasse. – Sor Loras é um verdadeiro cavaleiro. Julga que ele ganha amanhã, senhor?
– Não – disse Joffrey. – Meu cão dará conta dele, ou talvez meu tio Jaime. E dentro de alguns
anos, quando tiver idade para entrar no torneio, darei conta de todos eles – ergueu a mão para
chamar um criado que trazia um jarro de vinho de verão gelado e serviu-se de uma taça. Ela olhou
ansiosa para Septã Mordane, até que Joffrey se inclinou e encheu também a taça da septã, que lhe
fez um aceno de cabeça, agradeceu-lhe amavelmente, mas não disse uma palavra.
Os criados mantiveram as taças cheias toda a noite, mas, mais tarde, Sansa não conseguiu se
lembrar sequer de ter provado o vinho. Não precisava de vinho. Estava ébria da magia da noite,
entontecida por seus encantos, arrebatada por belezas com que sonhara toda a vida e nunca se
atrevera a ter esperança de conhecer. Cantores sentavam-se perante o pavilhão do rei, enchendo o
crepúsculo de música. Um malabarista manteve uma cascata de clavas em chamas rodopiando no
ar. O bobo privado do rei, o simplório de rosto em forma de torta, chamado Rapaz Lua, dançou por
ali equilibrado em pernas—de-pau, vestido de cores variadas, fazendo troça de toda a gente com
tão hábil crueldade que Sansa perguntou a si mesma se o homem seria mesmo lento. Até Septã
Mordane foi impotente contra ele; quando cantou sua cançoneta acerca do Grande Septão, ela riu
tanto que derramou vinho no vestido.
E Joffrey era a alma da cortesia. Falou toda a noite com Sansa, derramando elogios, fazendo-a
rir, partilhando com ela bocadinhos dos mexericos da corte, explicando as brincadeiras do Rapaz
Lua. Sansa ficou tão cativada que esqueceu toda a educação e ignorou Septã Mordane, sentada à
sua esquerda.
E durante todo o tempo os pratos iam e vinham. Uma espessa sopa de cevada e veado. Saladas
de ervamel, espinafre e ameixas, salpicadas de nozes esmagadas. Caracóis em alho e mel. Sansa
nunca antes tinha comido caracóis; Joffrey mostrou-lhe como tirar o animal da casca e levou à
boca a primeira daquelas delicadas porções. Depois vieram trutas recém-pescadas do rio, cozidas
em barro; seu príncipe a ajudou a partir a dura crosta escamosa para expor a carne branca que se
encontrava no interior. E, quando foi trazido o prato de carne, foi ele que a serviu, cortando uma
porção digna de uma rainha e sorrindo ao depositá-la em seu prato. Ela podia ver, pelo modo
como se movia, que o braço direito ainda o incomodava, mas ele não se queixou uma única vez.
Mais tarde chegaram timo de vitela, tortas de pombo, maçãs cozidas aromatizadas com canela e
bolos de limão cobertos de açúcar, mas Sansa já estava tão cheia que não conseguiu comer mais
que dois pequenos bolos de limão, por mais que os adorasse. Perguntava a si mesma se poderia
arriscar um terceiro quando o rei começou a gritar.
O Rei Robert tornava-se mais ruidoso a cada prato. De vez em quando, Sansa o ouvia rir ou
rugir uma ordem por cima da música e do tinir dos pratos e talheres, mas estava longe demais para
entender as palavras. Agora todos o ouviam.
– Não – trovejou, numa voz que abafava todas as outras conversas.
Sansa ficou chocada ao ver o rei em pé, de rosto vermelho, cambaleando. Tinha uma taça de
vinho na mão e estava bêbado como um gambá.
– A senhora não me diz o que fazer, mulher – gritou à Rainha Cersei. – Sou eu aqui o rei,
entende? Eu é que governo aqui, e se digo que amanhã luto, luto mesmo!
Toda a gente o olhava. Sansa viu Sor Barristan, o irmão do rei, Renly, e o homem baixo que
falara tão estranhamente com ela e lhe tocara os cabelos, mas ninguém fez um movimento para
interferir. O rosto da rainha era uma máscara, tão vazia de sangue que poderia ter sido esculpida
em neve. Ergueu-se da mesa, recolheu as saias e saiu em silêncio, seguida por um bando de
criados.
Jaime Lannister pousou a mão no ombro do rei, mas este o empurrou com violência. O Regicida
tropeçou e caiu. O rei soltou uma gargalhada grosseira.
– O grande cavaleiro. Ainda posso atirá-lo ao chão. Lembre-se disso, Regicida – bateu no peito
com o cálice cravejado de joias, enchendo de vinho a túnica de cetim. – Deem-me meu martelo, e
não há um homem no reino que me vença.
Jaime Lannister ergueu-se e sacudiu sua roupa.
– É como diz, Vossa Graça – sua voz estava rígida.
Lorde Renly adiantou-se, sorrindo.
– Derramou seu vinho, Robert. Permita-me que lhe traga um novo cálice.
Sansa sobressaltou-se quando Joffrey pousou a mão em seu braço.
– Está ficando tarde – disse o príncipe. Tinha uma expressão estranha no rosto, como se não a
visse de todo. – Precisa de escolta na volta ao castelo?
– Não – começou Sansa. Procurou pela Septã Mordane e ficou surpresa ao vê-la com a cabeça
pousada na mesa, soltando roncos suaves e dignos. – Quero dizer… sim, muito obrigada, seria
muito gentil de sua parte. Eu estou cansada e o caminho é tão escuro. Ficaria grata por alguma
proteção.
Joffrey gritou:
– Cão!
Sandor Clegane pareceu materializar-se dentro da noite, tão rápido foi seu surgimento. Tinha
trocado a armadura por uma túnica de lã vermelha com uma cabeça de cão em couro cosida na
frente. A luz dos archotes fazia com que seu rosto queimado brilhasse num tom vermelho sem
vida.
– Sim, Vossa Graça?
– Leve minha prometida de volta para o castelo e assegure-se de que nenhum mal caia sobre ela
– o príncipe disselhe bruscamente. E sem mesmo uma palavra de despedida Joffrey afastou-se,
deixando-a ali.
Sansa podia sentir que o Cão de Caça a observava.
– A senhora esperava que Joff a levaria em pessoa? – ele riu. Tinha um riso que era como o
rosnar de cães de luta. – Há pouca chance de isso acontecer – colocou-a em pé, sem admitir
resistência. – Anda, não é a única que precisa dormir. Bebi demais e posso ter de matar meu irmão
amanhã – e riu novamente.
De súbito aterrorizada, Sansa puxou o ombro de Septã Mordane, esperando acordá-la, mas a
mulher limitou-se a ressonar mais alto. Rei Robert tinha se afastado aos tropeções e metade dos
bancos estava subitamente vazia. O festim tinha terminado, e o belo sonho terminara com ele.
Cão de Caça apanhou um archote para iluminar o caminho. Sansa o seguiu de perto. O chão era
rochoso e irregular, e a luz tremeluzente fazia com que parecesse mudar e mover-se sob seus pés.
Manteve os olhos baixos, verificando onde punha os pés. Caminharam por entre os pavilhões, cada
um com seu estandarte e sua armadura pendurada à porta, com o silêncio ficando mais pesado a
cada passo. Sansa não suportava olhá-lo, assustava-a demais, mas tinha sido educada com todas as
regras da cortesia. Disse a si mesma que uma verdadeira senhora não repararia em seu rosto.
– Hoje o senhor montou galantemente, Sor Sandor – obrigou-se a dizer.
Sandor Clegane rosnou-lhe.
– Poupe-me de seus elogiozinhos vazios, menina… ofereça-os aos seus senhores. Não sou
nenhum cavaleiro. Escarro neles e em seus juramentos. Meu irmão é um cavaleiro. Você o viu
montar hoje?
– Sim – sussurrou Sansa, tremendo. – Ele foi…
– Galante? – terminou Cão de Caça.
Sansa compreendeu que o homem zombava dela.
– Ninguém conseguiu resistir a ele – conseguiu dizer, por fim, orgulhosa de si mesma. Não era
mentira.
Sandor Clegane parou de repente no meio de um descampado escuro e vazio. Ela não teve
escolha a não ser parar ao seu lado.
– Uma septã qualquer a treinou bem. É como um daqueles pássaros das Ilhas do Verão, não é?
Um passarinho bonito e falante que repete todas as palavrinhas bonitas que lhe ensinaram a
recitar.
– Isso não foi amável – Sansa sentia o coração palpitando no peito. – Está me assustando. Quero
ir, agora.
– Ninguém conseguiu resistir a ele – repetiu o Cão de Caça em voz áspera. – É uma verdade
razoável. Ninguém nunca conseguiu resistir a Gregor. Aquele rapaz hoje, a segunda justa, ah,
aquilo foi uma bela coisinha. Você viu, não viu? O pateta do rapaz não tinha nada que montar
nesta companhia. Sem dinheiro, sem escudeiro, sem ninguém que o ajudasse com aquela
armadura. Aquele gorjal não estava preso como deve ser. Você acha que Gregor não reparou?
Acredita que a lança de Sor Gregor subiu por acaso, não é verdade? Linda garotinha falante, se
acredita nisso, tem realmente a cabeça tão oca como um pássaro. A lança de Gregor vai onde
Gregor quer que ela vá. Olhe para mim. Olhe para mim! – Sandor Clegane pôs a mão enorme sob
seu queixo e a forçou a erguer o rosto. Acocorou-se à sua frente e aproximou o archote. – Aqui
tem a beleza. Olhe bem, e olhe por muito tempo. Bem sabe que é o que deseja. Vi você virando a
cara durante todo o caminho ao longo da estrada do rei. Morrendo de medo. Veja o que quiser.
Os dedos dele seguravam-lhe o queixo com tanta força como se fossem uma armadilha de ferro.
Os olhos observavam os dela. Olhos ébrios, carregados de ira. Ela tinha de olhar.
O lado direito de seu rosto era magro, com ossos aguçados e um olho cinzento sob uma pesada
sobrancelha. O nariz era grande e adunco, os cabelos, finos e escuros. Usava-os longos e escovavaos
para o lado, porque nenhum cabelo crescia do outro lado daquele rosto.
O lado esquerdo de sua face era uma ruína. A orelha tinha desaparecido, queimada; nada restava
a não ser um buraco. O olho ainda estava em bom estado, mas em volta dele havia uma retorcida
massa de cicatrizes, pele lisa e negra, dura como couro, semeada de crateras e rasgada por
profundas fendas que cintilavam em tons de vermelho quando ele se movia. Na região do maxilar
podia-se ver um pouco de osso onde a carne fora arrancada.
Sansa começou a chorar. Ele então a largou e apagou o archote no chão.
– Não há palavras bonitas para isto, menina? Nenhum elogiozinho que a septã lhe tenha
ensinado? – sem obter resposta, prosseguiu. – A maior parte deles julga que foi uma batalha. Um
cerco, uma torre ardendo, um inimigo com um archote. Um palerma me perguntou se tinha sido
fogo de um dragão – daquela vez a gargalhada foi mais fraca, mas não menos amargurada. – Eu
lhe conto o que foi, menina – disse, uma voz vinda da noite, uma sombra que agora se inclinava
para tão perto que conseguia sentir o fedor amargo do vinho em seu hálito. – Era mais novo do que
você, com seis anos, talvez sete. Um marceneiro montou uma loja na aldeia que ficava abaixo da
fortaleza de meu pai e, para comprar favores, enviou-nos presentes. O velho fazia brinquedos
maravilhosos. Não me lembro do que recebi, mas era o presente de Gregor que eu desejava. Um
cavaleiro de madeira, todo pintado, com cada articulação presa em separado e fixada com cordas
para que se pudesse pô-lo a lutar. Gregor é mais velho que eu cinco anos, o brinquedo não
significava nada para ele, já era um escudeiro com quase um metro e oitenta e musculoso como
um touro. Portanto, tirei dele o cavaleiro, mas posso lhe dizer que não houve nenhuma alegria
nisso. Tive medo o tempo todo, e realmente ele me encontrou. Havia um braseiro na sala. Gregor
não disse uma única palavra, limitou-se a me colocar debaixo do braço e a enfiar o lado da minha
cara nos carvões em brasa, deixando-me lá enquanto eu gritava sem parar. Viu como ele é forte.
Mesmo naquele tempo, foram precisos três homens fortes para afastá-lo de mim. Os septões
pregam sobre os sete infernos. Que sabem eles? Só um homem que já tenha sido queimado sabe
realmente como é o inferno. “Meu pai disse a todos que meus cobertores tinham pegado fogo, e o
nosso meistre me deu unguentos. Unguentos! Gregor também recebeu seus unguentos. Quatro
anos mais tarde, ungiram-no com os sete óleos, recitou seus votos de cavaleiro e Rhaegar
Targaryen bateu em seu ombro e disse: ‘Erguei-vos, Sor Gregor’. ”
A voz áspera extinguiu-se. Ficou acocorado em silêncio na frente dela, uma pesada silhueta
negra envolta na noite, escondido de seus olhos. Sansa ouvia a respiração irregular do homem.
Compreendeu que se sentia triste por ele. De algum modo, o medo tinha desaparecido.
O silêncio prolongou-se durante muito tempo, tanto que começou de novo a sentir medo, mas
agora seu medo era por ele, não por si própria. Encontrou o massivo ombro dele com a mão.
– Ele não era um verdadeiro cavaleiro – sussurrou-lhe.
Cão de Caça atirou a cabeça para trás e rugiu. Sansa tropeçou para trás, afastando-se dele, mas
ele pegou seu braço.
– Não – rosnou –, não, passarinho, ele não era um verdadeiro cavaleiro.
Ao longo do resto do caminho até a cidade Sandor Clegane não disse uma palavra. Levou-a até
onde as carroças esperavam, disse a um condutor para levá-los à Fortaleza Vermelha e subiu na
carroça atrás dela. Atravessaram em silêncio o Portão do Rei e as ruas iluminadas por archotes da
cidade. Abriu a porta de acesso e a levou para dentro do castelo, com o rosto queimado a contrairse
em espasmos e os olhos alertas, sempre um passo atrás enquanto subiram as escadas da torre.
Levou-a em segurança ao longo de todo o caminho até o corredor que dava aos seus aposentos.
– Obrigada, senhor – Sansa disse humildemente.
Cão de Caça agarrou-lhe o braço e inclinou-se para a frente.
– As coisas que te disse esta noite – falou, com a voz ainda mais áspera que de costume. – Se
algum dia contá-las a Joffrey… a sua irmã, ao seu pai… a algum deles…
– Não conto – sussurrou Sansa. – Prometo.
Não era o suficiente.
– Se algum dia contar a alguém – terminou ele –, eu a mato.

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