segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Eddard - A Guerra dos Tronos

Eu mesmo o velei – disse Sor Barristan Selmy, olhando o corpo que jazia na parte de trás da carroça. – Ele
não tinha mais ninguém. Falaram-me que talvez uma mãe, no Vale.
À fraca luz da madrugada, o jovem cavaleiro parecia estar dormindo. Não fora bonito em vida,
mas a morte suavizara-lhe as feições rudemente talhadas, e as irmãs silenciosas o tinham vestido
com sua melhor túnica de veludo, com um colarinho elevado para cobrir a ruína em que a lança
tinha transformado sua garganta. Eddard Stark olhou seu rosto e perguntou a si mesmo se teria
sido ele o causador da morte do rapaz. Morto por um vassalo dos Lannister antes que Ned pudesse
falar com ele; seria possível que não passasse de mero acaso? Supôs que nunca chegaria a saber.
– Hugh foi escudeiro de Jon Arryn durante quatro anos – prosseguiu Selmy. – O rei o armou
cavaleiro antes de partir para o Norte, em memória de Jon. O rapaz desejava aquilo
desesperadamente, mas temo que não estivesse pronto.
Ned dormira mal na noite anterior e sentia um cansaço maior do que seria de esperar da idade.
– Nenhum de nós jamais está pronto.
– Para ser armado cavaleiro?
– Para a morte – com gentileza, Ned cobriu o rapaz com seu manto azul manchado de sangue e
debruado por luas crescentes. Refletiu amargamente que, quando a mãe perguntasse por que razão
o filho estava morto, lhe diriam que tinha lutado em honra da Mão do Rei, Eddard Stark. – Isso foi
desnecessário. A guerra não devia ser um jogo – Ned virou-se para a mulher que estava ao lado da
carroça, envolta em cinza, com o rosto escondido, apenas os olhos à mostra. As irmãs silenciosas
preparavam os homens para a sepultura, e era má sorte olhar a morte no rosto.
– Envie sua armadura para casa, para o Vale. A mãe deve querê-la.
– Vale uma boa quantia em prata – disse Sor Barristan. – O rapaz mandou-a forjar
especialmente para o torneio. Um trabalho simples, mas bom. Não sei se acabou de pagar ao
ferreiro.
– Pagou ontem, senhor, e pagou caro – respondeu Ned. E à irmã silenciosa disse: – Envie a
armadura à sua mãe. Lidarei com o ferreiro – a mulher fez-lhe uma reverência.
Mais tarde, Sor Barristan acompanhou Ned até o pavilhão do rei. O acampamento começava a
se agitar. Salsichas gordas chiavam e pingavam sobre fogueiras, temperando o ar com os odores
do alho e da pimenta. Jovens escudeiros caminhavam apressados por ali, conversando, enquanto
seus senhores acordavam, bocejando e espreguiçando-se, saudando o dia. Um criado com um
ganso debaixo do braço dobrou o joelho ao vê-los. “Senhores”, murmurou, enquanto o ganso
grasnava e lhe bicava os dedos. Os escudos exibidos à porta de todas as tendas anunciavam seus
ocupantes: a águia de prata de Guardamar, o campo de rouxinóis de Bryce Caron, um cacho de
uvas para os Redwyne, o javali malhado, o touro vermelho, a árvore flamejante, o carneiro branco,
a espiral tripla, o unicórnio roxo, as donzelas dançantes, a víbora negra, as torres gêmeas, a coruja
chifruda e, por fim, os brasões de um branco puro da Guarda Real, brilhando como a madrugada.
– O rei pretende participar do corpo a corpo hoje – disse Sor Barristan enquanto passavam pelo
escudo de Sor Meryn, com a tinta maculada por um profundo golpe onde a lança de Loras Tyrell
marcara a madeira ao derrubá-lo da sela.
– Sim – disse Ned em tom sombrio. Jory acordara-o na noite anterior para lhe dar a notícia. Não
admirava que tivesse dormido tão mal.
O olhar de Sor Barristan estava perturbado.
– Diz-se que as belezas da noite esmorecem de madrugada, e que os filhos do vinho são
frequentemente renegados à luz da manhã.
– É o que dizem – concordou Ned –, mas não de Robert – outros homens poderiam reconsiderar
as palavras ditas em bravatas ébrias, mas Robert Baratheon as recordaria e, recordando-as, nunca
recuaria.
O pavilhão do rei erguia-se perto da água, e as neblinas matinais que o rio gerava tinham-no
rodeado de colunas cinza. Era todo de seda dourada, a maior e mais imponente estrutura no
acampamento. À porta, o martelo de batalha de Robert encontrava-se em exibição, junto a um
imenso escudo de ferro decorado com o veado coroado da Casa Baratheon.
Ned tivera esperança de encontrar o rei ainda na cama, num sono ensopado em vinho, mas a
sorte não estava com ele. Encontraram Robert bebendo cerveja de um corno polido e rugindo seu
descontentamento com dois jovens escudeiros que tentavam atar-lhe a armadura.
– Vossa Graça – dizia um, quase em lágrimas –, é muito pequena, não vamos conseguir –
atrapalhou-se, e o gorjal que tentava prender em torno do grosso pescoço de Robert caiu no chão.
– Pelos sete infernos! – Robert praguejou. – Terei de fazer tudo eu mesmo? Vão os dois para o
raio que os parta. Pegue isso. Não fique aí de boca aberta, Lancel, pegue isso! – o rapaz deu um
salto e o rei reparou na companhia. – Olhe para estes imbecis, Ned. Minha mulher insistiu que
tomasse estes dois como escudeiros, e são menos que inúteis. Sequer são capazes de pôr a
armadura de um homem sobre seu corpo. Escudeiros, dizem eles. Eu digo que são mais é criadores
de porcos vestidos de seda.
Ned não precisou mais que uma olhadela para compreender a dificuldade.
– Não é culpa dos rapazes – disse ao rei. – Você está gordo demais para a sua armadura, Robert.
Robert Baratheon bebeu um longo trago de cerveja, atirou o corno vazio para cima de suas peles
de dormir, limpou a boca nas costas da mão e disse em tom sombrio: – Gordo? Gordo, é isso? É
assim que você fala com seu rei? – e soltou sua gargalhada, súbita como uma tempestade. – Ah,
maldito seja, Ned, por que é que você sempre tem razão?
Os escudeiros sorriram nervosamente, até que o rei se virou para eles.
– Vocês. Sim, vocês dois. Ouviram a Mão. O rei está muito gordo para a sua armadura. Vão à
procura de Sor Aron Santagar. Digam-lhe que preciso do esticador de peitorais. Já! O que estão
esperando?
Os rapazes tropeçaram um no outro com a pressa de sair da tenda. Robert conseguiu manter
uma expressão severa até eles saírem. Então caiu numa cadeira, tremendo de tanto rir.
Sor Barristan Selmy riu com ele. Até Eddard Stark deu um sorriso. Mas os pensamentos mais
graves imiscuíam-se sempre. Não conseguiu deixar de reparar nos dois escudeiros: rapazes
bonitos, loiros e bem constituídos. Um tinha a idade de Sansa, com longos cachos dourados; o
outro teria talvez uns quinze anos, cabelos cor de areia, um fio de bigode e os olhos verdeesmeralda
da rainha.
– Ah, gostaria de estar lá para ver a cara de Santagar – disse Robert. – Espero que tenha a
esperteza de enviá-los a outra pessoa qualquer. Deveríamos mantê-los correndo o dia inteiro!
– Aqueles rapazes – Ned lhe perguntou– são Lannister?
Robert assentiu, limpando as lágrimas dos olhos.
– Primos. Filhos do irmão de Lorde Tywin. Um dos mortos. Ou talvez o vivo, agora que penso
nisso. Não me lembro. Minha esposa vem de uma família muito grande, Ned.
Uma família muito ambiciosa, Ned pensou. Nada tinha contra os escudeiros, mas perturbava-o
ver Robert cercado por parentes da rainha, tanto acordado quanto dormindo. O apetite dos
Lannister por cargos e honrarias parecia não conhecer limites.
– Diz-se que Vossa Graça e a rainha trocaram duras palavras ontem à noite.
A vontade de rir coalhou no rosto de Robert.
– A mulher tentou me proibir de participar do corpo a corpo. Agora está amuada no castelo,
maldita seja. Sua irmã nunca teria me envergonhado assim.
– Não chegou a conhecer Lyanna como eu conheci, Robert. Você viu sua beleza, mas não o
ferro que tinha por baixo. Ela lhe teria dito que não tem nada a fazer no corpo a corpo.
– Você também? – o rei franziu as sobrancelhas. – É um homem amargo, Stark. Tempo demais
no Norte, todos os fluidos congelaram dentro de você. Pois bem, os meus continuam a correr – deu
uma batida no peito para prová-lo.
– É o rei – recordou-lhe Ned.
– Sento-me no maldito Trono de Ferro quando é preciso. Isso significa que não tenho os
mesmos apetites dos outros homens? Um pouco de vinho de vez em quando, uma mulher a gemer
na cama, a sensação de ter um cavalo entre as pernas? Pelos sete infernos, Ned, quero bater em
alguém.
Sor Barristan Selmy interveio.
– Vossa Graça – disse –, não é conveniente que o rei participe do corpo a corpo. Não seria uma
competição justa. Quem se atreveria a atingi-lo?
Robert pareceu sinceramente surpreso.
– Ora, todos eles, que raio. Se puderem. E o último homem em pé…
– … será você – concluiu Ned. Compreendera de imediato que Selmy atingira o ponto certo. Os
perigos do corpo a corpo eram apenas um atrativo para Robert, mas aquilo lhe tocou o orgulho. –
Sor Barristan tem razão. Não há um homem nos Sete Reinos que se atreva a arriscar desagradá-lo
por tê-lo ferido.
O rei pôs-se em pé, de rosto rubro.
– Está me dizendo que aqueles arrogantes covardes vão me deixar ganhar?
– Com toda a certeza – disse Ned, e Sor Barristan Selmy abaixou a cabeça num acordo
silencioso.
Por um momento, Robert ficou tão zangado que não conseguiu falar. Atravessou a tenda,
rodopiou, voltou a atravessá-la, com o rosto sombrio e irado. Apanhou do chão o peitoral da
armadura e o arremessou a Barristan Selmy numa fúria sem palavras. Selmy esquivou-se.
– Saia – disse então o rei, friamente. – Saia antes que o mate.
Sor Barristan saiu com rapidez. Ned preparava-se para segui-lo quando o rei voltou a falar.
– Você não, Ned.
Ned virou-se. Robert recuperou o corno, encheu-o com cerveja, que tirou de um barril que se
encontrava a um canto da tenda, e o arremessou a Ned.
– Beba – disse ele em tom brusco.
– Não tenho sede…
– Beba. É o seu rei quem ordena.
Ned virou o corno e bebeu. A cerveja era negra e espessa, tão forte que fazia arder os olhos.
Robert voltou a se sentar.
– Maldito seja, Ned Stark. Você e Jon Arryn, amei a ambos. E que fizeram de mim? Você é que
devia ter sido rei, você ou Jon.
– A mais forte pretensão era sua, Vossa Graça.
– Disselhe para beber, não para discutir. Já que me fez rei, podia ao menos ter a cortesia de me
escutar enquanto falo, maldito seja. Olhe para mim, Ned. Olhe para o que ser rei fez de mim.
Deuses, gordo demais para a minha armadura, como foi que cheguei a isto?
– Robert…
– Beba e fique quieto, o rei está falando. Juro-lhe, nunca me senti tão vivo como quando estava
ganhando este trono, nem tão morto como agora que o possuo. E Cersei… devo-a a Jon Arryn.
Não tinha nenhum desejo de casar depois de Lyanna me ter sido roubada, mas Jon disse que o
reino precisava de um herdeiro. Cersei Lannister seria um bom partido, ele me disse, me ligaria a
Lorde Tywin para o caso de Viserys Targaryen tentar recuperar o trono do pai – o rei balançou a
cabeça. – Adorava aquele velho, juro, mas agora penso que era um idiota maior que o Rapaz Lua.
Ah, Cersei é adorável de se contemplar, de verdade, mas fria… pelo modo como se defende na
cama, diria que tem todo o ouro de Rochedo Casterly entre as pernas. Dê-me essa cerveja se não
for beber – tomou o corno, virou-o, arrotou e limpou a boca. – Lamento por sua filha, Ned. De
verdade. Refiro-me ao lobo. Meu filho estava mentindo, sou capaz de apostar a alma nisso. Meu
filho… você ama seus filhos, não é verdade?
– De todo o coração – Ned respondeu.
– Deixe-me lhe contar um segredo, Ned. Mais de uma vez sonhei em renunciar à coroa.
Embarcar para as Cidades Livres com meu cavalo e meu martelo, passar o tempo fazendo guerra e
entre vadias. Foi para isso que nasci. O rei mercenário. Como me adorariam os cantores! Sabe o
que me impediu? A ideia de ver Joffrey no trono, com Cersei atrás dele a segredar-lhe ao ouvido.
Meu filho. Como pude fazer um filho assim, Ned?
– Ele não passa de um rapaz – disse Ned desajeitadamente. Pouco gostava de Príncipe Joffrey,
mas percebia a dor na voz de Robert. – Esqueceu de como você era bravo na idade dele?
– Não me perturbaria se ele fosse bravo, Ned. Não o conhece tão bem como eu – suspirou e
balançou a cabeça. – Ah, talvez tenha razão. Jon perdeu a paciência comigo com bastante
frequência e, no entanto, acabei por me tornar um bom rei – Robert olhou para Ned e franziu as
sobrancelhas perante seu silêncio. – Agora pode falar e concordar.
– Vossa Graça… – Ned começou cuidadosamente.
Robert deu-lhe uma palmada nas costas.
– Ah, diz que sou melhor rei que Aerys e terminamos o assunto. Você nunca conseguiu mentir
por amor ou por honra, Ned Stark. Ainda sou novo, e agora que está aqui comigo as coisas serão
diferentes. Tornaremos este reinado num que seja digno de canções, e que os Lannister vão para os
sete infernos. Sinto cheiro de bacon. Quem lhe parece que será nosso campeão hoje? Viu o filho
de Mace Tyrell? Chamam-lhe o Cavaleiro das Flores. Ora, aí está um filho que qualquer homem
ficaria orgulhoso de reclamar. No último torneio, fez o Regicida cair sobre sua dourada garupa,
devia ter visto a cara de Cersei. Ri até me doer o peito. Renly diz que ele tem uma irmã, uma
donzela de catorze anos, adorável como uma madrugada…
Quebraram o jejum com pão escuro, ovos de ganso cozidos, peixe frito com cebolas e bacon,
numa mesa montada junto à margem do rio. A melancolia do rei dissipou-se com a névoa da
manhã e não demorou muito até Robert se tornar amistoso, recordando uma manhã no Ninho da
Águia, quando eram rapazes, enquanto comia uma laranja.
– … tinha dado a Jon um barril de laranjas, lembra-se? Só que tinham apodrecido, e por isso
atirei a minha por cima da mesa e atingi Dacks bem no nariz. Lembra-se do escudeiro perebento
de Redfort? Atirou-me uma de volta e, antes que Jon pudesse sequer soltar um peido, havia
laranjas voando pelo Grande Salão em todas as direções – o rei riu tumultuosamente, e até Ned
sorriu ao recordar.
Era este o rapaz com quem tinha crescido, pensou; era este o Robert Baratheon que conhecera e
amara. Se conseguisse provar que os Lannister estavam por trás do ataque a Bran, provar que
tinham assassinado Jon Arryn, este homem escutaria. Então Cersei cairia, e com ela o Regicida, e
se Lorde Tywin se atrevesse a sublevar o Oeste, Robert o esmagaria tal como esmagara Rhaegar
Targaryen no Tridente. Via isso com toda clareza.
Há muito tempo que Eddard Stark não comia tão bem, e depois seus sorrisos chegaram com
maior facilidade e frequência, até a hora de retomar o torneio. Ned acompanhou o rei até o terreno
das justas. Prometera assistir com Sansa aos confrontos finais; Septã Mordane sentia-se doente, e
a filha estava determinada a não perder o fim das justas. Ao acompanhar Robert ao seu lugar,
notou que Cersei Lannister decidira não comparecer; o lugar ao lado do rei estava vago. Isto
também deu a Ned motivos de esperança.
Abriu caminho até onde a filha estava sentada e a encontrou no momento em que as trombetas
soavam para a primeira justa do dia. Sansa estava tão absorta que quase pareceu não notar sua
chegada.
Sandor Clegane foi o primeiro cavaleiro a aparecer. Trazia um manto verde-oliva sobre a
armadura de um cinza-fuliginoso. O manto e o elmo em forma de cabeça de cão eram as suas
únicas concessões à ornamentação.
– Cem dragões de ouro pelo Regicida – Mindinho anunciou sonoramente quando Jaime
Lannister entrou na arena, montando um elegante cavalo de batalha baio puro-sangue, que trazia
uma cobertura de cota de malha dourada, e Jaime cintilava da cabeça aos pés. Até a lança tinha
sido feita com a madeira dourada das Ilhas do Verão.
– Está apostado – gritou de volta Lorde Renly. – Cão de Caça traz hoje um ar faminto.
– Mesmo os cães famintos sabem que não é boa ideia morder a mão que os alimenta –
Mindinho gritou secamente.
Sandor Clegane fez cair o visor com um clac audível e tomou posição. Sor Jaime atirou um
beijo a uma mulher qualquer que estava entre os plebeus, abaixou com cuidado o visor e
encaminhou-se para a ponta da arena. Os dois homens abaixaram as lanças.
Nada seria melhor para Ned Stark do que ver ambos perder, mas Sansa observava de olhos
úmidos e ansiosa. A galeria erguida à pressa estremeceu quando os cavalos romperam a galope.
Cão de Caça inclinou-se para a frente enquanto avançava, com a lança firme como uma rocha, mas
Jaime mudou habilmente de posição no instante anterior ao impacto. A ponta da lança de Clegane
foi inofensivamente atirada contra o escudo dourado com o desenho do leão, enquanto a do
Regicida atingia o adversário em cheio. A madeira estilhaçou-se e Cão de Caça cambaleou,
lutando para se manter sentado. Sansa prendeu a respiração. Uma rude aclamação ergueu-se entre
os plebeus.
– Estou aqui pensando em que poderei gastar seu dinheiro – gritou Mindinho a Lorde Renly.
Cão de Caça conseguiu manter-se sobre a sela. Fez seu cavalo dar meia-volta com dureza e
regressou à arena para a segunda passagem. Jaime Lannister atirou ao chão a lança quebrada e
apanhou uma nova, brincando com o escudeiro. Cão de Caça esporeou o cavalo para um galope
duro. Lannister avançou para enfrentá-lo. Dessa vez, quando Jaime Lannister mudou de posição,
Sandor Clegane mudou com ele. Ambas as lanças explodiram, e quando os estilhaços assentaram,
um baio puro-sangue sem cavaleiro trotava para longe em busca de grama, enquanto Sor Jaime
Lannister rolava na terra, dourado e amassado.
Sansa disse:
– Eu sabia que Cão de Caça ia ganhar.
Mindinho a ouviu.
– Se sabe quem vai ganhar o segundo encontro, fale agora, antes que Lorde Renly me depene –
ele gritou para ela. Ned sorriu.
– É uma pena que o Duende não esteja aqui conosco – disse Lorde Renly. – Teria ganhado o
dobro.
Jaime Lannister estava de novo em pé, mas seu ornamentado elmo de leão tinha sido torcido e
amassado na queda, e agora não conseguia tirá-lo. A plebe gritava e apontava, os senhores e as
senhoras tentavam abafar o riso, sem conseguir, e, sobre toda aquela algazarra, Ned ouvia o Rei
Robert às gargalhadas, mais alto que todos os demais. Por fim, tiveram de levar o Leão de
Lannister a um ferreiro, cego e aos tropeções.
A essa altura, Sor Gregor Clegane já estava em posição no topo da arena. Era enorme, o maior
homem que Eddard Stark já vira. Robert Baratheon e os irmãos eram todos homens grandes, tal
como Cão de Caça, e em Winterfell havia um ajudante de cavalariça simplório chamado Hodor
que era maior que todos eles, mas o cavaleiro a quem chamavam Montanha Que Cavalga teria
olhado de cima para Hodor. Devia ter por volta de dois metros e trinta, com ombros maciços e
braços tão grossos como troncos de pequenas árvores. Seu cavalo de batalha parecia um pônei
entre suas pernas cobertas de armadura, e a lança que trazia parecia tão pequena quanto um cabo
de vassoura.
Ao contrário do irmão, Sor Gregor não vivia na corte. Era um homem solitário que raramente
saía de suas terras, exceto para travar guerras e participar de torneios. Estivera com Lorde Tywin
quando Porto Real caíra, era então um cavaleiro recém-armado de dezessete anos, mas já notável
pelo tamanho e por sua implacável ferocidade. Havia quem dissesse que fora Gregor que atirara a
cabeça do príncipe Argon Targaryen contra uma parede e quem murmurasse que depois disso
violara a mãe, a princesa Elia, de Dorne, antes de lhe cravar a espada. Não se diziam essas coisas
ao alcance dos ouvidos de Gregor.
Ned Stark não se lembrava de alguma vez ter falado com o homem, embora Gregor o tivesse
acompanhado durante a rebelião de Balon Greyjoy, um cavaleiro no meio de milhares. Observou-o
inquieto. Não era seu costume dar grande atenção a mexericos, mas as coisas que se diziam de Sor
Gregor eram mais que sinistras. Preparava-se para casar pela terceira vez, e ouviam-se sombrios
sussurros sobre as mortes das duas primeiras esposas. Dizia-se que sua fortaleza era um lugar
sombrio onde criados desapareciam para nunca mais serem vistos, e até os cães tinham medo de
entrar no salão. E tinha havido uma irmã que morrera jovem em estranhas circunstâncias, e o fogo
que desfigurara o irmão, e o acidente de caça que matara o pai. Gregor herdara a fortaleza, o ouro
e as propriedades da família. O irmão mais novo, Sandor, partira no mesmo dia para servir os
Lannister como cavaleiro juramentado, e dizia-se que nunca mais regressara, nem mesmo para
visita.
Quando o Cavaleiro das Flores fez sua entrada, um murmúrio percorreu a multidão, e Ned ouviu
o sussurro fervente de Sansa: – Ah, ele é tão lindo.
Sor Loras Tyrell era esbelto como um junco, vestido numa fabulosa armadura de prata polida
até cegar, gravada com uma filigrana de sinuosas trepadeiras negras e minúsculos miosótis azuis.
A plebe percebeu, no mesmo instante que Ned, que o azul das flores provinha de safiras; um
suspiro escapou de um milhar de gargantas. Dos ombros do rapaz pendia o manto pesado. Era
tecido de miosótis, miosótis verdadeiros, centenas de flores frescas entrelaçadas numa pesada
capa de lã.
Seu corcel era tão esguio como o cavaleiro, uma bela égua cinzenta, feita para a velocidade. O
enorme garanhão de Sor Gregor relinchou ao captar seu cheiro. O rapaz de Jardim de Cima fez
qualquer coisa com as pernas e o cavalo curveteou de lado, ágil como um dançarino. Sansa
agarrou o braço de Ned.
– Pai, não deixe que Sor Gregor lhe faça mal – ela pediu. Ned viu que ela trazia a rosa que Sor
Loras lhe dera no dia anterior. Jory também lhe contara aquilo.
– Aquelas são lanças de torneio – disse à filha. – São feitas para que se estilhacem com o
impacto, para que ninguém se fira – mas lembrou-se do rapaz morto na carroça, com seu manto de
luas crescentes, e as palavras arranharam-lhe a garganta.
Sor Gregor estava com problemas para controlar o cavalo. O garanhão berrava e batia com as
patas no chão, balançando a cabeça. A Montanha espetou-lhe ferozmente os calcanhares
envolvidos em armadura. O cavalo empinou-se e quase o derrubou.
O Cavaleiro das Flores saudou o rei, dirigiu-se à extremidade mais distante da arena e abaixou a
lança, pronto. Sor Gregor trouxe seu animal até a linha, lutando com as rédeas. E de súbito
começou. O garanhão da Montanha rompeu num galope duro, atirando-se furiosamente à frente,
enquanto o passo da égua era suave como o deslizar da seda. Sor Gregor pôs o escudo em posição
e equilibrou a lança com dificuldade, ao mesmo tempo que continuava a lutar para manter a
fogosa montaria numa linha reta, então, de repente, Loras Tyrell estava sobre ele, colocando a
ponta da lança precisamente lá, e num piscar de olhos a Montanha estava caindo. Era tão imenso
que levou o cavalo consigo, num emaranhado de aço e carne.
Ned ouviu aplausos, aclamações, assobios, suspiros chocados, murmúrios excitados, e
sobretudo as ásperas e roufenhas gargalhadas de Cão de Caça. O Cavaleiro das Flores puxou as
rédeas no fim da arena. Sua lança nem sequer estava partida. As safiras cintilaram ao sol quando
ergueu o visor, sorrindo. Os plebeus pareciam ter enlouquecido por ele.
No meio do campo, Sor Gregor Clegane desembaraçou-se e pôs-se de pé, fervendo de raiva.
Arrancou o elmo e esmagou-o contra o chão. Tinha o rosto escuro de fúria, e os cabelos caíam-lhe
nos olhos.
– Minha espada – gritou para o escudeiro, e o rapaz correu para ele. A essa altura o garanhão já
estava em pé também.
Gregor Clegane matou o cavalo com um único golpe, de tamanha violência que quase decepou o
pescoço do animal. As aclamações transformaram-se em guinchos num piscar de olhos. O
garanhão caiu de joelhos, berrando enquanto morria. Mas então Gregor já atravessava a arena a
passos largos, dirigindo-se para Sor Loras Tyrell, de espada ensanguentada em punho.
– Pare-o! – gritou Ned, mas suas palavras perderam-se no burburinho. Todos também gritavam,
e Sansa chorava.
Tudo aconteceu num átimo. O Cavaleiro das Flores gritava pela espada no momento em que Sor
Gregor empurrou para o lado seu escudeiro e tentou agarrar as rédeas do cavalo. A égua cheirou
sangue e empinou-se. Loras Tyrell mal se manteve montado. Sor Gregor brandiu a espada, um
violento golpe a duas mãos que atingiu o rapaz no peito e o derrubou da sela. O corcel fugiu em
pânico, enquanto Sor Loras jazia atordoado no chão. Mas, quando Gregor ergueu a espada para o
golpe fatal, uma voz áspera advertiu: “Deixe-o em paz”, e uma mão revestida de aço atirou-o para
longe do rapaz.
A Montanha rodopiou numa fúria sem palavras, brandindo a espada num arco mortífero com
toda a sua maciça força posta no golpe, mas Cão de Caça aparou o golpe e contra-atacou, e durante
o que pareceu uma eternidade, os dois irmãos trocaram golpes, enquanto um entontecido Loras
Tyrell era ajudado a pôr-se em segurança. Três vezes Ned viu Sor Gregor lançar violentos golpes
no elmo da cabeça de Cão, mas nem uma vez Sandor deu uma estocada ao rosto desprotegido do
irmão.
Foi a voz do rei que pôs fim àquilo… a voz do rei e vinte espadas. Jon Arryn dissera-lhes que
um comandante precisa de uma boa voz de batalha, e Robert provara no Tridente que era verdade.
Era essa a voz que usava agora.
– PAREM COM ESTA LOUCURA – trovejou – EM NOME DO SEU REI!
Cão de Caça caiu sobre um joelho. O golpe de Sor Gregor cortou o ar, e por fim caiu em si.
Deixou cair a espada, olhou intensamente para Robert, cercado por sua Guarda Real e uma dúzia
de outros cavaleiros e guardas. Sem uma palavra, virou-se e afastou-se em passo rápido, abrindo
caminho junto a Barristan Selmy com um encontrão.
– Deixe-o ir – disse Robert, e nesse mesmo momento tudo terminou.
– O campeão agora é Cão de Caça? – Sansa perguntou a Ned.
– Não – ele respondeu. – Haverá uma justa final, entre Cão de Caça e o Cavaleiro das Flores.
Mas Sansa afinal tinha razão. Alguns momentos mais tarde, Sor Loras Tyrell regressou ao
campo num simples gibão de linho e disse a Sandor Clegane: – Devo-lhe a vida. O dia é seu, sor.
– Não sou sor nenhum – respondeu Cão de Caça, mas aceitou a vitória e a bolsa de campeão e,
talvez pela primeira vez na vida, a adoração dos plebeus. Aclamaram-no quando deixou a arena
para se dirigir ao seu pavilhão.
Enquanto Ned caminhava com Sansa para o campo de tiro ao alvo, Mindinho, Lorde Renly e
alguns dos outros juntaram-se a eles.
– Tyrell sabia que a égua estava no cio – Mindinho dizia. – Juro que o rapaz planejou tudo.
Gregor sempre preferiu enormes garanhões de mau temperamento, com mais vigor que bom-senso
– a ideia parecia diverti-lo.
Mas não divertia Sor Barristan Selmy.
– Pouca honra existe em truques – o velho disse rigidamente.
– Pouca honra e vinte mil peças de ouro – Lorde Renly sorriu.
Naquela tarde, um rapaz chamado Anguy, um plebeu, não anunciado, proveniente da Marca de
Dorne, venceu a competição de tiro ao alvo, suplantando Sor Balon Swann e Jalabhar Xho a cem
passos, depois de todos os outros arqueiros terem sido eliminados a distâncias mais curtas. Ned
mandou que Alyn o procurasse e lhe oferecesse um lugar na guarda da Mão, mas o rapaz estava
inebriado de vinho, vitória e riquezas com que nem sonhara, e recusou.
O corpo a corpo durou três horas. Participaram quase quarenta homens, cavaleiros livres,
pequenos cavaleiros e novos escudeiros em busca de uma reputação. Lutaram com armas
embotadas num caos de lama e sangue, em pequenos grupos que lutavam juntos e depois se
viravam uns contra os outros à medida que as alianças se formavam e eram quebradas, até que
apenas um homem ficou de pé. O vencedor foi o sacerdote vermelho, Thoros de Mys, um louco
que raspava a cabeça e lutava com uma espada em chamas. Já antes tinha vencido lutas corpo a
corpo; a espada em fogo assustava as montarias dos outros cavaleiros, mas nada assustava Thoros.
O balanço final foi de três membros partidos, uma clavícula estilhaçada, uma dúzia de dedos
esmagados, dois cavalos que tiveram de ser abatidos e mais cortes, entorses e hematomas do que
alguém se preocupou em contar. Ned ficou imensamente feliz por Robert não ter participado.
Naquela noite, no festim, Eddard Stark sentia-se mais esperançoso do que se sentira havia
muito tempo. Robert estava de ótimo humor, não se viam Lannister em lado nenhum, e até as
filhas estavam se portando bem. Jory trouxera Arya para se juntar a eles e Sansa dirigiu-se à irmã
de maneira agradável.
– O torneio foi magnífico – suspirou. – Devia ter vindo. Como foi seu treinamento?
– Estou toda dolorida – relatou Arya em tom feliz, exibindo, orgulhosa, um enorme hematoma
púrpura que tinha na perna.
– Deve ser uma principiante horrível – disse Sansa, com ar de dúvida.
Mais tarde, enquanto Sansa ouvia uma trupe de cantores interpretar a complexa série de baladas
interligadas chamada “Dança dos Dragões”, Ned inspecionou o hematoma da filha.
– Espero que Forel não esteja sendo muito duro com você.
Arya equilibrou-se numa perna. Nos últimos tempos, estava ficando muito melhor naquilo.
– Syrio diz que cada ferida é uma lição, e cada lição nos torna melhores.
Ned franziu as sobrancelhas. Aquele Syrio Forel tinha chegado com uma reputação excelente, e
seu brilhante estilo bravosiano adequava-se bem à lâmina esguia de Arya, mas, mesmo assim…
Alguns dias antes, ela andara vagueando com uma tira de seda negra atada sobre os olhos. Arya
dissera-lhe que Syrio a estava ensinando a ver com os ouvidos, o nariz e a pele. Antes disso, tinhaa
posto para fazer piruetas e saltos mortais.
– Arya, tem certeza de que quer persistir nisto?
Ela confirmou com a cabeça.
– Amanhã vamos apanhar gatos.
– Gatos – Ned suspirou. – Talvez tenha sido um erro contratar esse bravosi. Se quiser, pedirei a
Jory para substituí-lo nas suas aulas. Ou posso ter uma discreta conversa com Sor Barristan
Selmy. Quando jovem, foi o melhor espadachim dos Sete Reinos.
– Não quero ninguém – disse Arya. – Quero Syrio.
Ned passou os dedos pelos cabelos. Qualquer mestre de armas decente podia ensinar a Arya os
rudimentos sobre estocadas e paradas sem esse disparate de vendas, rodas e saltos de um pé só,
mas conhecia suficientemente bem a filha mais nova para saber que não havia discussão com
aquela obstinada projeção de queixo.
– Como quiser – ele respondeu. Certamente iria se cansar daquilo em breve. – Tente ter
cuidado.
– Terei – ela prometeu solenemente enquanto saltava do pé direito para o esquerdo num
movimento fluido.
Muito mais tarde, depois de atravessar a cidade com as filhas e colocá-las em segurança na
cama, Sansa com seus sonhos e Arya com seus hematomas, Ned subiu até os próprios aposentos,
no topo da Torre da Mão. O dia estivera quente, e o quarto fechado estava abafado. Ned dirigiu-se
à janela e abriu as pesadas venezianas a fim de deixar entrar o ar fresco da noite. Do outro lado do
Grande Pátio reparou no tremeluzente brilho da luz de velas nas janelas de Mindinho. Já passava
bastante da meia-noite. Junto ao rio, as festas estavam apenas começando a murchar e morrer.
Pegou o punhal e o estudou. A arma de Mindinho, que Tyrion Lannister ganhara dele numa
aposta de torneio, enviada para matar Bran em seu sono. Por quê? Por que queria o anão ver Bran
morto? Por que alguém ia querer ver Bran morto?
O punhal, a queda de Bran, tudo aquilo estava de algum modo ligado ao assassinato de Jon
Arryn, podia senti-lo nas entranhas, mas a verdade sobre a morte de Jon permanecia para ele tão
envolta em brumas como quando começara a investigar. Lorde Stannis não voltara a Porto Real
para o torneio. Lysa Arryn mantinha-se em silêncio, por trás das muralhas do Ninho da Águia. O
escudeiro estava morto e Jory continuava a investigar os prostíbulos. Que tinha ele além do
bastardo de Robert?
Ned não tinha dúvida de que o carrancudo aprendiz do armeiro era filho do rei. Os traços dos
Baratheon estavam estampados em seu rosto, no queixo, nos olhos, nos cabelos negros. Renly era
novo demais para ser pai de um rapaz daquela idade. Stannis, demasiado frio e orgulhoso em sua
honra. Gendry tinha de ser de Robert.
Mas, ao saber tudo isso, o que aprendera? O rei tinha outros filhos ilegítimos espalhados pelos
Sete Reinos. Tinha reconhecido abertamente um de seus bastardos, um rapaz da idade de Bran,
cuja mãe era bem-nascida. O garoto estava sendo criado pelo castelão de Lorde Renly em Ponta
Tempestade.
Ned também recordava a primeira criança gerada por Robert, uma filha nascida no Vale quando
ainda era pouco mais que um rapaz. Uma doce garotinha; o jovem senhor de Ponta Tempestade a
amara perdidamente. Costumava fazer visitas diárias para brincar com o bebê, muito depois de ter
perdido interesse pela mãe. Era frequente arrastar Ned para lhe fazer companhia,
independentemente de sua vontade. Compreendeu de súbito que a menina devia ter agora
dezessete ou dezoito anos; mais velha que Robert era quando ela nascera. Estranho pensamento.
Cersei podia não estar contente com as escapadelas do senhor seu esposo, mas no fim das
contas pouco importava se o rei tinha um bastardo ou uma centena. A lei e o costume poucos
direitos davam aos filhos ilegítimos. Gendry, a moça no Vale, o garoto em Ponta Tempestade,
nenhum deles podia ameaçar os filhos legítimos de Robert…
Suas reflexões foram interrompidas por um suave toque na porta.
– Um homem para vê-lo, senhor – chamou Harwin. – Não quer dizer o nome.
– Mande-o entrar – Ned respondeu, curioso.
O visitante era um homem corpulento com botas molhadas e completamente enlameadas, um
pesado manto marrom da ráfia mais grosseira, as feições escondidas por um capuz, as mãos
enfiadas em volumosas mangas.
– Quem é você? – Ned perguntou.
– Um amigo – disse o homem encapuzado numa estranha voz. – Temos de conversar a sós,
Lorde Stark.
A curiosidade era mais forte que a cautela.
– Harwin, deixe-nos – ordenou. Só depois de estarem a sós, por trás de portas fechadas, é que o
visitante tirou o capuz.
– Lorde Varys? – Ned exclamou, estupefato.
– Lorde Stark – disse Varys polidamente enquanto se sentava. – Posso lhe pedir uma bebida?
Ned encheu duas taças de vinho do verão e entregou uma delas a Varys.
– Poderia ter passado por você que nunca o reconheceria – ele disse, incrédulo. Nunca vira o
eunuco vestido de outra coisa que não fosse seda, veludo e os mais ricos damascos; e este homem
cheirava a suor, não a lilases.
– Era esta a minha maior esperança – Varys respondeu. – Não seria bom se certas pessoas
soubessem que conversamos em particular. A rainha o vigia de perto. Este vinho é de primeira
escolha. Obrigado.
– Como passou pelos meus guardas? – Ned perguntou. Porther e Cayn tinham sido colocados
fora da torre, e Alyn, nas escadas.
– A Fortaleza Vermelha tem caminhos que só são conhecidos por fantasmas e aranhas – Varys
sorriu como quem pede perdão. – Não lhe tomarei muito tempo, senhor. Há coisas que precisa
saber. É a Mão do Rei, e o rei é um tolo – a voz do eunuco tinha perdido o timbre rico; agora era
fina e aguçada como um chicote. – É seu amigo, eu sei, mas apesar disso, um tolo… e está
perdido, a menos que o salve. Hoje foi por pouco. Alimentavam a esperança de matá-lo durante a
luta corpo a corpo.
Por um momento Ned ficou sem fala, de tão chocado.
– Quem?
Varys bebericou o vinho.
– Se realmente preciso lhe dizer isso, então é um tolo ainda maior que Robert, e eu estou do
lado errado.
– Os Lannister – Ned falou. – A rainha… não, não acredito nisso, nem mesmo de Cersei. Ela lhe
pediu para não lutar!
– Ela o proibiu de lutar, na presença do irmão, dos cavaleiros e de metade da corte. Diga-me
francamente: conhece alguma maneira mais segura de forçar o Rei Robert a participar do corpo a
corpo? É o que lhe pergunto.
Ned tinha uma sensação doentia nas entranhas. O eunuco descobrira uma verdade; dizer a
Robert Baratheon que não conseguia, não devia ou não podia fazer uma coisa era o mesmo que lhe
ordenar que fizesse.
– Mesmo que ele tivesse lutado, quem se atreveria a atingir o rei?
Varys encolheu os ombros.
– Havia quarenta participantes no corpo a corpo. Os Lannister têm muitos amigos. No meio de
todo aquele caos, com cavalos a relinchar, ossos a se partirem e Thoros de Myr a brandir aquela
sua absurda espada flamejante, quem poderia falar em assassinato se algum golpe casual caísse
sobre Sua Graça? – o eunuco dirigiu-se ao jarro e voltou a encher a taça. – Depois de a coisa feita,
o assassino estaria fora de si de desgosto. Quase consigo ouvi-lo chorar. Tão triste. Mas não
haveria dúvida de que a amável e compassiva viúva se apiedaria, poria o pobre infeliz em pé e o
abençoaria com um gentil beijo de perdão. O bom Rei Joffrey não teria escolha exceto perdoá-lo –
Varys passou a mão no rosto. – Ou talvez Cersei deixasse Sor Ilyn cortar-lhe a cabeça, haveria
assim menos riscos para os Lannister, embora fosse uma surpresa bem desagradável para seu
pequeno amigo.
Ned sentiu sua ira aumentar.
– Conhecia essa conspiração e, no entanto, não fez nada.
– Eu governo murmuradores, não guerreiros.
– Podia ter vindo falar comigo mais cedo.
– Ah, sim, confesso. E o senhor teria ido correndo falar com o rei, não é verdade? E quando
Robert ouvisse dizer que estava em perigo, o que teria feito? Gostaria de saber.
Ned pensou naquilo.
– Teria mandado todos para os sete infernos e lutado de qualquer maneira, para mostrar que não
os temia.
Varys abriu as mãos.
– Vou fazer outra confissão, Lorde Eddard. Tinha curiosidade em ver o que o senhor faria. Por
que não veio falar comigo?, me perguntou, e devo responder: Ora, porque não confiava no senhor.
– Não confiava em mim? – Ned estava francamente estupefato.
– A Fortaleza Vermelha abriga dois tipos de pessoas, Lorde Eddard – Varys continuou. –
Aqueles que são leais ao reino e os que são leais apenas a si mesmos. Até hoje de manhã não sabia
dizer a que grupo o senhor pertencia… e por isso esperei para ver… e agora sei com toda certeza –
deu um rechonchudo sorrisinho apertado e, por um momento, seu rosto privado e sua máscara
pública foram iguais. – Começo a compreender por que a rainha o teme tanto. Ah, sim, como
começo.
– Quem ela deve temer é você – disse Ned.
– Não. Eu sou aquilo que sou. O rei utiliza-me, mas isso o envergonha. Nosso Robert é
guerreiro muito poderoso, e um homem tão viril pouca amizade sente por denunciantes, espiões e
eunucos. Se chegar o dia em que Cersei sussurre “Mate aquele homem”, Ilyn Payne me cortará a
cabeça num piscar de olhos. E quem faria então luto pelo pobre Varys? Seja no Norte, seja no Sul,
não se cantam canções sobre aranhas – estendeu uma mão suave e tocou em Ned. – Mas o senhor,
Lorde Stark… penso… não, sei… ele não o mataria, nem mesmo por sua rainha, e pode residir aí
a nossa salvação.
Aquilo tudo era demais. Por um momento, Eddard Stark nada mais desejou que voltar a
Winterfell, à simplicidade limpa do Norte, onde os inimigos eram o inverno e os selvagens do
lado de lá da Muralha.
– Certamente Robert tem outros amigos leais – protestou. – Os irmãos, a…
– … mulher? – terminou Varys, com um sorriso cortante. – Os irmãos odeiam os Lannister, é
certo, mas odiar a rainha e amar o rei não são bem a mesma coisa, não é? Sor Barristan ama a sua
honra, o Grande Meistre Pycelle ama o seu cargo, e Mindinho ama Mindinho.
– A Guarda Real…
– Um escudo de papel – disse o eunuco. – Procure não parecer tão chocado, Lorde Stark. O
próprio Jaime Lannister é um Irmão Juramentado das Espadas Brancas, e todos sabemos o que os
votos dele valem. Os dias em que homens como Ryam Redwyne e Príncipe Aemon, o Cavaleiro do
Dragão, usavam o manto branco estão perdidos na poeira e nas canções. Daqueles sete, só Sor
Barristan Selmy é feito do aço verdadeiro, e Selmy é velho. Sor Boros e Sor Meryn são criaturas
da rainha até os ossos, e tenho profundas suspeitas sobre os outros. Não, senhor, quando as
espadas forem realmente desembainhadas, será o único amigo verdadeiro que Robert Baratheon
terá.
– Robert tem de ser informado – disse Ned. – Se o que diz for verdade, e ainda que apenas parte
do que diz for verdade, então o próprio rei terá de ouvir.
– E que provas lhe apresentaremos? As minhas palavras contra as deles? Os meus passarinhos
contra a rainha e o Regicida, contra os irmãos e o conselho do rei, contra os Guardiães do Leste e
do Oeste, contra todo o poderio de Rochedo Casterly? Rogo-lhe, mande buscar diretamente Sor
Ilyn, pois nos poupará tempo. Sei onde termina essa estrada.
– Mas se o que diz for verdade, eles se limitarão a esperar seu tempo e farão outra tentativa.
– Certamente farão – Varys confirmou. – E temo que o façam mais cedo que tarde. O senhor os
está deixando muito ansiosos, Lorde Eddard. Mas meus passarinhos estarão à escuta, e em
conjunto, o senhor e eu, talvez sejamos capazes de nos adiantarmos a eles – pôs-se em pé e puxou
o capuz até voltar a esconder o rosto. – Agradeço-lhe o vinho. Voltaremos a conversar. Quando
voltar a me ver no conselho, assegure-se de me tratar com o desprezo habitual. Não deverá achar
difícil.
O eunuco já se encontrava junto à porta quando Ned o chamou: – Varys – o homem encapuzado
virou-se. – Como morreu Jon Arryn?
– Perguntava a mim mesmo quando chegaria a esse assunto.
– Diga-me.
– Chamam-lhe lágrimas de Lys. Coisa rara e dispendiosa, límpida e doce como a água, e não
deixa rastro nenhum. Supliquei a Lorde Arryn que usasse um provador, foi nesta mesma sala que
lhe supliquei, mas ele não queria ouvir falar do assunto. Só alguém que fosse menos que um
homem podia sequer pensar em tal coisa, ele me disse.
Ned tinha de saber o resto.
– Quem lhe deu o veneno?
– Algum amigo querido, sem dúvida, alguém que partilhasse com frequência comida e bebida
com ele. Ah, mas qual? Havia muitos assim. Lorde Arryn era um homem bondoso e confiante – o
eunuco suspirou. – Mas havia um rapaz. Tudo que era devia a Jon Arryn, mas quando a viúva
fugiu para o Ninho da Águia com os seus, ficou em Porto Real e prosperou. Alegra-me sempre o
coração ver os jovens subir neste mundo – o chicote estava de novo em sua voz; cada palavra era
uma chicotada. – Deve ter feito uma figura galante no torneio, em sua brilhante armadura nova,
com aqueles crescentes no manto. Uma pena que tenha morrido tão intempestivamente, antes que
o senhor tivesse a oportunidade de falar com ele…
Ned sentiu-se quase como se ele mesmo tivesse sido envenenado.
– O escudeiro – ele exclamou. – Sor Hugh – os mecanismos começaram a girar. A cabeça de
Ned latejava. – Por quê? Por quê agora? Jon Arryn foi Mão durante catorze anos. Que andava
fazendo ele para que tivessem de matá-lo?
– Andava fazendo perguntas – respondeu Varys, esgueirando-se porta afora.

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