segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Tyrion - A Guerra dos Tronos

Em pé, no frio de antes da alvorada, observando Chiggen, que matava seu cavalo, Tyrion Lannister tomou nota de mais uma dívida para os Stark. Viu-se um vapor subir de dentro da carcaça quando o mercenário acocorado abriu a barriga com sua faca de esfolar. Movia as mãos com habilidade, sem desperdiçar um único golpe; o trabalho tinha de ser feito rapidamente, antes que o fedor do sangue trouxesse gatos-das-sombras das colinas.
– Nenhum de nós passará fome esta noite – disse Bronn. Ele mesmo era quase uma sombra;
magro e duro como um osso, com olhos e cabelos negros e barba por fazer.
– Alguns de nós talvez passem – disselhe Tyrion. – Não me agrada comer cavalo.
Especialmente o meu cavalo.
– Carne é carne – disse Bronn, encolhendo os ombros. – Os dothrakis gostam mais de cavalo
que de vaca ou porco.
– Toma-me por um dothraki? – perguntou Tyrion em tom irritado. Os dothrakis comiam cavalo,
era verdade; também deixavam crianças deformadas para os cães selvagens que corriam atrás de
seus khalasares. Pouco apreço sentia pelos costumes dothrakis.
Chiggen cortou uma fina fatia de carne sangrenta da carcaça e ergueu-a para inspeção.
– Quer provar, anão?
– Meu irmão Jaime me deu essa égua pelo vigésimo terceiro dia do meu nome – Tyrion
respondeu numa voz despida de emoção.
– Então, agradeça-lhe em nosso nome. Se voltar a vê-lo – Chiggen deu um sorriso, mostrando
dentes amarelos, e engoliu a carne crua em duas dentadas. – Tem sabor de égua de boa criação.
– É melhor fritá-la com cebolas – interveio Bronn.
Sem uma palavra, Tyrion afastou-se coxeando. O frio instalara-se profundamente em seus
ossos, e tinha as pernas tão doloridas que quase não conseguia andar. Talvez a égua morta fosse
quem tinha mais sorte. Ele tinha perante si mais horas a cavalo, seguidas por um pouco de comida
e um curto sono frio sobre solo duro, e depois outra noite igual, e outra, e outra, e só os deuses
sabiam quando aquilo terminaria.
– Maldita seja – resmungou enquanto lutava para avançar pela estrada a fim de se juntar aos
seus captores, remoendo recordações –, maldita seja ela e todos os Stark.
A memória ainda lhe era amarga. Num momento encomendava o jantar, e um piscar de olhos
mais tarde defrontava uma sala cheia de homens armados, com Jyck levando a mão à espada e a
estalajadeira gorda guinchando: – Espadas, não, aqui, não, por favor, senhores.
Tyrion torcera o braço de Jyck, apressado, antes que o outro fizesse com que fossem ambos
transformados em carne picada.
– Onde estão as suas maneiras, Jyck? Nossa boa anfitriã disse que espadas, não. Faça o que ela
pede – forçara um sorriso que devia ter parecido tão nauseado como o sentia. – Está cometendo
um triste erro, Senhora Stark. Não desempenhei nenhum papel em nenhum ataque ao seu filho.
Pela minha honra…
– Honra Lannister – foi tudo que ela disse. Ergueu as mãos para que toda a sala as visse. – Seu
punhal deixou estas cicatrizes. A lâmina que ele enviou para abrir a garganta do meu filho.
Tyrion sentira a fúria em volta de si, espessa e fumacenta, alimentada pelos profundos golpes
nas mãos da mulher Stark. “Matem-no”, sibilara do fundo da sala uma desmazelada bêbada
qualquer, e outras vozes começaram a repetir a palavra mais depressa que ele julgaria possível.
Todos eles estranhos, amigáveis até um momento antes, e agora gritavam por seu sangue como
cães de caça perseguindo uma presa.
Tyrion falara em voz alta, tentando mantê-la firme.
– Se a Senhora Stark acredita que tenho de responder por algum crime, então a acompanharei e
responderei por ele.
Era a única atitude possível. Tentar sair daquilo na base da espada era um convite seguro para
uma sepultura antecipada. Uma boa dúzia de espadas tinha respondido ao apelo da Stark por
ajuda: os homens de Harrenhal, os três Bracken, um par de fétidos mercenários que pareciam
poder matá-lo com a mesma facilidade com que cuspiriam no chão, e alguns estúpidos
camponeses que sem dúvida não tinham a mínima ideia do que estavam fazendo. Contra aquilo,
que tinha Tyrion? Um punhal no cinto e dois homens. Jyck brandia uma espada suficientemente
bem, mas Morrec pouco contava, era em parte cavalariço, em parte cozinheiro, em parte criado de
quarto e em nenhuma parte soldado. Quanto a Yoren, fossem quais fossem seus sentimentos, os
irmãos negros tinham jurado não participar nas querelas do reino. Yoren nada faria.
E, de fato, o irmão negro afastara-se em silêncio quando o idoso cavaleiro ao lado de Catelyn
Stark dissera: – Tomem-lhes as armas – e o mercenário Bronn avançara para arrancar a espada dos
dedos de Jyck e aliviar todos de seus punhais. – Muito bem – dissera o velho, enquanto a tensão na
sala comum refluía de modo palpável –, excelente. – Tyrion reconhecera então aquela voz rude; o
mestre de armas de Winterfell, de barbas raspadas.
Gotas de saliva tingidas de escarlate voaram da boca da estalajadeira gorda quando ela suplicou
a Catelyn Stark: – Não o mate aqui!
– Não o mate em lugar nenhum – exortara Tyrion.
– Leve-o para qualquer outro lugar, sangue aqui, não, senhora, não quero confusões de fidalgos
aqui.
– Vamos levá-lo de volta a Winterfell – Cat dissera, e Tyrion pensou: Bem, talvez… Àquela
altura, já tivera um momento para passar os olhos pela sala e obter uma ideia melhor da situação.
E não tinha ficado totalmente descontente com o que vira. Ah, a Stark tinha sido inteligente, sem
sombra de dúvida. Forçá-los a fazer uma afirmação pública dos votos jurados ao pai pelos
senhores que serviam e então lhes pedir socorro e, sendo ela uma mulher, sim, essa parte era um
docinho. Mas o sucesso não tinha sido tão completo como poderia desejar. Havia perto de
cinquenta homens na sala comum, segundo sua contagem aproximada. O apelo de Catelyn Stark
tinha reunido uma simples dúzia; os outros pareciam confusos, ou assustados, ou carrancudos. Só
dois dos Frey tinham se agitado, notara Tyrion, e sentado assim que viram que o capitão não se
movia. Poderia ter sorrido, se se atrevesse a tanto.
– Seja então Winterfell – ele disse, e não sorriu. Era uma longa viagem, como podia atestar
perfeitamente, tendo acabado de percorrer o caminho inverso. Muitas coisas podiam acontecer ao
longo do caminho. – Meu pai vai querer saber o que me aconteceu – acrescentou, olhando nos
olhos o homem de armas que se oferecera para lhe ceder o quarto. – Pagará uma boa recompensa a
qualquer homem que lhe leve notícias do que aconteceu hoje aqui – Lorde Tywin não faria nada
disso, claro, mas Tyrion o compensaria se ganhasse a liberdade.
Sor Rodrik olhara de relance para sua senhora, um olhar preocupado, como devia ser.
– Seus homens vêm com ele – anunciou o velho cavaleiro. – E agradeceremos a todos aqui se
ficarem em silêncio quanto ao que viram aqui.
Tyrion fez tudo que pôde para não rir. Silêncio? Velho tonto. A menos que capturasse a
estalagem inteira, a notícia começaria a se espalhar no instante em que dali saíssem. O cavaleiro
livre com a moeda de ouro no bolso voaria como uma flecha para Rochedo Casterly. Se não fosse
ele, então qualquer outro o faria. Yoren levaria a história para o Sul. Aquele estúpido cantor
poderia fazer daquilo um lai. Os Frey fariam um relatório ao seu senhor, e só os deuses sabiam o
que este faria. Lorde Walder Frey podia ser vassalo de Correrrio, mas era um homem cauteloso
que vivera muito tempo por assegurar-se de estar sempre ao lado dos vencedores. No mínimo,
enviaria suas aves para o sul até Porto Real, e poderia bem atrever-se a mais.
Catelyn Stark não perdera tempo.
– Devemos partir imediatamente. Vamos querer montarias descansadas e provisões para a
estrada. Quanto aos senhores, saibam que têm a eterna gratidão da Casa Stark. Se algum dos
senhores quiser nos ajudar a guardar os cativos e levá-los em segurança até Winterfell, prometo
que serão bem recompensados – e foi o suficiente, os tontos atiraram-se à frente. Tyrion estudoulhes
os rostos; seriam de fato bem recompensados, jurara a si mesmo, mas talvez não
propriamente do modo que imaginavam.
Mas, mesmo enquanto o empurravam para fora, selando os cavalos na chuva e atando-lhe as
mãos com uma corda grossa, Tyrion Lannister não estava realmente com medo. Poderia ter
apostado que não conseguiriam levá-lo até Winterfell. Haveria cavaleiros no seu encalço em
menos de um dia, aves levantariam voo, e certamente um dos senhores do rio teria suficiente
vontade de ganhar os favores de seu pai para dar uma ajuda. Tyrion congratulava-se por sua
sutileza quando alguém lhe puxara um capuz sobre os olhos e o subira para uma sela.
Tinham partido em meio à chuva num duro galope, e não demorou muito até que as coxas de
Tyrion ficassem rígidas e doídas e seu traseiro latejasse de dor. Mesmo depois de estarem
suficientemente afastados da estalagem para se sentirem em segurança, e de Catelyn ter abrandado
a marcha até um trote, foi uma miserável viagem por terreno irregular, piorada por sua cegueira.
Cada curva o deixava a ponto de cair do cavalo. O capuz abafava os sons, e não conseguia
distinguir o que era dito à sua volta, e a chuva encharcava o tecido, que lhe grudava no rosto, até
que mesmo respirar se tornara uma luta. A corda deixara seus pulsos em carne viva, e parecia ficar
mais apertada à medida que a noite avançava. Preparava-me para me instalar diante de um fogo
quente e uma ave assada, mas aquele maldito cantor tinha de abrir a boca, pensava tristemente. O
maldito cantor viera com eles.
– Há uma grande canção por fazer a partir disto, e eu sou aquele que a fará – dissera a Catelyn
Stark quando anunciara sua intenção de viajar para o Norte com eles para ver como se
desenrolaria a “esplêndida aventura”.
Tyrion gostaria de saber se o rapaz acharia a aventura assim tão esplêndida quando os
cavaleiros dos Lannister os apanhassem.
A chuva tinha finalmente parado e a luz da alvorada já se infiltrava através do pano molhado
que tinha sobre os olhos quando Catelyn Stark deu ordem para desmontar. Mãos rudes o tiraram
do cavalo, desataram-lhe os pulsos e arrancaram-lhe o capuz da cabeça. Quando Tyrion viu a
estreita estrada pedregosa, os sopés das colinas que se erguiam altas e selvagens por toda volta, e
os picos escarpados e cobertos de neve no horizonte longínquo, toda a sua esperança se evaporou
num instante.
– Esta é a estrada de altitude – arquejara, olhando para a Senhora Stark com olhos acusadores. –
A estrada do leste. A senhora disse que nos dirigíamos para Winterfell!
Catelyn Stark concedeu-lhe o mais tênue dos sorrisos.
– Em alto e bom som – ela concordou. – Não há dúvida de que seus amigos seguirão esse
caminho quando vierem em nosso encalço. Desejo-lhes boa viagem.
Mesmo agora, muitos dias mais tarde, a recordação o enchia de amarga raiva. Por toda a vida
Tyrion se orgulhara de sua astúcia, o único presente que os deuses tinham se dignado a concederlhe
e, no entanto, aquela sete vezes maldita loba Catelyn Stark o sobrepujara durante todo o
tempo. Saber aquilo era mais humilhante do que o simples fato de ter sido raptado.
Pararam apenas tempo suficiente para alimentar e dar de beber aos cavalos, e puseram-se
imediatamente a caminho. Daquela vez, Tyrion foi poupado do capuz. Após a segunda noite,
deixaram de atar-lhe as mãos, e uma vez chegados às alturas, já pouco se preocupavam em
guardá-lo. Pareciam não temer que fugisse. E por que haveriam de temer? Ali a terra era dura e
selvagem, e a estrada de altitude pouco passava de uma trilha pedregosa. Se fugisse, até onde
chegaria, sozinho e sem provisões? Os gatos-das-sombras o veriam como uma guloseima, e os
clãs que habitavam os baluartes da montanha eram salteadores e assassinos que não se dobravam a
nenhuma lei além da da espada.
Mas, apesar disso, a Stark os fez avançar de forma implacável. Sabia para onde se dirigiam.
Soubera desde o momento em que lhe tinham arrancado o capuz. Aquelas montanhas eram o
domínio da Casa Arryn, e a viúva da falecida Mão era uma Tully, irmã de Catelyn Stark… e nada
amiga dos Lannister. Tyrion conhecera vagamente a Senhora Lysa durante os anos que ela passara
em Porto Real, e não se sentia ansioso por reatar o convívio.
Seus captores aglomeravam-se em torno de um riacho um pouco mais à frente. Os cavalos
tinham se enchido da água fria como gelo e pastavam feixes de mato marrom que crescia em
fendas na rocha. Jyck e Morrec estavam muito juntos, carrancudos e infelizes. Mohor erguia-se
sobre eles, apoiado na lança e usando um capacete de ferro arredondado que fazia com que
parecesse ter uma tigela na cabeça. Perto deles, Marillion, o cantor, estava sentado oleando sua
harpa, queixando-se do que a umidade estava fazendo às cordas do instrumento.
– Temos de descansar um pouco, senhora – o pequeno cavaleiro Sor Willis Wode dizia a
Catelyn Stark quando Tyrion se aproximou.
Era o homem da Senhora Whent, obstinado e imperturbável, e o primeiro a saltar em socorro de
Catelyn Stark na pousada.
– Sor Willis diz a verdade, minha senhora – disse Sor Rodrik. – Este foi o terceiro cavalo que
perdemos…
– Perderemos mais que cavalos se formos alcançados pelos Lannister – ela os lembrou. Tinha o
rosto queimado pelo vento e descarnado, mas não perdera nada de sua determinação.
– Há poucas chances de isso acontecer aqui – Tyrion interveio.
– A senhora não pediu sua opinião, anão – exclamou Kurleket, um grande idiota gordo, de
cabelos curtos e cara de porco. Era um dos Bracken, um homem de armas a serviço de Lorde
Jonos. Tyrion tinha feito um esforço especial para aprender o nome de todos, a fim de lhes
agradecer mais tarde pelo terno modo como o tratavam. Um Lannister sempre pagava suas
dívidas. Kurleket saberia disso um dia, assim como os amigos Lharys e Mohor, o bom Sor Willis
e os mercenários Bronn e Chiggen. Planejava uma lição especialmente severa para Marillion, o da
harpa e da bela voz de tenor, que lutava tão virilmente por arranjar rimas para duende, coxo e
manco, a fim de poder criar uma canção sobre o seu ultraje.
– Deixe-o falar – a Senhora Stark ordenou.
Tyrion Lannister sentou-se numa rocha.
– A essa altura nossos perseguidores estão provavelmente avançando pelo Gargalo, perseguindo
sua mentira ao longo da estrada do rei… assumindo que existe uma perseguição, o que não é de
todo certo. Ah, não há dúvida de que a notícia chegou ao meu pai… mas ele não me estima tanto
assim, e não estou nada convencido de que tenha se incomodado em agir – era apenas meia
mentira; Lorde Tywin Lannister não se importava nem um pouco com o filho deformado, mas não
tolerava desrespeitos à honra de sua Casa. – Estamos numa terra cruel, Senhora Stark. Não
encontrará socorro até chegar ao Vale, e cada montaria perdida sobrecarrega ainda mais as
restantes. Pior, arrisca-se perder a mim. Sou pequeno, não sou forte e, se morrer, qual é o objetivo
de tudo isto? – aquilo não era mentira nenhuma; Tyrion não sabia quanto tempo mais conseguiria
suportar aquele ritmo.
– Pode-se argumentar que a sua morte é o objetivo, Lannister – respondeu Catelyn Stark.
– Penso que não. Se me quisesse morto, bastaria dizer uma palavra, e um desses seus leais
amigos de bom grado me daria um sorriso vermelho – olhou para Kurleket, mas o homem era
obtuso demais para saborear a ironia.
– Os Stark não assassinam ninguém em suas camas.
– Nem eu – Tyrion retrucou. – Repito-lhe: não participei da tentativa de matar o seu filho.
– O assassino estava armado com o seu punhal.
Tyrion sentiu o calor subir em seu interior.
– O punhal não era meu – insistiu. – Quantas vezes tenho de jurar? Senhora Stark, seja o que for
que pense a meu respeito, saiba que não sou um homem estúpido. Só um idiota armaria um
simples peão com a própria arma.
Apenas por um momento pensou ver uma cintilação de dúvida nos olhos dela, mas Catelyn
disse: – Por que haveria Petyr de mentir para mim?
– Por que é que um urso caga na floresta? – ele quis saber. – Porque é esta a sua natureza. Para
um homem como Mindinho, mentir é tão natural como respirar. Se há alguém neste mundo que
devia saber isso, é a senhora.
Ela deu um passo em sua direção, com o rosto fechado.
– E o que isso quer dizer, Lannister?
Tyrion inclinou a cabeça para o lado.
– Ora, todos os homens na corte ouviram-no contar como tirou sua virgindade, minha senhora.
– Isso é uma mentira! – Catelyn Stark retrucou.
– Ah, que duendezinho malvado – disse Marillion, chocado.
Kurleket desembainhou seu punhal, uma perigosa peça de ferro negro.
– A uma palavra, senhora, atirarei a seus pés aquela língua mentirosa – seus olhos de porco
estavam úmidos de excitação perante a ideia.
Catelyn Stark observou fixamente Tyrion, com um olhar frio como ele nunca vira.
– Petyr Baelish amou-me em tempos passados. Era apenas um garoto. Sua paixão foi uma
tragédia para todos nós, mas foi real, e pura, e nada de que se deva zombar. Desejava minha mão.
É esta a verdade. É realmente um homem vil, Lannister.
– A senhora é realmente uma tola, Senhora Stark. Mindinho nunca amou ninguém a não ser
Mindinho, e garanto que não é da sua mão que ele se gaba, é sim desses seus maduros seios, da sua
doce boca e do calor que tem entre as pernas.
Kurleket agarrou-lhe numa madeixa de cabelo e puxou com força sua cabeça para trás,
expondo-lhe a garganta. Tyrion sentiu o frio beijo do aço sob o queixo.
– Devo sangrá-lo, senhora?
– Mate-me, e a verdade morre comigo – Tyrion arquejou.
– Deixe-o falar – Catelyn Stark ordenou.
Kurleket largou com relutância os cabelos de Tyrion.
Tyrion inspirou profundamente.
– Como foi que Mindinho lhe disse que obtive esse seu punhal? Responda-me isso.
– Disse que você o ganhou numa aposta, durante o torneio no dia do nome de Príncipe Joffrey.
– Quando meu irmão Jaime foi derrubado pelo Cavaleiro das Flores. Foi essa a sua história,
não?
– Foi – ela admitiu. E uma ruga surgiu em sua testa.
– Cavaleiros!
O grito veio da cumeada esculpida pelo vento que se erguia acima deles. Sor Rodrik mandara
Lharys escalar a face da rocha para vigiar a estrada enquanto descansavam.
Durante um longo segundo, ninguém se moveu. Catelyn Stark foi a primeira a reagir.
– Sor Rodrik, Sor Willis, a cavalo – gritou. – Ponham as outras montarias atrás de nós. Mohor,
guarde os prisioneiros…
– Armem-nos! – Tyrion pôs-se em pé de um salto e a agarrou pelo braço. – Irá precisar de todas
as espadas.
Ela sabia que ele tinha razão, Tyrion conseguia ver isso em sua expressão. Os clãs da montanha
não tinham o menor interesse pelas inimizades das grandes Casas; matariam Stark e Lannister
com igual fervor, idêntico ao que tinham para matar uns aos outros. Poderiam poupar a própria
Catelyn, era ainda suficientemente jovem para gerar filhos. Mas, mesmo assim, ela hesitou.
– Estou ouvindo-os! – gritou Sor Rodrik. Tyrion virou a cabeça para escutar e lá estavam, sons
de cascos, uma dúzia de cavalos ou mais, aproximando-se. De repente, todos se mexiam, pegando
as armas, correndo para os cavalos.
Pedrinhas caíram neles quando Lharys desceu o declive, aos saltos e às escorregadelas. Parou
sem fôlego diante de Catelyn Stark, um homem de ar desajeitado com desordenados tufos de
cabelo cor de ferrugem por baixo de um capacete cônico de aço.
– Vinte homens, talvez vinte e cinco – ele disse, sem fôlego. – Serpentes de Leite ou Irmãos da
Lua, parece-me. Devem ter olhos nas montanhas, senhora… vigias ocultos… sabem que estamos
aqui.
Sor Rodrik Cassel já estava montado, de espada na mão. Mohor agachou-se por trás de um
pedregulho, agarrado com ambas as mãos à sua lança de ponta de ferro, um punhal entre os dentes.
– Você, cantor – chamou Sor Willis Wode. – Ajude-me com este peitoral – Marillion estava
sentado, imóvel, agarrado com força à sua harpa, com o rosto pálido como leite, mas o homem de
Tyrion, Morrec, pôs-se em pé de um pulo e foi ajudar o cavaleiro a vestir a armadura.
Tyrion manteve a mão agarrada a Catelyn Stark.
– Não tem escolha – disselhe. – Somos três, e mais um homem desperdiçado para nos vigiar…
quatro homens podem fazer a diferença entre a vida e a morte aqui em cima.
– Dê-me sua palavra de que voltará a baixar as armas quando a luta acabar.
– A minha palavra? – podia-se agora ouvir as batidas dos cascos mais alto. Tyrion deu um
sorriso torto. – Ah, tem minha palavra, minha senhora… sobre a minha honra como Lannister.
Por um momento ele pensou que ela cuspiria na sua cara, mas em vez disso ela exclamou: –
Deem-lhes armas – e no mesmo momento afastou-se. Sor Rodrik atirou a Jyck sua espada
embainhada e rodopiou para enfrentar o inimigo. Morrec tratou de se armar com um arco e uma
aljava, e caiu sobre um joelho junto à estrada. Era melhor arqueiro que espadachim. E Bronn veio
a cavalo oferecer a Tyrion um machado de lâmina dupla.
– Nunca lutei com um machado – a arma em suas mãos parecia desajeitada e pouco familiar.
Tinha um cabo curto, uma cabeça pesada e no topo uma haste pontiaguda de aspecto perigoso.
– Faça de conta que está partindo lenha – disse Bronn, puxando a espada da bainha que trazia
amarrada às costas. Cuspiu e trotou para juntar-se à formação esboçada por Chiggen e Sor Rodrik.
Sor Willis montou e também foi juntar-se a eles, enquanto se atrapalhava com o capacete, um
vaso de metal com uma estreita fenda para os olhos e uma longa pluma negra de seda.
– A lenha não sangra – disse Tyrion para ninguém em especial. Sentia-se nu sem uma armadura.
Olhou em volta à procura de uma rocha e correu para onde Marillion se escondia. – Dê-me lugar.
– Sai daqui! – respondeu-lhe o rapaz aos gritos. – Sou um cantor, não quero participar desta
luta!
– O quê? Perdeu o gosto pela aventura? – Tyrion começou a dar pontapés no jovem até que ele
cedeu um lugar, e não sem tempo. Um instante depois os cavaleiros caíam sobre eles.
Não houve arautos, nem estandartes, nem cornos ou tambores, apenas o ressoar das cordas dos
arcos quando Morrec e Lharys dispararam, e repentinamente os homens dos clãs vieram
trovejando pela madrugada, esguios e escuros, vestidos de couro fervido e armaduras feitas com
partes de outras armaduras, os rostos escondidos por trás de meios-elmos fechados. Mãos
enluvadas empunhavam uma grande variedade de armas: espadas longas, lanças e foices afiadas,
clavas, punhais e pesados malhos de ferro. À frente vinha um homem grande com um manto
listrado de pele de gato-das-sombras, armado com uma grande espada de duas mãos.
Sor Rodrik gritou “Winterfell!”, e avançou ao seu encontro com Bronn e Chiggen a seu lado,
soltando um grito qualquer de batalha. Sor Willis Wode os seguiu, brandindo uma clava por cima
da cabeça. “Harrenhal! Harrenhal!”, cantava. Tyrion sentiu um súbito impulso de saltar, brandir o
machado e trovejar “Rochedo Casterly!”, mas aquela insanidade passou rapidamente, e ele se
agachou mais.
Ouviu os relinchos de cavalos assustados e o estrondo de metal batendo em metal. A espada de
Chiggen varreu o rosto descoberto de um cavaleiro em cota de malha, e Bronn mergulhou através
dos homens dos clãs como um pé de vento, ferindo inimigos à esquerda e à direita. Sor Rodrik
atacava o homem grande de manto de pele de gato-das-sombras, e seus cavalos dançavam em
círculos enquanto os homens respondiam um ao outro, golpe a golpe. Jyck saltou para um cavalo e
galopou em pelo para o meio da batalha. Tyrion viu uma flecha projetar-se do pescoço do homem
do manto de pele de gato-das-sombras. Quando abriu a boca para gritar, só viu sangue saindo dela.
No instante em que caiu ao chão, Sor Rodrik já lutava com outro homem.
Subitamente, Marillion guinchou, cobrindo a cabeça com a harpa, enquanto um cavalo saltava
por cima da rocha que os protegia. Tyrion pôs-se em pé com dificuldade no momento em que o
cavaleiro dava meia-volta para atacá-los, erguendo um malho com várias hastes pontiagudas.
Tyrion volteou o machado com ambas as mãos. A lâmina, dirigida para cima, apanhou o cavalo na
garganta com um tunc úmido, e Tyrion quase largou a arma quando o cavalo guinchou e caiu, mas
conseguiu libertar o machado e cambaleou desajeitadamente para fora de seu caminho. Marillion
teve menos sorte. Cavalo e cavaleiro despencaram no chão, num emaranhado de membros por
cima do cantor. Tyrion avançou enquanto a perna do salteador ainda se encontrava presa sob o
cavalo caído e enterrou o machado no pescoço do homem, logo acima das omoplatas.
Enquanto lutava para libertar o machado, ouviu Marillion gemer sob os corpos.
– Alguém me ajude – o cantor arquejou. – Que os deuses tenham piedade de mim, estou
sangrando.
– Creio que é sangue de cavalo – disse Tyrion. A mão do cantor arrastou-se por sob o animal
morto, arranhando a terra como uma aranha de cinco pernas. Tyrion calcou os dedos com o salto
da bota e sentiu um estalido satisfatório. – Feche os olhos e finja que está morto – aconselhou ao
cantor antes de erguer o machado e se afastar.
Depois daquilo, aconteceu tudo ao mesmo tempo. A madrugada encheu-se de gritos e berros, o
ar ficou pesado com o cheiro de sangue e o mundo transformou-se em caos. Flechas voaram
silvando junto à sua orelha e ricochetearam nas rochas. Viu Bronn derrubado do cavalo, lutando
com uma espada em cada mão. Tyrion manteve-se ao largo da luta, deslizando de rochedo em
rochedo e saltando das sombras para atingir as pernas dos cavalos que passavam. Encontrou um
homem dos clãs ferido e o deixou morto, apropriando-se do seu meio-elmo. Estava muito
apertado, mas Tyrion sentia-se grato por qualquer proteção que encontrasse. Jyck foi atingido por
trás no momento em que abatia um homem à sua frente, e mais tarde Tyrion tropeçou no corpo de
Kurleket. A cara de porco tinha sido esmagada por uma maça, mas Tyrion reconheceu o punhal ao
arrancá-lo dos dedos mortos do homem. Estava enfiando-o no cinto quando ouviu um grito de
mulher.
Catelyn Stark estava encurralada contra a superfície de pedra da montanha, cercada por três
homens, um ainda montado. Segurava desajeitadamente um punhal com as mãos mutiladas, mas
tinha agora as costas apoiadas contra a rocha e estava cercada pelos três lados restantes. Que
fiquem com a cadela, pensou Tyrion, e que façam bom proveito, mas, apesar disso, avançou.
Apanhou o primeiro homem pela parte de trás do joelho antes que eles percebessem que se
encontrava ali, e a pesada cabeça do machado rompeu carne e osso como madeira podre. Lenha
que sangra, pensou Tyrion estupidamente enquanto o segundo homem se aproximava. Tyrion
esquivou-se sob sua espada, brandiu o machado, o homem cambaleou para trás… e Catelyn Stark
surgiu pelas suas costas e abriu-lhe a garganta. O cavaleiro lembrou-se de um compromisso
urgente em outro lugar, e afastou-se rapidamente a galope.
Tyrion olhou em volta. Os inimigos estavam vencidos, ou desaparecidos. De algum modo, a
luta terminara sem que ele percebesse. Cavalos moribundos e homens feridos jaziam por toda
parte, gritando ou gemendo. Para seu grande espanto, não era um deles. Abriu os dedos e deixou
cair o machado ao chão com um tunc. Tinha as mãos pegajosas de sangue. Podia jurar que a luta
tinha durado metade de um dia, mas o Sol parecia quase não se ter movido.
– Sua primeira batalha? – mais tarde Bronn perguntou, enquanto se inclinava sobre o corpo de
Jyck, descalçando-lhe as botas. Eram boas botas, como era próprio de um dos homens de Lorde
Tywin; couro pesado, untado e flexível, muito melhores que as de Bronn.
Tyrion confirmou com a cabeça.
– Meu pai ficará orgulhosíssimo – ele disse. Tinha tantas cãibras nas pernas que mal conseguia
se manter em pé. Estranho, durante a batalha não reparara na dor uma única vez.
– Agora você precisa de uma mulher – disse Bronn com uma cintilação nos olhos negros,
enfiando as botas no alforje. – Não há nada como uma mulher depois de matar um homem,
acredite no que lhe digo.
Chiggen parou de saquear os cadáveres dos salteadores apenas tempo suficiente para resfolegar
e lamber os lábios.
Tyrion olhou de relance para onde a Senhora Stark se encontrava cobrindo as feridas de Sor
Rodrik.
– Estou disposto, se ela estiver – Tyrion disse. Os cavaleiros livres arrebentaram em
gargalhadas; ele sorriu e pensou: É um começo.
Mais tarde, ajoelhou-se junto ao córrego e lavou o sangue do rosto em água fria como gelo.
Enquanto coxeava de volta para junto dos outros, olhou novamente para os mortos. Os homens dos
clãs eram magros e esfarrapados, seus cavalos, descarnados e pequenos demais, com todas as
costelas à mostra. As armas que Bronn e Chiggen lhes tinham deixado não eram nada
impressionantes. Malhos, clavas, uma foice… Lembrou-se do homem grande com o manto de pele
de gato-das-sombras que combatera Sor Rodrik com uma grande espada de duas mãos, mas,
quando encontrou seu cadáver esparramado no chão pedregoso, o homem afinal não era assim tão
grande, seu manto tinha desaparecido, e Tyrion reparou que a lâmina estava cheia de entalhes e o
aço barato, pintalgado de ferrugem. Pouco admirava que os homens dos clãs tivessem deixado
nove corpos sem vida no chão.
Eles tinham apenas três mortos: dois dos homens de armas de Lorde Bracken, Kurleket e
Mohor, e seu homem, Jyck, que tão ousado se mostrara com sua cavalgada em pelo. Um tolo até o
fim, pensou Tyrion.
– Senhora Stark, insisto para que prossigamos a toda velocidade – disse Sor Willis Wode, com
os olhos perscrutando cautelosamente o cume das colinas através da fenda do elmo. – Nós os
afastamos por ora, mas não devem estar muito longe.
– Temos de enterrar nossos mortos, Sor Willis – ela disse. – Estes eram homens corajosos. Não
os deixarei para os corvos e os gatos-das-sombras.
– Este solo é pedregoso demais para cavar – Sor Willis respondeu.
– Então juntaremos pedras para cobri-los.
– Juntem todas as pedras que quiserem – disselhe Bronn –, mas o farão sem mim e Chiggen.
Tenho coisa melhor para fazer que empilhar pedras em cima de mortos… Respirar, por exemplo –
olhou para os demais sobreviventes. – Aqueles que quiserem estar vivos ao cair da noite, venham
conosco.
– Minha senhora, temo que ele esteja certo – Sor Rodrik disse com cautela. O velho cavaleiro
fora ferido na luta, um golpe profundo no braço esquerdo e outro de lança que lhe resvalara o
pescoço, e sua voz mostrava o peso da idade. – Se ficarmos aqui, cairão de novo sobre nós com
toda certeza, e podemos não sobreviver a um segundo ataque.
Tyrion via a ira no rosto de Catelyn, mas a mulher não tinha escolha.
– Então, que os deuses nos perdoem. Partiremos de imediato.
Agora não faltavam cavalos. Tyrion mudou a sela para o castrado malhado de Jyck, que parecia
suficientemente forte para durar mais três ou quatro dias pelo menos. Preparava-se para montar
quando Lharys avançou e lhe disse: – Agora eu fico com este punhal, anão.
– Deixe-o ficar com ele – Catelyn Stark os olhava de cima do cavalo. – E devolva-lhe também o
machado. Podemos vir a precisar dele se voltarmos a ser atacados.
– Tem os meus agradecimentos, senhora – disse Tyrion, montando.
– Guarde-os – ela disse em tom rude. – Não confio mais em você do que antes – e afastou-se
antes de ele ter tempo para formular uma resposta.
Tyrion ajustou o elmo roubado e recebeu o machado das mãos de Bronn. Recordou o modo
como iniciara a viagem, com os pulsos atados e um capuz sobre a cabeça, e concluiu que aquilo
era decididamente uma melhoria. A Senhora Stark podia conservar sua confiança; desde que ele
pudesse conservar o machado, consideraria que mantinha algum avanço naquele jogo.
Sor Willis Wode tomou a dianteira. Bronn instalou-se à retaguarda, com a Senhora Stark em
segurança no meio e Sor Rodrik ao lado dela como uma sombra. Marillion, de vez em quando,
lançava olhares mal-humorados a Tyrion enquanto avançavam. O cantor partira várias costelas,
sua harpa e os quatro dedos da mão com que tocava, mas, apesar disso, o dia não lhe fora uma
perda completa; de algum lugar tinha adquirido um magnífico manto de pele de gato-das-sombras,
espessos pelos negros rasgados por listras brancas. Aconchegava-se em silêncio sob suas dobras,
pela primeira vez sem ter nada a dizer.
Ouviram os profundos rugidos dos gatos-das-sombras atrás deles antes de terem andado meia
milha, e mais tarde os rosnados ferozes dos animais que lutavam pelos cadáveres que lá haviam
deixado.
Marillion ficou visivelmente pálido.
– Poltrão – disse Tyrion – rima bem com canção – esporeou o cavalo e ultrapassou o cantor,
juntando-se a Sor Rodrik e a Catelyn Stark.
Ela o olhou com os lábios bem comprimidos.
– Como ia dizendo antes de sermos tão rudemente interrompidos – começou Tyrion –, há uma
séria falha na fábula de Mindinho. Independentemente do que pensa sobre mim, Senhora Stark,
uma coisa lhe garanto: eu nunca aposto contra a minha família.

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